quinta-feira, 26 de setembro de 2024

CONTO: A MENOR MULHER DO MUNDO - FRAGMENTO - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: A menor mulher do mundo – Fragmento

           Clarice Lispector

        Nas profundezas da África Equatorial o explorador francês Marcel Pretre, caçador e homem do mundo, topou com uma tribo de pigmeus de uma pequenez surpreendente. Mais surpreso, pois, ficou ao ser informado de que menor povo ainda existia além de florestas e distâncias. Então mais fundo ele foi.

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        No Congo Central descobriu realmente os menores pigmeus do mundo. E — como uma caixa dentro de um caixa — entre os menores pigmeus do mundo estava o menor dos menores pigmeus do mundo, obedecendo talvez à necessidade que às vezes a Natureza tem de exceder a si própria.

        Entre mosquitos e árvores mornas de umidade, entre as folhas ricas do verde mais preguiçoso, Marcel Pretre defrontou-se com uma mulher de quarenta e cinco centímetros, madura, negra, calada. "Escura como um macaco", informaria ele à imprensa, e que vivia no topo de uma árvore com seu pequeno concubino. Nos tépidos humores silvestres, que arredondam cedo as frutas e lhes dão uma quase intolerável doçura ao paladar, ela estava grávida.

        Ali em pé estava, portanto, a menor mulher do mundo. Por um instante, no zumbido do calor, foi como se o francês tivesse inesperadamente chegado à conclusão última. Na certa, apenas por não ser louco, é que sua alma não desvairou nem perdeu os limites. Sentindo necessidade imediata de ordem, e dar nome ao que existe, apelidou-a de Pequena Flor. E, para conseguir classificá-la entre as realidades reconhecíveis, logo passou a colher dados a seu respeito.

        [...]

        A fotografia de Pequena Flor foi publicada no suplemento colorido dos jornais de domingo, onde coube em tamanho natural. Enrolada num pano, com a barriga em estado adiantado. O nariz chato, a cara preta, os olhos fundos, os pés espalmados. Parecia um cachorro.

        Nesse domingo, num apartamento, uma mulher, ao olhar no jornal aberto o retrato de Pequena Flor, não quis olhar uma segunda vez "porque me dá aflição".

        Em outro apartamento uma senhora teve tal perversa ternura pela pequenez da mulher africana que — sendo tão melhor prevenir que remediar — jamais se deveria deixar Pequena Flor sozinha com a ternura da senhora. Quem sabe a que escuridão de amor pode chegar o carinho. A senhora passou um dia perturbada, dir-se-ia tomada pela saudade. Aliás era primavera, uma bondade perigosa estava no ar.

        Em outra casa uma menina de cinco anos de idade, vendo o retrato e ouvindo os comentários, ficou espantada. Naquela casa de adultos, essa menina fora até agora o menor dos seres humanos. E se isso era fonte das melhores carícias, era também fonte deste primeiro medo do amor tirano. A existência de Pequena Flor levou a menina a sentir — com uma vaguidão que só anos e anos depois, por motivos bem diferentes, havia de se concretizar em pensamento — levou a sentir, numa primeira sabedoria, que "a desgraça não tem limites".

        Em outra casa, na sagração da primavera, a moça noiva teve um êxtase de piedade:

        — Mamãe, olhe o retratinho dela, coitadinha! Olhe só como ela é tristinha!

        — Mas — disse a mãe, dura e derrotada e orgulhosa — mas é tristeza de bicho, não é tristeza humana.

        — Oh! Mamãe — disse a moça desanimada.

        Foi em outra casa que um menino esperto teve uma ideia esperta:

        — Mamãe, e se eu botasse essa mulherzinha africana na cama de Paulinho enquanto ele está dormindo? Quando ele acordasse, que susto, hein! Que berro, vendo ela sentada na cama! E a gente então brincava tanto com ela! A gente fazia ela o brinquedo da gente, hein!

        A mãe dele estava nesse instante enrolando os cabelos em frente ao espelho do banheiro, e lembrou-se do que uma cozinheira lhe contara do tempo de orfanato. Não tendo boneca com que brincar, e a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver num armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E considerou a cruel necessidade de amar. Considerou a malignidade de nosso desejo de ser feliz. Considerou a ferocidade com que queremos brincar. E o número de vezes em que mataremos por amor. Então olhou para o filho esperto como se olhasse para um perigoso estranho. E teve terror da própria alma que, mais que seu corpo, havia engendrado aquele ser apto à vida e à felicidade. Assim olhou ela, com muita atenção e um orgulho inconfortável, aquele menino que já estava sem os dois dentes da frente, a evolução, a evolução se fazendo, dente caindo para nascer o que melhor morde. "Vou comprar um terno novo para ele", resolveu, olhando-o absorta. Obstinadamente enfeitava o filho desdentado com roupas finas, obstinadamente queria-o bem limpo, como se limpeza desse ênfase a uma superficialidade tranquilizadora, obstinadamente aperfeiçoando o lado cortês da beleza. Obstinadamente afastando-se, e afastando-o, de alguma coisa que devia ser "escura como um macaco". Então, olhando para o espelho do banheiro, a mãe sorriu intencionalmente fina e polida, colocando, entre aquele seu rosto de linhas abstratas e a cara crua de Pequena Flor, a distância insuperável de milênios. Mas, com anos de prática, sabia que este seria um domingo em que teria de disfarçar de si mesma a ansiedade, o sonho, e milênios perdidos.

        Em outra casa, junto a uma parede, deram-se ao trabalho alvoroçado de calcular com fita métrica os quarenta e cinco centímetros de Pequena Flor. E foi aí mesmo que, em delícia, se espantaram: ela era ainda menor que o mais agudo da imaginação inventaria. No coração de cada membro da família nasceu, nostálgico, o desejo de ter para si aquela coisa miúda e indomável, aquela coisa salva de ser comida, aquela fonte permanente de caridade. A alma ávida da família queria devotar-se. E, mesmo, quem já não desejou possuir um ser humano só para si? O que, é verdade, nem sempre seria cômodo, há horas em que não se quer ter sentimentos:

        — Aposto que se ela morasse aqui terminava em briga — disse o pai sentado na poltrona, virando definitivamente a página do jornal. — Nesta casa tudo termina em briga.

        — Você, José, sempre pessimista — disse a mãe.

        — A senhora já pensou, mamãe, de que tamanho será o nenenzinho dela? — disse ardente a filha mais velha de treze anos.

        O pai mexeu-se atrás do jornal.

        — Deve ser o bebê preto menor do mundo — respondeu a mãe, derretendo-se de gosto. — Imagine só ela servindo a mesa aqui de casa! E de barriguinha grande!

        — Chega de conversas! — engrolou o pai.

        — Você há de convir — disse a mãe inesperadamente ofendida — que se trata de uma coisa rara. Você é que é insensível.

        E a própria coisa rara?

        Enquanto isso na África, a própria coisa rara tinha no coração — quem sabe se negro também, pois numa Natureza que errou uma vez já não se pode mais confiar — enquanto isso a própria coisa rara tinha no coração algo mais raro ainda, assim como o segredo do próprio segredo: um filho mínimo. Metodicamente o explorador examinou com o olhar a barriguinha do menor ser humano maduro. Foi neste instante que o explorador, pela primeira vez desde que a conhecera, em vez de sentir curiosidade ou exaltação ou vitória ou espírito científico, o explorador sentiu mal-estar.

        É que a menor mulher do mundo estava rindo.

        Estava rindo, quente, quente. Pequena Flor estava gozando a vida. A própria coisa rara estava tendo a inefável sensação de ainda não ter sido comida. Não ter sido comida era que, em outras horas, lhe dava o ágil impulso de pular de galho em galho. Mas, neste momento de tranquilidade, entre as espessas folhas do Congo Central, ela não estava aplicando esse impulso numa ação — e o impulso se concentrara todo na própria pequenez da própria coisa rara. E então ela estava rindo. Era um riso como somente quem não fala, ri. Esse riso, o explorador constrangido não conseguiu classificar. E ela continuou fruindo o próprio riso macio, ela que não estava sendo devorada. Não ser devorado é o sentimento mais perfeito. Não ser devorado é o objetivo secreto de toda uma vida. Enquanto ela não estava sendo comida, seu riso bestial era tão delicado como é delicada a alegria. O explorador estava atrapalhado.

        Em segundo lugar, se a própria coisa rara estava rindo, era porque, dentro dessa sua pequenez, grande escuridão pudera-se em movimento.

        É que a própria coisa rara sentia o peito morno do que se pode chamar de Amor. Ela amava aquele explorador amarelo. Se soubesse falar e dissesse que o amava, ele inflaria de vaidade. Vaidade que diminuiria quando ela acrescentasse que também amava muito o anel do explorador e que amava muito a bota do explorador. E quando este desinchasse desapontado, Pequena Flor não compreenderia por quê. Pois, nem de longe, seu amor pelo explorador — pode-se mesmo dizer seu "profundo amor", porque, não tendo outros recursos, ela estava reduzida à profundeza — pois nem de longe seu profundo amor pelo explorador ficaria desvalorizado pelo fato de ela também amar sua bota. Há um velho equívoco sobre a palavra amor, e, se muitos filhos nascem desse equívoco, tantos outros perderam o único instante de nascer apenas por causa de uma suscetibilidade que exige que seja de mim, de mim! que se goste, e não de meu dinheiro. Mas na umidade da floresta não há desses refinamentos cruéis, e amor é não ser comido, amor é achar bonita uma bota, amor é gostar da cor rara de um homem que não é negro, amor é rir de amor a um anel que brilha. Pequena Flor piscava de amor, e riu quente, pequena, grávida, quente.

        O explorador tentou sorrir-lhe de volta, sem saber exatamente a que abismo seu sorriso respondia, e então perturbou-se como só homem de tamanho grande se perturba. Disfarçou ajeitando melhor o chapéu de explorador, corou pudico. Tornou-se uma cor linda, a sua, de um rosa-esverdeado, como a de um limão de madrugada. Ele devia ser azedo.

        Foi provavelmente ao ajeitar o capacete simbólico que o explorador se chamou à ordem, recuperou com severidade a disciplina de trabalho, e recomeçou a anotar. Aprendera a entender algumas das poucas palavras articuladas da tribo, e a interpretar os sinais. Já conseguia fazer perguntas.

        Pequena Flor respondeu-lhe que "sim". Que era muito bom ter uma árvore para morar, sua, sua mesmo. Pois — e isso ela não disse, mas seus olhos se tornaram tão escuros que o disseram — pois é bom possuir, é bom possuir, é bom possuir. O explorador pestanejou várias vezes.

        Marcel Pretre teve vários momentos difíceis consigo mesmo. Mas pelo menos ocupou-se em tomar notas e notas. Quem não tomou notas é que teve que se arranjar como pôde:

        — Pois olhe — declarou de repente uma velha fechando o jornal com decisão — pois olhe, eu só lhe digo uma coisa: Deus sabe o que faz.

LISPECTOR, Clarice. A menor mulher do mundo. In: Laços de família. 10. ed. Rio de Janeiro. José Olympio, 1978. p. 77-86.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 3 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 247-251.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Concubino: amante.

·        Tépido: morno.

·        Humor: umidade.

·        Engrolar: pronunciar mal.

·        Inefável: indizível, encantador.

·        Fluir: gozar, desfrutar.

02 – Qual a principal característica física de Pequena Flor?

      Pequena Flor é descrita como a menor mulher do mundo, com apenas 45 centímetros. Sua aparência exótica e sua condição de menor a tornam um objeto de curiosidade e fascínio.

03 – Como Pequena Flor é vista pelos outros personagens e pela sociedade?

      Pequena Flor é vista como uma curiosidade, um objeto de estudo e de contemplação. Sua pequenez a torna um símbolo da diferença e da excentricidade.

04 – Quais são os sentimentos de Pequena Flor em relação à sua condição?

      O conto não explora em profundidade os sentimentos de Pequena Flor, mas sugere que ela aceita sua condição e encontra felicidade em sua vida simples. Seu riso é descrito como "quente" e "macio", indicando uma sensação de bem-estar e contentamento.

05 – Qual o impacto do encontro de Marcel Pretre com Pequena Flor?

      O encontro com Pequena Flor provoca uma crise existencial em Marcel Pretre. Ele se questiona sobre a natureza humana, a felicidade e o significado da vida.

06 – Como a relação entre Marcel Pretre e Pequena Flor se desenvolve?

      A relação entre os dois personagens é marcada pela curiosidade e pela incompreensão. Marcel Pretre tenta classificar e entender Pequena Flor, enquanto ela o observa com um olhar enigmático.

07 – Como as diferentes pessoas reagem à notícia sobre Pequena Flor?

      As pessoas reagem de forma diversa ao saber da existência de Pequena Flor. Algumas sentem pena, outras curiosidade, e outras ainda, um desejo de posse ou de exploração.

08 – Qual a crítica social presente nas reações das pessoas?

      O conto critica a curiosidade mórbida, a superficialidade e a falta de empatia das pessoas. As reações das pessoas revelam a tendência humana a julgar e a categorizar os outros com base em suas diferenças.

09 – Quais os temas principais do conto?

      Os temas principais do conto são a diferença, a identidade, a felicidade, a exploração e a natureza humana.

10 – Qual a importância da natureza no conto?

      A natureza é um personagem fundamental no conto. A floresta, com sua exuberância e mistério, serve como pano de fundo para a história e simboliza a liberdade e a espontaneidade.

11 – Qual a mensagem final do conto?

      O conto nos convida a refletir sobre o significado da felicidade e da existência. Pequena Flor, com sua simplicidade e alegria, nos mostra que a felicidade não está ligada à posse ou ao status social, mas sim à aceitação de si mesmo e à capacidade de encontrar prazer nas pequenas coisas da vida.

 

 

CONTO: AS CARIDADES ODIOSAS - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

 Conto: As caridades odiosas

            Clarice Lispector

        Foi uma tarde de sensibilidade ou de suscetibilidade? Eu passava pela rua depressa, emaranhada nos meus pensamentos, como às vezes acontece. Foi quando meu vestido me reteve: alguma coisa se enganchara na minha saia. Voltei-me e vi que se tratava de uma mão pequena e escura. Pertencia a um menino a que a sujeira e o sangue interno davam um tom quente de pele. O menino estava de pé no degrau da grande confeitaria. Seus olhos, mais do que suas palavras meio engolidas, informavam-me de sua paciente aflição. Paciente demais. Percebi vagamente um pedido, antes de compreender o seu sentido concreto. Um pouco aturdida eu o olhava, ainda em dúvida se fora a mão da criança o que me ceifara os pensamentos.

 
Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjIaVzh7Wwf8GFOtJLnfRiEzSzSuDcnmTigpDENJyxTqeQBSEPAIRuKMbVChws5cJrc1vUj5ot-PHPmCOHDtfIXjxQ-VhAqr2qxFFxneZ6_t-XxHz9yODwDY638JgRwN5-fCbFd8Evm1HiWkbbXTrBNJUS2P7JkTIsK1_sHC6UXxkc90GILnabte0frvKo/s320/DOCE.jpg

        -- Um doce, moça, compre um doce para mim.

        Acordei finalmente. O que estivera eu pensando antes de encontrar o menino? O fato é que o pedido deste pareceu cumular uma lacuna, dar uma resposta que podia servir para qualquer pergunta, assim como uma grande chuva pode matar a sede de quem queria uns goles de água.

        Sem olhar para os lados, por pudor talvez, sem querer espiar as mesas da confeitaria onde possivelmente algum conhecido tomava sorvete, entrei, fui ao balcão e disse com uma dureza que só Deus sabe explicar: Um doce para o menino.

        De que tinha eu medo? Eu não olhava a criança, queria que a cena, humilhante para mim, terminasse logo. Perguntei-lhe: que doce você…

        Antes de terminar, o menino disse apontado depressa com o dedo: Aquelezinho ali, com chocolate por cima. Por um instante perplexa, eu me recompus logo e ordenei, com aspereza, à caixeira que o servisse.

        -- Que outro doce você quer? Perguntei ao menino escuro.

        Este, que mexendo as mãos e a boca ainda esperava com ansiedade pelo primeiro, interrompeu-se, olhou-me um instante e disse com delicadeza insuportável, mostrando os dentes: não precisa de outro não. Ele poupava a minha bondade.

        -- Precisa sim, cortei eu ofegante, empurrando-o para a frente. O menino hesitou e disse: Aquele amarelo de ovo. Recebeu um doce em cada mão, levantando as duas acima da cabeça, com medo talvez de apertá-los. Mesmo os doces estavam tão acima do menino escuro. E foi sem olhar para mim que ele, mais do que foi embora, fugiu. A caixeirinha olhava tudo:

        -- Afinal uma alma caridosa apareceu. Esse menino estava nesta porta há mais de uma hora, puxando todas as pessoas que passavam, mas ninguém quis dar.

        Fui embora, com o rosto corado de vergonha. De vergonha mesmo? Era inútil querer voltar aos pensamentos anteriores. Eu estava cheia de um sentimento, gratidão, revolta e vergonha. Mas como se costuma dizer, o Sol parecia brilhar com mais força. Eu tivera a oportunidade de…E para isso fora necessário um menino magro e escuro…E para isso fora necessário que outros não lhe tivessem dado um doce.

        E as pessoas que tomavam sorvete? Agora, o que eu queria saber com autocrueldade era o seguinte: temera que os outros me vissem ou que os outros não me vissem? O fato é que, quando atravessei a rua, o que teria sido piedade já se estrangulara sob outros sentimentos. E, agora sozinha, meus pensamentos voltaram lentamente a ser os anteriores, só que inúteis.

LISPECTOR, Clarice. As caridades odiosas. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1984. p. 380-3.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 3 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 233-4.

Entendendo o conto:

01 – Qual a principal emoção experimentada pela narradora ao longo do conto?

      A narradora experimenta uma gama de emoções complexas, como culpa, vergonha, gratidão e revolta. O encontro com o menino a leva a questionar suas próprias atitudes e a refletir sobre a condição humana.

02 – Como a narradora descreve seus próprios pensamentos antes de encontrar o menino?

      A narradora se descreve como "emaranhada nos meus pensamentos", sugerindo um estado de distração e introspecção. Seus pensamentos são vagos e não são revelados ao leitor.

03 – Qual a atitude inicial da narradora em relação ao pedido do menino?

      Inicialmente, a narradora se sente incomodada com o pedido do menino e demonstra certa relutância em atendê-lo. Ela parece mais preocupada com sua própria imagem e com o que os outros pensarão do que com a necessidade da criança.

04 – Qual o papel do menino na narrativa?

      O menino representa a pobreza, a necessidade e a vulnerabilidade. Seu pedido desperta na narradora uma série de sentimentos conflitantes e a leva a confrontar suas próprias contradições.

05 – Como a narradora descreve o menino?

      A narradora descreve o menino como magro, sujo e com um olhar de "paciente aflição". Sua aparência física contrasta com a opulência da confeitaria e da sociedade em que a narradora vive.

06 – Por que a narradora se sente envergonhada após ajudar o menino?

      A narradora se sente envergonhada porque percebe que seu ato de caridade foi motivado mais pela culpa e pela necessidade de aliviar sua própria consciência do que por um genuíno desejo de ajudar o menino.

07 – Qual a diferença entre a caridade da narradora e a caridade esperada pela sociedade?

      A caridade da narradora é marcada pela culpa e pela vergonha, enquanto a caridade esperada pela sociedade é vista como um ato de bondade e generosidade. A narradora questiona a sinceridade e as motivações por trás dos atos caridosos.

08 – Qual o tema central do conto "As caridades odiosas"?

      O tema central do conto é a hipocrisia da sociedade e a complexidade da natureza humana. A narradora explora a questão da caridade e da compaixão, questionando as motivações que levam as pessoas a ajudar ou a ignorar o sofrimento alheio.

09 – Qual a crítica social presente no conto?

      O conto critica a indiferença e a desigualdade social. A figura do menino faminto em frente a uma confeitaria luxuosa evidencia as disparidades sociais e a falta de empatia de muitas pessoas.

10 – Qual a importância do título "As caridades odiosas"?

      O título reflete a ambivalência da experiência da narradora. A caridade, que deveria ser um ato de bondade, torna-se odiosa quando motivada por sentimentos como culpa e vergonha, em vez de compaixão genuína. O título também sugere que a forma como a caridade é praticada pode ser tão importante quanto o ato em si.

 

 

sábado, 21 de setembro de 2024

PIADA: AS ANEDOTINHAS DO BICHINHO DA MAÇÃ - ZIRALDO - COM GABARITO

 Piada: As anedotinhas do Bichinho da Maçã

        Chovia há três dias sem parar e o campo de futebol estava completamente inundado. Era domingo e sem futebol o pessoal da cidade ia ficar sem distração. Aí o juiz resolveu fazer o jogo de qualquer jeito. O capitão de uma das equipes não concordou:

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        -- Com tudo alagado não vai dar.

        -- Vai dar sim – disse o juiz, pode escolher o campo.

        E o capitão:

        -- Então tá. Meu time joga o primeiro tempo a favor da correnteza.

Ziraldo. As anedotinhas do Bichinho da Maçã. 6ª Ed. São Paulo: Melhoramentos. 1988. p. 26.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, 6º ano. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães. 7ª edição reformulada – São Paulo: ed. Saraiva, 2012. p. 246.

Entendendo a piada:

01 – Qual é a situação inicial descrita na piada?

      Chovia há três dias sem parar, e o campo de futebol estava completamente inundado.

02 – Por que o capitão de uma das equipes não queria jogar?

      O capitão não queria jogar porque o campo estava alagado e, em sua opinião, não seria possível jogar nessas condições.

03 – Qual foi a solução proposta pelo juiz para resolver a situação?

      O juiz decidiu que o jogo seria realizado de qualquer maneira e disse ao capitão para escolher de qual lado do campo seu time jogaria.

04 – Qual foi a resposta engraçada do capitão em relação à escolha do campo?

      O capitão respondeu com humor que seu time jogaria o primeiro tempo "a favor da correnteza", aproveitando a inundação do campo.

05 – Qual é o elemento de humor central da piada?

      O humor está na ideia absurda de jogar futebol em um campo tão alagado que há até uma "correnteza", e o capitão tenta tirar vantagem dessa situação bizarra.

 

POEMA: CANTIGA - SÁ DE MIRANDA - COM GABARITO

 Poema: Cantiga

              Sá de Miranda

Comigo me desavim,

vejo-me em grande perigo,

não posso viver comigo,

nem posso fugir de mim.

 

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjsduKrZsnk-fo4HZMUZSud6aRi0mn09AXjvz8I2-Ldcvcg6RMck523XGZSh0-roA8nTCdTztxJGwIaHKRvkjGL_I63Qs1_H1lrxZfbZtDI7z3UuEaBbEoB2rA8Akt_f2W1MnB3njGVJT6DmUdlOEhZ3lfB0LEjO7fEsPL2oFunIxg0Bd8XQMBa6aiOnug/s1600/FUGIR.jpg

Antes que este mal tivesse,

de outra gente fugia;

agora, já fugiria

de mim, se de mim pudesse.

 

Que cabo espero, ou que fim

deste cuidado que sigo,

pois trago a mim comigo,

tamanho imigo de mim?

Sá de Miranda. Francisco. Cantiga. In: Cancioneiro geral. Lisboa. Verbo, 1962. p. 20-1.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 1 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 127.

Entendendo o poema:

01 – Qual a principal temática abordada na cantiga?

      A principal temática é a angústia existencial e a luta interior do eu lírico. O poeta expressa um profundo conflito consigo mesmo, sentindo-se dividido e incapaz de encontrar a paz interior.

02 – O que significa a expressão "Comigo me desavim"?

      Essa expressão significa que o eu lírico está em desacordo consigo mesmo, em uma espécie de guerra interior. Ele não consegue encontrar harmonia em suas próprias emoções e pensamentos.

03 – Qual a evolução do sentimento do eu lírico ao longo do poema?

      Inicialmente, o eu lírico expressa um desejo de fugir de si mesmo. No entanto, ao longo do poema, essa vontade se intensifica, revelando uma angústia ainda maior diante da impossibilidade de escapar de seus próprios conflitos.

04 – Que tipo de futuro o eu lírico vislumbra para si?

      O eu lírico não vislumbra um futuro positivo. Ele se sente perdido e sem esperança, questionando o sentido de sua vida e o motivo de tanto sofrimento.

05 – Qual a importância da repetição do pronome "mim" no poema?

      A repetição do pronome "mim" enfatiza a centralidade do eu lírico no poema. Ao se colocar em primeiro plano, o poeta evidencia a intensidade de sua angústia e a importância da busca por si mesmo na experiência humana.

 

SONETO: A UMA AUSÊNCIA - ANTÔNIO BARBOSA BACELAR - COM GABARITO

 Soneto: A uma ausência

            Antônio Barbosa Bacelar

Sinto-me, sem sentir, todo abrasado

No rigoroso fogo que me alenta;

O mal, que me consome, me sustenta;

O bem, que me entretém, me dá cuidado.

 
Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjVeu1BGe5mtUu_xuGcRsWmAzI0LxRorGI0rR7hAU460NBl185N2zEowUkBMYMKN8EyZ39QhzERlY0Fat_c_pXCbtDzFxRnoDcNavRon8Bo15Q1jJdkKg195tslRvk8wQy-s3EQFTL7EdzAe-xNoq9bgT9MU4LnOIsG3I6Mn8El82c3XilSqtfTaY3OejY/s1600/AUSENCIA.jpg

 

Ando sem me mover, falo calado;

O que mais perto vejo, se me ausenta,

E o que estou sem ver, mais me atormenta;

Alegro-me de ver-me atormentado.

 

Choro no mesmo ponto em que me rio;

No mor risco me anima a confiança;

Do que menos se espera estou mais certo.

 

Mas se de confiado desconfio,

É porque, entre os receios da mudança,

Ando perdido em mim como em deserto.

António Barbosa Bacelar, in 'Fénix Renascida'.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 1 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 255.

Entendendo o soneto:

01 – Qual a principal emoção expressa pelo eu lírico no soneto?

      O eu lírico expressa uma intensa angústia e confusão. Ele se sente dividido entre sentimentos contraditórios, como prazer e dor, movimento e imobilidade. A ausência parece ter criado um estado de perturbação interna que o impede de encontrar paz.

02 – Como a ausência é representada no poema?

      A ausência não é representada de forma concreta, mas sim como uma força que domina o eu lírico. Ela é a causa do sofrimento e da perturbação interior, e parece estar presente em todos os momentos da vida do poeta. A ausência é tanto física quanto emocional, e se manifesta de diversas formas no poema.

03 – Quais os paradoxos presentes no soneto?

      O soneto é repleto de paradoxos, como "sinto-me, sem sentir", "o mal, que me consome, me sustenta" e "alegro-me de ver-me atormentado". Esses paradoxos revelam a complexidade dos sentimentos do eu lírico e a impossibilidade de encontrar uma explicação lógica para seu sofrimento.

04 – Qual o significado da imagem do deserto no final do soneto?

      O deserto representa o estado de solidão e desorientação interior do eu lírico. Ele se sente perdido em si mesmo, sem encontrar um caminho para sair daquela situação de angústia. O deserto simboliza a vastidão e a aridez da sua alma.

05 – Como a linguagem do poema contribui para a construção do sentido?

      A linguagem do poema é marcada por um alto grau de subjetividade e expressividade. O uso de antíteses, paradoxos e imagens fortes cria um clima de tensão e intensifica a experiência emocional do leitor. A linguagem poética permite que o eu lírico expresse de forma intensa e complexa seus sentimentos de angústia e desespero.

 

 

POEMA: MULHER AO ESPELHO - CECÍLIA MEIRELES - COM GABARITO

 Poema: Mulher ao espelho

             Cecília Meireles

Hoje que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh7bCx31dexQuSAmg2CCIaFjqLBfjCttwC21-BSMFfbMFVtCEEF-RfoJXRrmPMLyAXu4j20jMIfd5h8JEYjew99i-RrJVKIHeYNxDcGYATnSiTwZK9Kne_e4h7teblHC-7KwwaIHlUsCApKJ_tdlbcLd2RlvQRau7R__kecAbk9zzmhSLLrKvIm3N9RZ30/s1600/ESPELHO.jpg



Que mal faz, esta cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se tudo é tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira
a moda, que me vai matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seu
se morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.

Cecília Meireles.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 1 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 131.

Entendendo o poema:

01 – Qual a principal temática abordada no poema?

      A principal temática é a construção da identidade feminina e a relação da mulher com a sociedade e consigo mesma. A poetisa explora a superficialidade da beleza, a pressão social e a busca por uma identidade autêntica em um mundo que impõe padrões.

02 – O que significa a afirmação "Quero apenas parecer bela, pois, seja qual for, estou morta"?

      Essa frase revela a angústia da mulher diante da inevitabilidade da morte e a busca por uma beleza efêmera como forma de negar a finitude. A beleza se torna uma máscara para esconder a angústia existencial.

03 – Qual a importância da enumeração de diferentes nomes femininos no poema?

      A enumeração de nomes como Margarida, Beatriz, Maria e Madalena representa a multiplicidade de papéis que a mulher assume ao longo da vida. Ao mesmo tempo, revela a impossibilidade de se encaixar em um único modelo feminino, evidenciando a busca por uma identidade própria.

04 – O que simboliza a "tinta" mencionada no poema?

      A "tinta" simboliza a artificialidade, a futilidade e a superficialidade da vida. Tudo, desde a beleza física até os sentimentos, parece ser uma construção social e não algo autêntico.

05 – Qual a relação entre a beleza e a morte no poema?

      A beleza é apresentada como algo efêmero e ligado à morte. A busca incessante por um padrão de beleza imposto pela sociedade leva a mulher a negar sua própria identidade e a se conformar com um papel pré-determinado.

06 – Qual o significado da última estrofe?

      A última estrofe sugere que a busca pela beleza pode levar à alienação e à perda da própria identidade. A mulher que se perde na busca pela perfeição acaba se distanciando de si mesma e de Deus.

07 – Qual a mensagem central do poema?

      A mensagem central é uma crítica à sociedade que impõe padrões de beleza e à superficialidade da cultura. O poema convida à reflexão sobre a importância de construir uma identidade autêntica e a superar a necessidade de se conformar com os padrões estabelecidos.

 

 

ARTIGO DE OPINIÃO: ENVELHECER - COM MEL OU FEL? AFFONSO R. SANT'ANNA - COM GABARITO

 ARTIGO DE OPINIÃO: Envelhecer – com mel ou fel?

           Affonso R. Sant'Anna

        Conheço algumas pessoas que estão envelhecendo mal. Desconfortavelmente. Com uma infelicidade crua na alma. Estão ficando velhas, mas não estão ficando sábias. Um rancor cobre-lhes a pele, a escrita e o gesto. São críticos azedos do mundo. Em vez de críticos, aliás, estão ficando cítricos sem nenhuma doçura nas palavras. Estão amargas. Com fel nos olhos.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh9SJv-nUd8blr7zJf1W0PVIfN0Vk_nFk5Ze4EkKcsDASo0b7N7aOE3pK-EH3exhfDy6DhZR1OQDJKXgrIfeDKCupYGj_qxmMndtgqJtOWRh-bC2UTrhe0hmHkR5o4v-GskQBTitzDckXYKtL2R5D1M3JsMdNwXW4zZzxY6j0kMFUxm-ZUCO-p64j8cIMY/s320/IDOSO.jpg


        E alguns desses, no entanto, teriam tudo para ser o contrário: aparentemente tiveram sucesso em suas atividades. Maior até do que mereciam. Portanto, a gente pensa: o que querem? Por que essa bílis ao telefone e nos bares? Por que esse resmungo pelos cantos e esse sarcasmo público que se pensa humor?

        Isto está errado. Errado, não porque esteja simplesmente errado, mas porque tais pessoas vivem numa infelicidade abstrusa. E, ademais, dever-se-ia envelhecer maciamente. Nunca aos solavancos. Nunca aos trancos e barrancos. Nunca como alguém caindo num abismo e se agarrando nos galhos e pedras, olhando em pânico para o buraco enquanto despenca. Jamais, também, como quem está se afogando, se asfixiando ou morrendo numa câmara de gás.

        Envelhecer deveria ser como plainar. Como quem não sofre mais (tanto) com os inevitáveis atritos. Assim como a nave que sai do desgaste da atmosfera e vai entrando noutro astral, e vai silente, e vai gastando nenhum-quase combustível, flutuando como uma caravela no mar ou uma cápsula no cosmos.

        Os elefantes, por exemplo, envelhecem bem. E olha que é uma tarefa enorme. Não se queixam do peso dos anos, nem da ruga do tempo, e, quando percebem a hora da morte, caminham pausadamente para um certo e mesmo lugar – o cemitério dos elefantes, e aí morrem, completamente, com a grandeza existencial só aos sábios permitida.

        Os vinhos envelhecem melhor ainda. Ficam ali nos limites de sua garrafa, na espessura de seu sabor, na adega do prazer. E vão envelhecendo e ganhando vida, envelhecendo e sendo amados, e, porque velhos, desejados. Os vinhos envelhecem densamente. E dão prazer.

        O problema da velhice também se dá com certos instrumentos. Não me refiro aos que enferrujam pelos cantos, mas a um envelhecimento atuante como o da faca. Nela o corte diário dos dias a vai consumindo. E, no entanto, ela continua afiadíssima, encaixando-se nas mãos da cozinheira como nenhuma faca nova.

        Vai ver, a natureza deveria ter feito os homens envelhecerem de modo diferente. Como as facas, digamos, por desgaste, sim, mas nunca desgastante. Seria a suave solução: a gente devia ir se gastando até desaparecer sem dor, como quem, caminhando contra o vento, de repente, se evaporasse. E aí iam perguntar: cadê fulano? E alguém diria: gastou-se, foi vivendo, vivendo e acabou. Acabou, é claro, sem nenhum gemido ou resmungo.

Affonso Romano de Sant’Anna. Jornal do Brasil, 30 de julho de 1987.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 1 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 240-241.

Entendendo o texto:

01 – Qual a principal crítica do autor ao modo como algumas pessoas envelhecem?

      O autor critica o rancor, a amargura e a negatividade que algumas pessoas demonstram ao envelhecer, em vez de abraçar a sabedoria e a serenidade que a idade pode trazer.

02 – Qual a imagem ideal de envelhecimento apresentada pelo autor?

      A imagem ideal apresentada é a de um envelhecimento tranquilo, sereno, como o de um elefante caminhando para a morte com sabedoria ou de um vinho que amadurece e ganha sabor com o tempo.

03 – Por que o autor compara o envelhecimento ao processo de amadurecimento de um vinho?

      A comparação com o vinho serve para ilustrar como o envelhecimento pode ser um processo de aprimoramento, em que a experiência e a maturidade agregam valor e profundidade à vida.

04 – Qual a função da metáfora da faca no texto?

      A metáfora da faca representa um envelhecimento ativo e útil, em que o objeto se desgasta com o uso, mas mantém sua função e eficiência.

05 – Qual a diferença entre o envelhecimento comparado a uma faca e o envelhecimento comparado a um objeto que enferruja?

      O envelhecimento como uma faca representa um processo de desgaste gradual, mas que mantém a utilidade do objeto, enquanto o envelhecimento como um objeto que enferruja simboliza a perda de função e a deterioração.

06 – Qual a visão de mundo transmitida pelo autor através do texto?

      O autor transmite uma visão otimista e serena sobre a vida, defendendo a ideia de que o envelhecimento pode ser uma fase rica em experiências e aprendizados.

07 – Qual a importância da aceitação da morte na visão do autor sobre o envelhecimento?

      A aceitação da morte é fundamental para um envelhecimento tranquilo e sereno, pois permite que a pessoa viva o presente de forma plena e sem medos.

08 – Quais os principais recursos linguísticos utilizados pelo autor para construir sua argumentação?

      O autor utiliza metáforas, comparações e exemplos para tornar sua argumentação mais clara e persuasiva.

09 – Qual a estrutura argumentativa do texto?

      O texto apresenta uma estrutura argumentativa clara, com a apresentação de uma tese inicial (a importância de envelhecer bem), seguida de exemplos e argumentos que a sustentam.

10 – Qual o efeito da repetição de palavras e expressões no texto?

      A repetição de palavras e expressões como "envelhecer", "sábio" e "amor" reforça a ideia central do texto e cria um ritmo que envolve o leitor.

 

 

CRÔNICA: OS DIFERENTES ESTILOS - (FRAGMENTO) - PAULO MENDES CAMPOS - COM GABARITO

 Crônica: Os Diferentes Estilos – Fragmento

              Paulo Mendes Campos

      Parodiando Raymond Queneau, que toma um livro inteiro para descrever de todos os modos possíveis um episódio corriqueiro, acontecido em um ônibus de Paris, narra-se aqui, em diversas modalidades de estilo, um fato comum da vida carioca, a saber: o corpo de um homem de quarenta anos presumíveis é encontrado de madrugada pelo vigia de uma construção, à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, não existindo sinais de morte violenta.

        Estilo interjetivo – Um cadáver! Encontrado em plena madrugada! Em pleno bairro de Ipanema! Um homem desconhecido! Coitado! Menos de quarenta anos! Um que morreu quando a cidade acordava! Que pena!

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEju_hHEHPyuCwIWJp8FcFejy-u7tGxeMG2JZsF9CAmsU_p13dP69zlFDyBMK1TD0senbwqluDPTmi3sNbr5UtAEWlSUVQwjKSzC-otzS_vWZBFcEQ0e9JvNrpeKlY5woVm_9cfF__T6xquGR9LSeKiWIcaHuOEsTF7v2TYeCp49jyuS1M1Q7eH6HVLfAqg/s320/ESTILO.jpg


        Estilo colorido – Na hora cor-de-rosa da aurora, à margem da cinzenta Lagoa Rodrigo de Freitas, um vigia de cor preta encontrou o cadáver de um homem branco, cabelos louros, olhos azuis, trajando calça amarela, casaco pardo, sapato marrom, gravata branca com bolinhas azuis. Para este o destino foi negro.

        [...]

        Estilo reacionário – Os moradores da Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram na manhã de hoje o profundo desagrado de deparar com o cadáver de um vagabundo que foi logo escolher para morrer (de bêbado) um dos bairros mais elegantes desta cidade, como se já não bastasse para enfear aquele local uma sórdida favela que nos envergonha aos olhos dos americanos que nos visitam ou que nos dão a honra de residir no Rio.

        Estilo então – Então o vigia de uma construção em Ipanema, não tendo sono, saiu então para passeio de madrugada. Encontrou então o cadáver de um homem. Resolveu então procurar um guarda. Então o guarda veio e tomou então as providências necessárias. Aí então eu resolvi te contar isto.

        [...]

        Estilo preciosista – No crepúsculo matutino de hoje, quando fulgia solitária e longínqua a Estrela-d’Alva, o atalaia de uma construção civil, que perambulava insone pela orla Sinuosa e  murmurante de uma lagoa serena, deparou com a atra e lúrida visão de um ignoto e gélido ser humano, já eternamente sem o hausto que vivifica.

        [...]

        Estilo sem jeito – Eu queria ter o dom da palavra, o gênio de um Rui ou o estro de um Castro Alves, para descrever o que se passou na manhã de hoje. Mas não sei escrever, porque nem todas as pessoas que têm sentimento são capazes de expressar esse sentimento. Mas eu gostaria de deixar, ainda que sem brilho literário, tudo aquilo que senti. Não sei se cabe aqui a palavra sensibilidade. Talvez não caiba. Talvez seja uma tragédia. Não sei escrever mas o leitor poderá perfeitamente imaginar o que foi isso. Triste, muito triste. Ah. se eu soubesse escrever.

        Estilo feminino – Imagine você, Tutsi, que ontem eu fui ao Sacha's, legalíssimo, e dormi tarde. Com o Tony. Pois logo hoje, minha filha, que eu estava exausta e tinha hora marcada no cabeleireiro, e estava também querendo dar uma passada na costureira, acho mesmo que vou fazer aquele plissadinho, como o da Teresa, o Roberto resolveu me telefonar quando eu estava no melhor do sono. Mas o que era mesmo que eu queria te contar? Ah, menina, quando eu olhei da janela, vi uma coisa horrível, um homem morto lá na beira da Lagoa. Estou tão nervosa!  Logo eu que tenho horror de gente morta!

        Estilo lúdico ou infantil – Na madrugada de hoje por cima, o corpo de um homem por baixo foi encontrado por cima pelo vigia de uma construção por baixo. A vítima por baixo não trazia identificação por cima. Tinha aparentemente por cima a idade de quarenta anos por baixo.

        [...]

        Estilo didático – Podemos encarar a morte do desconhecido encontrado morto à margem da Lagoa em três aspectos: a) policial; b) humano; e) teológico. Policial: o homem em sociedade; humano: o homem em si mesmo; teológico: o homem em Deus. Polícia e homem: fenômeno; alma e Deus: epifenômeno. Muito simples, como os senhores veem.

Paulo Mendes Campos. Os diferentes estilos. In: Para gostar de ler: crônicas. São Paulo. Ática, 1979. v. 4. p. 39-42.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 1 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 139-140.

Entendendo a crônica:

01 – Qual a principal característica do experimento literário realizado por Paulo Mendes Campos nesse fragmento?

      O autor utiliza a mesma cena como ponto de partida para explorar diferentes estilos de escrita, demonstrando a riqueza e a diversidade da linguagem e como ela pode influenciar a percepção do leitor sobre um mesmo fato.

02 – Como os diferentes estilos alteram a percepção do leitor sobre a cena do crime?

      Cada estilo atribui uma carga emocional e interpretativa diferente à cena, desde a objetividade do estilo policial até a subjetividade do estilo feminino. Isso demonstra como a linguagem pode moldar a forma como percebemos a realidade.

03 – Qual a função da repetição da mesma cena em diferentes estilos?

      A repetição da cena serve para destacar a versatilidade da linguagem e a capacidade do autor de criar diferentes atmosferas e perspectivas a partir de um mesmo fato.

04 – Qual o papel do humor na construção dos diferentes estilos?

      O humor é utilizado de forma estratégica em alguns estilos, como no estilo lúdico ou infantil, para criar um contraste com a seriedade do tema e provocar o leitor.

05 – Como a linguagem influencia a forma como percebemos a morte no fragmento?

      A linguagem utilizada em cada estilo influencia a forma como percebemos a morte, desde uma abordagem mais objetiva e fria até uma abordagem mais subjetiva e emotiva.

06 – Qual a crítica implícita à linguagem presente em alguns estilos?

      Alguns estilos, como o reacionário e o preciosista, são utilizados para satirizar determinados usos da linguagem, como o discurso ideológico ou a linguagem rebuscada e artificial.

07 – Qual a importância da experimentação formal na literatura?

      A experimentação formal, como a realizada por Paulo Mendes Campos nesse fragmento, permite que o autor explore novas possibilidades expressivas e desafie as convenções da linguagem literária, renovando a forma como contamos histórias.

 

 

FÁBULA: AS REALIDADES - LOUIS ARAGON - COM GABARITO

 Fábula: As Realidades

             Louis Aragon.

Era uma vez uma realidade

com suas ovelhas de lã real

a filha do rei passou por ali

E as ovelhas baliam que linda que está

A re a re a realidade.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj9aPoHv10arvJgAPwEfeqHmtwgw30n2Amk6sPAivjk8s_MHTxMfEQs0AKI-I6JCwcua3Kco7x16LwvMxVHJ0uP2wtCqJW22DFSgR-CTk2yxWBKHsqupOnLvfcNqlG6Ad2rOx23PJVH2cx2a3DUb83kzps0oytHFr_icEGciycerHjJl-RxwKul0E2b_Dk/s320/LA.jpg


 

Na noite era uma vez

uma realidade que sofria de insônia

Então chegava a madrinha fada

E realmente levava-a pela mão

a re a re a realidade.

 

No trono havia uma vez

um velho rei que se aborrecia

e pela noite perdia o seu manto

e por rainha puseram-lhe ao lado

a re a re a realidade

 

CAUDA: dade dade a reali

dade dade a realidade

A real a real

idade idade dá a reali

ali

a re a realidade

era uma vez a REALIDADE.

Louis Aragon.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 3 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 51.

Entendendo a fábula:

01 – Qual a principal característica da realidade apresentada no início da fábula?

      A principal característica da realidade no início da fábula é a sua natureza idealizada e quase mágica. As ovelhas baliam elogiando a beleza da filha do rei, criando uma atmosfera irreal e quase onírica.

02 – Que papel a madrinha fada desempenha na vida da realidade que sofre de insônia?

      A madrinha fada atua como uma figura salvadora e confortante na vida da realidade insone. Ela a leva pela mão, sugerindo um gesto de carinho e proteção, aliviando assim o sofrimento da realidade.

03 – Qual a função da realidade no trono, ao lado do velho rei?

      A realidade, ao lado do velho rei, parece servir como uma companhia e um conforto. Ela é colocada como rainha, indicando uma posição de destaque e importância, mesmo que o rei esteja aborrecido.

04 – Qual o efeito da repetição da palavra "realidade" no poema?

      A repetição constante da palavra "realidade" cria um ritmo hipnótico e enfatiza a centralidade do tema. Ao mesmo tempo, a repetição pode gerar um efeito de estranhamento, questionando a própria natureza da realidade.

05 – Qual a possível interpretação da "cauda" do poema?

      A "cauda" do poema, com a repetição frenética da palavra "realidade", pode ser interpretada como uma espécie de mantra ou incantatório, reforçando a ideia de que a realidade é uma construção constante e multifacetada. A repetição também pode sugerir uma sensação de vertigem ou de perda de controle diante da complexidade da realidade.