Peça teatral: Música para cortar os pulsos
Cena 1: Nomes
Ricardo
O nome dele é Felipe.
Felipe
O nome dela é Isabela.
Isabela
O nome dela é Rosalind.
Ricardo
“Quando eu te vi/ eu te amei/ e você
sorriu/ porque você soube.”
Isabela
“Ri das cicatrizes quem nunca foi
ferido.”
Ricardo
“Existe amor que não seja à primeira
vista?”
Quando o Felipe entrou na sala, eu
sabia que o amaria.
Porque eu sou fraco demais para pessoas
apaixonantes e o Felipe era apaixonante. (Pausa) Depois que ele
conversou comigo e saiu da sala, eu já tinha certeza.
Felipe
O nome disso é desalento: quando você
não se interessa realmente por ninguém e se sente oco e não se sente bem porque
se sente assim. Eu não sou solitário, nem tenho qualquer problema de
relacionamento. Pelo contrário, eu tenho vários amigos, encontro pessoas o
tempo todo. E eu acabo convivendo com um monte de meninas em volta de mim, meninas
muito bonitas e interessantes, por quem eu me sinto atraído. E eu fico com elas
e é legal e... E é isso. Depois eu não consigo sentir realmente mais nada.
Eu terminei recentemente um namoro de
um certo tempo. Eu gostava dela, mas era como se nunca tivesse de verdade
dentro daquilo, como se nessa hora eu fosse o dublê de mim
mesmo. (Tentando explicar.) Funciona assim: eu sou o galã, o
personagem principal da minha vida. Eu falo o texto do jeito certo, sou verdadeiro,
carismático, razoavelmente inteligente e sedutor – na verdade, eu sou tímido,
mas é incrível como as pessoas se sentem atraídas por isso. Só que nas
sequências de perigo sentimental, o menor que seja, eu mando chamar meu dublê.
Quem vê o filme pensa que sou eu mesmo ali, vivendo aquilo. Mas eu sei que não.
Ricardo
O nome disso é projeção. Eu sou
esse cara que se apaixona por um monte de gente, o tempo todo, mas eu juro que
são coisas diferentes, de jeitos específicos. Amores dentro de mim são
como meios de transporte, cada um tem o seu lugar – a água para os barcos, o
céu para os aviões, as estradas para os carros... Eu namorava há dois anos
quando o Felipe apareceu. E eu precisava me apaixonar de novo, porque eu sou
assim... E porque existe essa coisa dentro da gente, muito grande e muito
consciente, mas que a gente não controla, que nunca esquece a delícia que é
começar. Então eu projetei nele todos os meus novos começos: ele era um cara
descobrindo um monte de coisas que eu achava que já sabia e que me lembrava outras
que eu já tinha esquecido. E eu me via nele, eu via ele em mim.
O nome disso é identificação. Porque na
verdade a gente quer preencher nossos vazios não com o que nos falta ou
completa por ser diferente, mas com o que é confortavelmente familiar.
Isabela
O nome disso é substituição. A Rosalind
é a maior das personagens esquecidas de todos os tempos. Quase ninguém sabe,
mas ela está ali escondida na peça Romeu e Julieta, de Shakespeare, que
todo mundo conhece. Agora, quem lembra que Romeu era apaixonado pela Rosalind,
antes de conhecer a Julieta, se nem ele mesmo lembra? E eu não tô falando de um
tempo longo, não, eu tô falando de minutos. Ele ama a Rosalind, mas,
quando a Julieta aparece, uma nova realidade surge – é um Big Bang do amor,
como se não tivesse existido nada antes. Mas tinha a Rosalind. Isso não tem nem
nome: a rapidez com que o Romeu simplesmente aniquila a Rosalind da cabeça dele
é quase desumana. E o pior é que nós, como público, não nos preocupamos com o
que sente a Rosalind, porque ela já é apresentada como um acessório na história
do Romeu. Ela já nasce esquecida.
Eu ousaria acreditar que o mundo é
feito das Rosalinds, que sofrem bem mais, do que das Julietas, que se deliciam
na volúpia das noites de paixão. Metade do mundo, pelo menos. A outra
metade é de Romeus, que estão infinitamente confusos e em conflito entre uma e
outra – sejam esses Romeus homens ou mulheres.
Ricardo
Dizem que o amor é cego e eu acho que
essa frase tem mais de uma leitura. Ele é cego não porque não enxerga ou não
percebe a natureza do que está na sua frente, mas também porque é capaz de ser
seletivo e não misturar paisagens que estão lado a lado. Existem ali caminhos
que não se acessam. Nem todo mundo acredita, mas eu continuei amando realmente
meu namorado depois que eu também já tinha me apaixonado pelo Felipe. A água
para os barcos, o ar para os aviões... Eu não sei se isso tem nome.
Felipe
“Se o amor é cego, ele não acerta o
alvo.”
[...]
Isabela
Então essa palavra “amor” na verdade
define o quê? O amor nunca é só amor. O amor é um monte de outros sentimentos
misturados. Que, às vezes, tem nome, às vezes não. Mas é uma mistura
ilusionista, nunca um elemento puro. Como a luz branca. Ou... (jogando
fora...) sei lá, a Coca-Cola!
Felipe
Mês passado eu fui à festa de
aniversário de oito anos da minha priminha. Na hora do “com quem será” começou
uma confusão enorme. Falaram vários nomes ao mesmo tempo e os meninos começaram
a brigar pela posição de pretendente oficial. Aquilo se estendeu, e eu e meus
outros primos mais velhos demos corda pras crianças. Só sei que em dado momento
eram uns quatro em cima da garota falando coisas como “eu, eu, escolhe eu!”,
“fica comigo”, “eu gosto muito mais de você”, e eles se batiam e se
empurravam... Oito anos. OITO. Isso poderia fazer da minha prima a garota mais
popular e cobiçada da escola, mas ela estava odiando tudo aquilo com uma
sinceridade tão intensa. Claramente, o que ela mais desejava era ficar em paz.
O amor, eu vi, pode doer desde cedo.
Mas, mais do que isso, desde sempre ele
vai precisar de espaço pra brotar.
Ricardo
Quanto tempo você precisa pra
gostar de alguém? Quanto tempo você precisa pra deixar alguém?
Isabela
“Ora, rapaz! Incêndio a incêndio cura./
Uma dor faz minguar a mais antiga./ Desvirar do virar sara a tontura./ Um
desespero a velha dor mitiga./ Deixa os olhos pegar nova infecção,/ para que da
velha possas ficar são.”
Ricardo
O nome disso é substituição?
Isabela
Então o nome da Rosalind está lá
escrito pra gente lembrar que tudo começa em algum lugar, tudo tem um antes.
Que há coisas que passam despercebidas e pessoas que ficam pelo caminho. Eu
imagino a Rosalind chegando em casa de volta do baile em que o Romeu conhece a
Julieta, toda descabelada e com a maquiagem borrada, dizendo pra mãe dela:
“Eu nunca mais vou amar ninguém!”.
Foi mais ou menos isso o que eu fiz,
quando Gabriel me deixou. Ele era o meu Romeu.
Ricardo
Romeu, Mercúcio, Rosalind,
Julieta...
Felipe
O meu nome é Felipe.
Ricardo
O meu nome é Ricardo.
Isabela
O meu nome é Isabela. Eu
tenho um coração partido e eu nunca mais vou amar ninguém.
GOMES,
Rafael. Música para cortar os pulsos: monólogos sentimentais para corações
juvenis. São Paulo: Leya, 2012. p. 13-21.
Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na
língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição
– São Paulo, 2016 – Moderna – p. 204-7.
Entendendo a peça teatral:
01 – A primeira cena da peça
apresenta ao público sentimentos íntimos de cada um dos personagens. Que
sentimentos são esses?
Felipe sofre porque nunca se apaixonou
de verdade, tendo vivido apenas relacionamentos superficiais; Ricardo
está apaixonado por Felipe; Isabela está magoada porque Gabriel rompeu o
namoro.
02 – Em lugar de apresentar
um dos personagens da peça, como fazem Ricardo e Felipe, Isabela cita Rosalind.
a) Quem é Rosalind?
Uma personagem da peça de Shakespeare. Romeu era apaixonado por ela
antes de conhecer Julieta.
b) Na encenação, em que momento você acha que o público entende por que essa personagem ocupa a atenção de Isabela? Justifique.
No final da cena, Isabela associa explicitamente o sofrimento
de Rosalind ao fim de seu namoro com Gabriel, mas é possível intuir isso
antes, quando se percebe sua empatia com a personagem shakesperiana.
03 – Ao explicar seus
sentimentos, Felipe faz referência a elementos que são típicos do universo do
cinema. Identifique os tipos de personagem de ficção que ele cita e explique
por que o representam.
Felipe cita o
galã e o dublê. Ele é o primeiro na maior parte do tempo, quando consegue
a atenção das pessoas por seu charme pessoal; no entanto, assume a figura
do dublê quando deseja evitar um comprometimento emocional maior.
04 – Explique a relação que
Ricardo faz entre seu comportamento amoroso e os meios de transporte.
Ricardo entende
que pode experimentar vários sentimentos simultânea e separadamente,
porque estes lembram os meios de transporte: cada um ocupa um espaço próprio.
05 – Embora um texto teatral
seja criado para ser encenado e, portanto, não necessite de títulos,
o dramaturgo optou por usá-los. Justifique a escolha de “Nomes” para a primeira
cena.
Além de propor um
jogo com o nome dos personagens, que ora apresentam um ao outro ora a
si mesmos, o texto trata da aplicação dos nomes “desalento”, “projeção”,
“identificação” e “substituição” para explicar as experiências afetivas vividas
por eles.
06 – Volte à página 205 e
observe a foto desta cena feita em uma das apresentações de Música para
cortar os pulsos.
a) O subtítulo da peça é “Monólogos sentimentais para corações juvenis”. O que é um monólogo?
É uma cena de peça em que o ator fala consigo mesmo ou se dirige ao
público para expressar seus pensamentos. Não há diálogo com outros personagens.
b) O cenário e a expressão corporal dos atores na foto confirmam a ideia de que a peça é formada por monólogos? Por quê?
Embora ocupem o mesmo palco, os atores estão em espaços
individualizados, marcados por cores diferentes. O corpo está voltado para a
frente, sugerindo que falam para o público e não entre si, algo que é
reforçado pela presença dos microfones.
c) As falas da primeira cena também criam essa impressão? Justifique.
Sim. Nas falas, os jovens referem-se a outros personagens, mas nunca
interagem com eles.
07 – Observe novamente os
elementos da foto da página 205. Se você fosse o diretor da encenação, faria
alguma alteração no cenário, no figurino ou na disposição dos atores? Se a
resposta for positiva, indique qual(is). Se for negativa, justifique por
que considerou ideal a forma escolhida.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: A encenação fotografada reforça alguns aspectos importantes
do texto, como a solidão dos personagens e o fato de estarem envolvidos em um
processo de reflexão sobre os próprios sentimentos. As alterações sugeridas
precisarão levar em conta esses aspectos.