Reportagem: AS MONTANHAS SAGRADAS
A vida nos vales e picos nevados dos
Andes peruanos é quase a mesma do tempo dos incas. Mas tudo pode mudar com o
aquecimento global
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Andes peruanos é quase a mesma do tempo dos incas. Mas tudo pode mudar com o
aquecimento global
Maria Emília Coelho
Passo lento e respiração profunda. Em
meio ao ar rarefeito e à cegueira branca de uma nevasca, surge Nicolasa. A
menina caminha firme atrás da vaca desgarrada do rebanho. Acredita que os apus,
ou os espíritos das montanhas, encontram-se ao seu lado e vão ajudá-la a
recuperar o animal perdido. Estamos a 5 mil metros de altitude, a caminho de
Ausangate, um dos picos nevados da Cordilheira Vilcanota, uma das zonas mais
inóspitas dos Andes peruanos. Justamente por isso, é um lugar onde as
comunidades rurais experimentam poucas mudanças nos costumes ancestrais. As
formações gigantes, imponentes e disformes, respeitosamente chamadas de apus,
ocupam o topo do panteão das divindades incas. Aqui, são as montanhas que
mandam, logo descubro, enquanto o ar penosamente enche meus pulmões.
Nossa caminhada por esse solo sagrado
começou na tarde anterior. Depois de três horas de ônibus a partir de Cuzco (a
antiga capital inca), colocamos o pé no chão quando alcançamos o vale de
Pitumarca. A partir desse ponto, são cinco dias sem energia elétrica, banho
quente e comunicação com o resto do planeta. Nosso objetivo é percorrer uma
rota ainda pouco conhecida de 52 quilômetros de subidas e descidas, entre
comunidades indígenas e picos nevados, até o topo, pela face sudeste do apu.
Além de ostentar o título de maior
montanha do sul do Peru, com 6.384 metros, Ausangate é sagrada para os
descendentes dos incas. Trata-se de uma espécie de chege dos apus, uma
autoridade suprema entre todas as montanhas. Não é pouca coisa. Na comunidade
de Chillca, a 4.300 metros de altitude, os nativos contam que o apu
todo-poderoso chegou a decidir batalhas para os incas diante dos invasores
espanhóis. Certa vez, teria lançado uma tempestade de granizo vermelho e de
relâmpagos sobre os soldados, enquanto o povo se escondia da fúria de suas
armas. “Graças ao apu, nossos cultivos e animais estão bonitos e saudáveis”,
declara o músico Orlando Garcia, líder da comunidade.
BERÇO
DE LHAMAS E ALPACAS
Ao longo do caminho, enquanto avançamos
pela planície alva do vale de Pampa Uyuni, bando de lhamas e alpacas aparecem
para compor o cenário. Diz a lenda que as lagoas da região são o berço sagrado
desses animais, símbolos maiores dos Andes. Os pastores de Ausangate estão
entre os pioneiros na domesticação dos camelídeos. A atividade, que rende lã e
carne, é a principal fonte de renda da população local. No entanto, está sendo
abandonada pelos jovens. Ao pararmos para conversar com uma família isolada nas
alturas, o patriarca explica que os mais novos preferem arriscar a vida em
cidades como Cuzco e Lima em busca de trabalho e de uma vida com mais
“comodidades”.
A vida nessas alturas é de fato
difícil. À medida que subimos, o clima fica mais frio e o ar mais rarefeito. A
respiração parece falhar na óbvia tarefa de levar ar aos pulmões. As nuvens
ganham espaço e o azul do céu pouco a pouco vira cinza. É possível sentir grau
a grau a temperatura cair até o tempo fechar de vez. Os vapores de água da
atmosfera se congelam e a neve vem abaixo. O frio vence as roupas, a pele, a
carne e chega aos ossos. O fôlego some a cada passo, mas a beleza do lugar faz
esquecer o cansaço. Tudo para chegar a Machucaray, a 4.800 metros de altura, ao
pé do poderoso nevado.
A paisagem branca do Quelccaya, o
nevado de 5.470 metros que avistamos, me faz lembrar do documentário Uma
Verdade Inconveniente, do vice-presidente dos Estados Unidos Al Gore, vencedor
do Oscar. A montanha, considerada o maior glaciar tropical do mundo, é um
exemplo dos estragos decorrentes do processo de aquecimento global, provocado
pela crescente emissão de gases de efeito estufa na atmosfera. Segundo os
cientistas, o ritmo de derretimento do Quelccaya aumentou dez vezes nos últimos
15 anos. Estudos do geólogo americano Lonney Thompson, que investiga o fenômeno
no Peru desde 1974, apontam que, a longo prazo, o degelo afetará o clima e o
abastecimento de água para 70% da população do país.
A
AMEAÇA AO GELO DAS MONTANHAS
Para os nativos da região, no entanto,
os efeitos das mudanças climáticas provocadas pelo homem já batem à porta.
“Estamos preocupados”, conta Orlando, diante de uma pequena lagoa formada há
poucos anos pelo derretimento do gelo. “Antigamente havia mais picos nevados.
Em algumas montanhas, as neves eternas estão desaparecendo”.
Parece não restar dúvida de que os apus
terão muito trabalho para manter geladas as montanhas peruanas. Pensando nisso,
acompanho a oferenda à Mãe Terra (Pachamama) protagonizada pelos moradores da
montanha. O ritual típico do universo religioso andino consiste em presentear a
natureza com vinhos, sementes e folhas de coca, enquanto o xamã ora em quíchua.
Nas primeira horas da manhã, as montanhas se colorem de tons ocres – do amarelo
ao vermelho, com pitadas de cinza e verde, refletindo o relevo policromático
das formações geológicas de 250 milhões de anos. Avistamos as vicunhas, espécie
não domesticada de camelídeo andino – uma manada de 21 indivíduos, entre
adultos e jovens, dá uma amostra da vida silvestre. A pelagem fina do animal
tem alto valor comercial. Por décadas, esteve à beira da extinção por culpa de
caçadores ilegais em busca de lã. Uma iniciativa do governo peruano em parceria
com as populações indígenas mudou este cenário e a população de vicunhas
cresce, em média, 8% ao ano.
O
ESPÍRITO DOS VALENTES
Quando os lhamas aparecem, as vicunhas
fogem, assustadas. Nossos olhos então são atraídos por uma formação
sedimentária em tons vermelhos, amarelos e cinzas. São pedras gigantes nas
quais é possível imaginar, sem muita alucinação, rostos humanos esculpidos.
Conta a mitologia inca que o deus sol converteu essas montanhas em soldados,
chamados de pururaucas, para defender Cuzco durante a invasão do reino Chanca,
antes da chegada dos espanhóis. Segundo a lenda, os guerreiros de pedra
representam o espírito dos valentes.
Nosso destino é ainda mais além: a
comunidade de Osefina, a 4.600 metros. Ali, as mulheres usam técnicas
imemoriais para produzir tecidos de lã de alpaca. Vivem, praticamente, sem
contato com o modo de vida moderna e falam apenas o quíchua. “Gosto quando
gente de fora vem conhecer nossa arte”, conta Eulogia Antaccasa, coordenadora
da Associação das Tecelãs de Huayna Anta. A ideia do grupo é capacitar suas
artesãs para que tecidos tingidos com plantas locais sejam comercializados
mundo afora.
Na caminhada de volta ao vale de
Pitumarca, seguimos o caminho das águas presenteadas pelos apus. Elas cortam os
Andes e formam o rio Vilcanota, que mais adiante se transforma em urubamba para
se encontrar com o Apurimac e formar o Ucayalli. Este flui no sentido norte até
se juntar ao Maranõn e dar origem ao nosso rio Amazonas, nas proximidades de
iquitos. O destino das águas – das alturas andinas até as terras baixas da
Amazônia – é motivo suficiente para saudarmos o Ausangate. Mas a última
saudação vem à tona quando fico sabendo que, para os descendentes dos incas,
essas águas retornam todas as noites aos Andes pela Via Láctea, conhecida ali como
rio das Estrelas.
COELHO, Maria Emília.
As montanhas sagradas. Horizonte Geográfico, São Paulo, Horizonte, n° 122, p.
46-53, abril 2009.
Fonte: Língua
portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição –
Curitiba – 2010. p. 277-9.
Entendendo a reportagem:
01 – O texto lido foi
escrito com qual finalidade? Em que suporte (lugar físico ou virtual) ele foi
veiculado?
O texto foi escrito com a finalidade de
apresentar informações sobre o impacto do degelo provocado pelo aquecimento
global na região dos Andes peruanos. Ele foi veiculado em uma revista temática
chamada Horizonte Geográfico.
02 – Releia a linha-fina (ou
subtítulo) da reportagem. Que função ela exerce?
Ela anuncia o conteúdo da matéria
jornalística.
03 – Contextualize a frase
que dá início à reportagem: “Passo lento e respiração profunda”. Quem é o seu
enunciador? A que ela se refere?
O enunciador é o jornalista responsável
pela matéria. A frase se refere à dificuldade enfrentada pelo profissional de
caminhar e respirar a 5 mil metros de altitude, na cordilheira Vilcanota.
04 – Segundo o especialista
Lonney Thompson, qual é a principal consequência do degelo nos Andes peruanos?
Segundo o geólogo
americano, a longo prazo o degelo afetará o clima e o abastecimento de água
para 70% da população do Peru.
05 – Depois da leitura da
reportagem, você afirmaria que a religiosidade é uma dimensão importante da
vida das comunidades peruanas andinas?
Sim. O texto faz várias referências à
mitologia e aos rituais incas, evidenciando a relação das pessoas com o
sagrado.
06 – No texto, pessoalidade
e impessoalidade se mesclam para transmitir informações ao leitor. Aponte pelo
menos uma passagem de teor mais pessoal e uma de teor impessoal.
Teor pessoal:
“Nossa caminhada por esse solo sagrado começou na tarde anterior.”; teor
impessoal: “Os pastores de Ausangate estão entre os pioneiros na domesticação
de camelídeos”.