sexta-feira, 18 de março de 2022

CRÔNICA: O SEGREDO - FERNANDO SABINO - COM GABARITO

 Crônica: O segredo

              Fernando Sabino

        [...]

        Estava empenhado nisso, quando senti que havia alguém em pé atrás de mim. Uma voz de homem, que soou familiar aos meus ouvidos, perguntou:

        -- Que é que você está fazendo?

        Sem me voltar, tão entretido estava com as formigas, expliquei o que se passava. Logo consegui restabelecer o tráfego delas, recompondo a fila através da ponte. O homem se agachou a meu lado, dizendo que várias formigas seguiam por um caminho, uma na frente de duas, uma atrás de duas, uma no meio de duas. E perguntou:

        -- Quantas formigas eram?

        Pensei um pouco, fazendo cálculos. Naquele tempo eu achava que era bom em aritmética: uma na frente de duas faziam três; uma atrás de duas eram mais três; uma no meio de duas, mais três.

        -- Nove! Exclamei, triunfante.

        Ele começou a rir e sacudiu a cabeça, dizendo que não: eram apenas três, pois formiga só anda em fila, uma atrás da outra. 

        Então perguntei a ele o que é que cai em pé e corre deitado.

        -- Cobra? – ele arriscou, enrugando a testa, intrigado. 

        Foi a minha vez de achar graça:

        -- Que cobra que nada! É a chuva – e comecei a rir também.

        -- Você sabe o que é que caindo no chão não quebra e caindo n'água quebra?

        -- Sei: papel.

        Gostei daquele homem: ela sabia uma porção de coisas que eu também sabia. Ficamos conversando um tempão, sentados na beirada da caixa de areia, como dois amigos, embora ele fosse cinquenta anos mais velho do que eu, segundo me disse. Não parecia. Eu também lhe contei uma porção de coisas. Falei na minha galinha Fernanda, nos milagres que um dia andei fazendo, e de como aprendi a voar como os pássaros, e a minha ventura de escoteiro perdido na selva, as espionagens e investigações da sociedade secreta Olho de Gato, o sósia que retirei do espelho, o Birica, valentão da minha escola, o dia em que me sagrei campeão de futebol, o meu primeiro amor, o capitão Patifaria, a passarinhada que Mariana e eu soltamos. Pena que minha amiga não estivesse por ali, para que ele a conhecesse. Levei-o a ver o Godofredo em seu poleiro:

        -- Fernando! – berrou o papagaio, imitando mamãe: – Vem pra dentro, menino! Olha o sereno!

        -- Hindemburgo apareceu correndo, a agitar o rabo. Para surpresa minha, nem o homem ficou com medo do cachorrão, nem este o estranhou; parecia feliz, até lambeu-lhe a mão. Depois mostrei-lhe o Pastoff no fundo do quintal, mas o coelho não queria saber de nós, ocupado em roer uma folha de couve.

        O homem me disse que tinha de ir embora – antes queria me ensinar uma coisa muito importante:

        -- Você quer conhecer o segredo de ser um menino feliz para o resto da sua vida?

        -- Quero – respondi.

        O segredo se resumia em três palavras, que ele pronunciou com intensidade, mãos nos meus ombros e olhos nos meus olhos:

        -- Pense nos outros.

        Na hora achei esse segredo meio sem graça. Só bem mais tarde vim a entender o conselho que tantas vezes na vida deixei de cumprir. Mas que sempre deu certo quando me lembrei de segui-lo, fazendo-me feliz como um menino.

        O homem se curvou para me beijar na testa, se despedindo:

        -- Quem é você? – perguntei ainda.

        Ele se limitou a sorrir, depois disse adeus com um aceno e foi-se embora para sempre. 

In: SABINO, Fernando, O Menino no espelho. São Paulo, Record, 1984. p. 15-18.

Fonte: Português – Linguagem & Participação, 6ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder Rivas – Ed. Saraiva, 1ª edição – 1998, p. 64-7.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Soar: fazer barulho, produzir som.

·        Poleiro: vara onde as aves pousam e dormem.

·        Entretido: ocupado; distraído.

·        Pronunciar: falar, expressar verbalmente, articular.

·        Recompondo: formando outra vez.

·        Intensidade: força.

·        Intrigado: curioso; interessado; desconfiado.

·        Aceno: gesto de mão em movimento.

·        Sósia: alguém tão semelhante que parece igual.

02 – Quem são as personagens do texto? Descreva cada uma delas.

      As personagens do texto são um menino e um adulto. O primeiro é arteiro, alegre, comunicativo e mistura fantasia e realidade. O adulto é muito simpático, parece conviver bem com crianças.

03 – Nem todas as características das personagens são claramente apontadas pelo autor: algumas são percebidas pelo leitor por meio de inferências que o texto sugere. A partir dos trechos abaixo, que inferência poderíamos fazer:

a)   Sobre o garoto, em “Sem me voltar, tão entretido estava com as formigas, expliquei o que se passava. Logo consegui restabelecer o tráfego delas, recompondo a fila através da ponte”?

É provavelmente um garoto sensível, imaginativo e bom observador, pois é capaz de dedicar-se a algo tão lento como a caminhada das formigas.

b)   Sobre o adulto em “Ficamos conversando um tempão, sentados na beirada da caixa de areia [...] lhe contei uma porção de coisas [...] tinha de ir embora – antes queria me ensinar uma coisa muito importante”?

Sugestão: gostava de crianças, tinha facilidade de conversar com elas, despertava simpatia e confiança, tinha experiência de vida.

04 – O menino revela simpatia pelo estranho, por reconhecer semelhanças entre eles. Indique o trecho em que isso ocorre.

      “Gostei daquele homem: ele sabia uma porção de coisas que eu também sabia”.

05 – Que segredos sobre sua própria vida o menino revela ao estranho?

      Falou da galinha Fernanda, dos milagres que andou fazendo, de como aprendeu a voar como os pássaros, das suas aventuras como detetive e escoteiro, do sósia que retirou do espelho, do valentão da escola, do dia em que foi campeão de futebol, do primeiro amor, do capitão Patifaria, da passarinhada que soltou junto com Mariana. Levou-o para ver o papagaio Godofredo.

06 – Dessa série de acontecimentos que o menino conta ao estranho, todos lhe parecem verdadeiros? Faça um comentário a respeito.

      Alguns são parte do mundo de fantasia que envolve seu universo de brincadeiras, como o sósia que retirou do espelho e o fato de ter aprendido a voar como os pássaros.

07 – Quando o menino entendeu o conselho do homem? Por quê?

      O menino entendeu o conselho do homem muito mais tarde. Faltava-lhe maturidade.

08 – Por que o menino deixou de seguir o conselho que o homem lhe dera?

      Provavelmente, porque na maioria das vezes estava preocupado consigo mesmo e não com os outros, como age tanta gente.

09 – Qual é a sua opinião sobre o conselho do homem?

      Resposta pessoal do aluno.

 

CRÔNICA: FESTA - WANDER PIROLI - COM GABARITO

 Crônica: Festa

              Wander Piroli

        Atrás do balcão, o rapaz de cabeça pelada e avental olha o crioulão de roupa limpa e remendada, acompanhado de dois meninos de tênis branco, um mais velho e outro mais novo, mas ambos com menos de dez anos.

        Os três atravessam o salão, cuidadosa mas resolutamente, e se dirigem para o cômodo dos fundos, onde há seis mesas desertas.

        O rapaz de cabeça pelada vai ver o que eles querem. O homem pergunta em quanto fica uma cerveja, dois guaranás e dois pãezinhos.

        – Duzentos e vinte.

        O preto concentra-se, aritmético, e confirma o pedido.

        – Que tal o pão com molho? – sugere o rapaz.

        – Como?

        – Passar o pão no molho da almôndega. Fica muito mais gostoso.

        O homem olha para os meninos.

        – O preço é o mesmo – informa o rapaz.

        – Está certo.

        Os três sentam-se numa das mesas, de forma canhestra, como se o estivessem fazendo pela primeira vez na vida.

        O rapaz de cabeça pelada traz as bebidas e os copos e, em seguida, num pratinho, os dois pães com meia almôndega cada um. O homem e (mais do que ele) os meninos olham para dentro dos pães, enquanto o rapaz cúmplice se retira.

        Os meninos aguardam que a mão adulta leve solene o copo de cerveja até a boca, depois cada um prova o seu guaraná e morde o primeiro bocado do pão.

        O homem toma a cerveja em pequenos goles, observando criteriosamente o menino mais velho e o menino mais novo absorvidos com o sanduíche e a bebida.

        Eles não têm pressa. O grande homem e seus dois meninos. E permanecem para sempre, humanos e indestrutíveis, sentados naquela mesa.

Para gostar de ler – Contos. São Paulo, Ática, 1984. v. 9. p. 73.

Fonte: Português – Linguagem & Participação, 6ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder Rivas – Ed. Saraiva, 1ª edição – 1998, p. 89-91.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Resolutamente: decididamente.

·        Cômodo: quarto, compartimento.

·        Concentrar-se: dirigir o pensamento de modo intenso para.

·        Canhestra: desajeitada.

·        Cúmplice: pessoa que participa, com outra, de algum fato.

·        Criteriosamente: sensatamente, com critérios.

·        Absorvidos: concentrados em.

·        Indestrutíveis: que não podem ser destruídos.

02 – Substitua as palavras em destaque por sinônimos:

a)   O rapaz de cabeça pelada e avental olha o crioulão.

Careca / sem cabelos; homem negro.

b)   Os três atravessam o salão resolutamente e se dirigem para o cômodo dos fundos.

Decididamente; vão; sala / compartimento.

c)   Os três sentam-se de forma canhestra.

Desajeitadamente.

d)   Os meninos aguardam que a mão adulta leve solene o copo até a boca.

Esperam; do pai; formal.

03 – Ao entrar no bar, qual era a grande preocupação do pai dos meninos?

      A grande preocupação do pai era com o preço do que iam pedir.

04 – O que revelou o comportamento do rapaz de cabeça pelada?

      Revelou uma certa simpatia pelo homem e pelas crianças.

05 – Explique melhor o trecho: “Os três sentam-se numa das mesas, de forma canhestra, como se o estivessem fazendo pela primeira vez na vida.”

      Eles eram tão pobres que se sentiam mal no bar modesto; além disso vivam uma experiência nova.

06 – Por que os meninos esperam o pai começar a beber para depois comerem?

      Possivelmente porque o ambiente é estranho e eles se orientam pelo comportamento do pai.

07 – O que revela a atitude do pai ao ficar observando os meninos?

      O grande amor que ele sente pelas crianças, o orgulho e a alegria por eles estarem comendo ali.

08 – Que tipo de pessoas são o pai dos meninos e o garçom?

      São homens simples e sensíveis.

09 – Releia atentamente o último parágrafo do texto e explique:

a)   Por que o negro é o “grande homem”?

Ele representa o homem simples, do povo, pobre mas digno.

b)   O que significa permanecerem para sempre “humanos e indestrutíveis sentados naquela mesa”?

O narrador quer mostrar que a figura humilde do homem que ama seus filhos pode permanecer eterna.

10 – Justifique o título do texto.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Provavelmente, por nunca terem entrado num bar para comer. Ai se tornou um motivo de festa.

11 – Escolha, entre as alternativas abaixo, o que o texto “Festa” transmitiu a você?

        Solidariedadedignidade – desprezo – preconceito – sofisticação – simplicidade.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Solidariedade, dignidade e simplicidade.

 

 

 

CRÔNICA: FESTA DE ANIVERSÁRIO - FERNANDO SABINO - COM GABARITO

 Crônica: Festa de aniversário

              Fernando Sabino

     Leonora chegou-se para mim, a carinha mais limpa deste mundo:

        -- Engoli uma tampa de Coca-Cola. 

        Levantei as mãos para o céu: mais esta, agora! Era uma festa de aniversário, o aniversário dela própria, que completava seis anos de idade. Convoquei imediatamente a família:

        -- Disse que engoliu uma tampa de Coca-Cola.

        A mãe, os tios, os avós, todos a cercavam, nervosos e inquietos.

        -- Abra a boca, minha filha. Agora não adianta: já engoliu. Deve ter arranhado. Mas engoliu como? Quem é que engole uma tampa de cerveja? De cerveja não: de Coca-Cola. Pode ter ficado na garganta -- urgia que déssemos uma providência, não ficássemos ali, feito idiotas. Tomei-a ao colo: -- Vem cá, minha filhinha, conta só para mim. Você engoliu coisa nenhuma, não é isso mesmo?

        -- Engoli sim, papai -- ela afirmava com decisão.

        Consultei o tio, baixinho:

        -- O que é que você acha?

        Ele foi buscar uma tampa de garrafa, separou a cortiça do metal:

        -- O que você engoliu: isto... ou isto?

        -- Cuidado que ela engole outra -- adverti.

        -- Isto -- e ela apontou com firmeza a parte de metal.

        Não tinha dúvida: Pronto-Socorro. Dispus-me a carregá-la, mas alguém sugeriu que era melhor que ela fosse andando: auxiliava a digestão.

        No hospital, o médico limitou-se a apalpar-lhe a barriguinha, cético:

        -- Dói aqui, minha filha?

        Quando falamos em radiografia, revelou-nos que o aparelho estava com defeito: só no Pronto-Socorro da cidade.

        Batemos para o Pronto-Socorro da cidade. Outro médico nos atendeu com solicitude.

        -- Vamos já ver isto.

        Tirada a chapa, ficamos aguardando ansiosos a revelação. Em pouco o médico regressava:

        -- Engoliu foi a garrafa.

        -- A garrafa?! -- exclamei. Mas era uma gracinha dele, cujo espírito passava ao largo da minha aflição: eu não estava para graças. Uma tampa de garrafa! Certamente precisaria operar -- não haveria de sair por si mesma.

        O médico pôs-se a rir de mim:

        -- Não engoliu coisa nenhuma. O senhor pode ir descansado.

        -- Engoli -- afirmou a menininha.

        Voltei-me para ela:

        -- Como é que você ainda insiste, minha filha?

        -- Que eu engoli, engoli.

        -- Pensa que engoliu -- emendei.

        -- Isso acontece -- sorriu o médico -- até com gente grande. Aqui já teve um guarda que pensou ter engolido o apito.

        -- Pois eu engoli mesmo -- comentou ela, intransigente.

        -- Você não pode ter engolido -- arrematei, já impaciente. -- Quer saber mais que o médico?

        -- Quero. Eu engoli, e depois desengoli -- esclareceu ela.

        Nada mais havendo a fazer, engoli em seco, despedi-me do médico e bati em retirada com toda a comitiva. 

Quadrante. Rio de Janiro, Editora do Autor, 1962.

Fonte: Português – Linguagem & Participação, 6ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder Rivas – Ed. Saraiva, 1ª edição – 1998, p. 46-7.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é o conteúdo desta crônica?

      É de conteúdo humorístico, de mal-entendido que aconteceu durante a festa de aniversário.

02 – Por que ela é considerada uma crônica?

      Porque transforma um assunto corriqueiro, como uma festa de aniversário, em matéria para uma crônica.

03 – Como em todo texto narrativo, tem alguém que conta a história. Quem é o narrador deste texto?

      É o pai de Leonora.

04 – Quem são as personagens do texto?

      Leonora, seu pai, familiares e os médicos do pronto-socorro.

05 – Qual o fato que se narra nesse texto?

      O desespero de um pai que pensa que a filha engoliu uma tampa de refrigerante.

 

CONTO: UMA REVELAÇÃO INESPERADA - LUIZ GALDINO - COM GABARITO

 Conto: Uma revelação inesperada

            Luiz Galdino

        Giba iniciou, então, a distribuição do material. À medida que chamava, os boys pegavam os envelopes ou pacotes, ouviam as instruções e saíam pelo corredor interno.

        Zeca não perdia nada, atenção total nos gestos e palavras. E pelo que ouviu, concluiu que não havia grandes mistérios. As tarefas consistiam basicamente em entregar e retirar anúncios em jornais ou editoras, serviços de banco e correios, faturas para clientes e coisas do gênero. Exatamente o que imaginara: serviço de levar e trazer.

        Cada boy recebia o número de passes necessários para a condução, de acordo com o roteiro a ser percorrido. Reparou que eram passes escolares e animou-se com a ideia de se encontrar entre estudantes como ele.

        Por fim, ficaram apenas ele e mais um. O sujeito olhou para o seu lado com cara de poucos amigos, como se adivinhasse o que estava para acontecer. Quando pensou que Giba se dirigiria ao outro, ouviu na sua direção:

        — Hoje, você vai de acompanhante! Trate de aprender rapidinho, porque amanhã vai pra luta sozinho! Entendido?

        — Entendido — respondeu Zeca, levantando-se prontamente.

        — Não precisa ter pressa. Quando Maurício receber o material, você sai com ele.

        [...]

        Durante o intervalo em que aguardavam pelo material, os dois garotos não trocaram uma única palavra. Zeca percebeu que, vez ou outra, Maurício o observava, disfarçadamente. Porém, como o outro não tomasse a iniciativa do diálogo, manteve a boca fechada. No íntimo, justificava-se: se desse uma de enxerido, poderia talvez piorar a situação.

        Quando já não conseguia mais mascarar a apreensão, viu-se salvo pela intromissão da copeira, a mulher que conhecera na entrada da agência.

        — Você tomou café, Zeca?

        — Tomei, sim senhora.

        — Se quiser, é só ir na copa e se servir.

        — Obrigado.

        Ela passou a flanela sobre o tampo da mesa e interrogou:

        — E marmita? Não trouxe, não?

        — Não, senhora... Não trouxe...

        — Ah, o garotão almoça na lanchonete, é? — brincou ela.

        Zeca percebeu a intenção, tratou logo de desfazer o mal-entendido:

        — Que isso, dona Ermelinda... Eu não sabia que tinha onde esquentar. Amanhã eu trago!

        Ainda se explicava à copeira, no momento em que retornou a secretária, trazendo um pacote caprichosamente embalado.

        — Maurício... Sua encomenda — anunciou Sarita.

        — Pode entregar aí ao boy. Hoje, eu estou de instrutor — retrucou Maurício com displicência.

        Apesar da atitude do colega, Zeca sentiu alguma simpatia na sua voz. E apressou-se em pegar o pacote, que, apesar de volumoso e incômodo, pesava quase nada. Maurício apenas abriu a porta, indicando-lhe o corredor.

        Ermelinda veio até a porta observar e intrometeu-se:

        — Está vendo, Sarita? O Maurício arranjou assistente.

        — Quem pode, pode. Não é, Maurício? — comentou a secretária, sorrindo.

        Na recepção, foi a vez de Glorinha:

        — E aí, Maurício? Vai de mãos vazias?

        — Vou levar o garoto pra conhecer a cidade.

        — Ah, que gracinha! E não ajuda a carregar o pacote?

        — Eu queria, mas ele fez questão de carregar, não é mesmo? — afirmou e voltou-se para Zeca, pedindo confirmação.

        — Tadinho dele... — tornou ela e desatou a rir.

        Já na rua, Maurício interrogou, sério:

        — Pegou os passes?

        — Peguei.

        — Conhece bem a cidade?

        — Conheço... mais ou menos...

        — E as linhas de ônibus?

        — Mais ou menos.

        Maurício observou-o de lado, desaprovando:

        — Mais ou menos não serve! Boy tem de conhecer tudo! E não adianta enrolar que o Giba sabe o tempo que cada um precisa pra fazer o serviço!

        — Certo.

        Após quase dez minutos de silêncio, no ponto, tomaram o ônibus. Quando o veículo acelerou a marcha, Maurício interrogou como quem não quer mas está querendo:

        — Você é protegido de quem?

        Zeca surpreendeu-se com a pergunta direta e desentendeu:

        — Protegido como? Não entendi...

        — Se você não veio através de anúncio, alguém deve ter conseguido pra você!

        — Ah, foi o Batista.

        — Batista? — careteou o boy. — Que Batista?

        — Ele trabalha numa gráfica. Diz que vem sempre pegar e entregar serviço na agência...

        Maurício deu um intervalo, como se tentasse localizar mentalmente. Em seguida, arriscou:

        — Não é o Batista da Colorcor?

        — Esse mesmo! Ele é namorado de minha irmã Marilena... e como sabia que eu estava a fim de trabalhar...

        — Tudo bem — interrompeu o outro. — Quem tem padrinho não morre pagão, ué!

        Mais à vontade com o início de conversa, Zeca comentou:

        — Alguns boys não gostaram porque eu vim com indicação... Ficou uma situação meio chata.

        — Quem não gostou? Ah, você deve estar falando do Russinho e do Claudionor.

        — Acho que é.

        Sentado do lado da janela, Maurício falava sem perder de vista o trajeto do ônibus.

        — O pessoal fica desconfiado quando contratam alguém sem anunciar. Fica todo mundo imaginando que é um espião do Gervásio...

        — O chefe de pessoal?

        — Além disso, você não precisa se preocupar, que aqueles dois estão na mira do Gervásio. Não demora nada, vão pra rua.

        — Eles não trabalham direito?

        — Eles fazem o serviço, mas são muito folgados.

        Maurício voltou a examinar o trânsito. Depois, reatou:

        — Você também não tenha ilusão! Indicado ou não, se enrolar, vai pra rua!

        — Certo. Eu estou a fim de trabalhar sério. Preciso desse emprego.

        De repente, o movimento tornou-se mais lento por causa do trânsito ruim. Maurício fez uma careta e tornou ao assunto:

        — O pessoal está meio alvoroçado, também, porque mandaram o Tonho embora. Como você entrou no lugar dele, eles ficaram fazendo onda. Mas você não tem nada com isso.

        — Por que mandaram embora? Ele enrolava?

        — O Tonho? Era o melhor boy da agência!

        — O melhor? Então, por que despediram?

        O companheiro hesitou um instante, mas em seguida abriu-se:

        — Bateram uma carteira na agência e levaram uma grana alta da Claudete...

        — Você quer dizer que roubaram uma funcionária? Quem é a Claudete?

        — A Claudete é contato. Trabalha no atendimento de clientes.

        — E foi... foi o Tonho?

        — Foi nada!

        — Então, por que despediram?

        — O Gervásio cismou que foi ele!

        Zeca sentia-se confuso. Não entendia como podia acontecer um negócio tão sujo num ambiente daquele nível. Jamais imaginaria um ladrão naquela casa; não entre os funcionários. Pensou um pouco e arriscou:

        — Você acha que não foi o Tonho...

        — Tenho certeza que não!

        — E por que o Gervásio cismou com ele?

        — Porque ele era preto.

        A princípio, Zeca não entendeu:

        — Porque era preto?... Só por isso?

        — Você acha pouco? — interrogou Maurício, encarando-o. — Para o Gervásio é muito!

        [...]

Pega Ladrão. São Paulo, Ática, 1986. p. 11-5.

Fonte: Português – Linguagem & Participação, 6ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder Rivas – Ed. Saraiva, 1ª edição – 1998, p. 179-184.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Fatura: relação que acompanha uma remessa de mercadorias, contendo a descrição de tais mercadorias.

·        Iniciativa: atitude.

·        Enxerido: intrometido.

·        Mascarar: esconder.

·        Apreensão: sentimento de preocupação.

·        Intromissão: ato de intrometer-se em assuntos alheios.

·        Retrucar: responder.

·        Displicência: falta de interesse, descaso.

·        Na mira: sob observação.

·        Reatar: estabelecer outra vez uma ligação ou uma conversa, retornar do ponto interrompido.

·        Trajeto: caminho, percurso.

02 – A ação do texto acontece em uma agência de publicidade. Qual é a situação que Zeca está vivendo no emprego?

      Zeca está começando a trabalhar como mensageiro ou boy.

03 – Como Maurício trata Zeca? Por que Maurício se comporta desta maneira?

      Maurício o trata com superioridade porque ele é mais experiente no emprego do que Zeca.

04 – Qual é a intenção de Dona Ermelinda com a frase: “Ah, o garotão almoça na lanchonete, é?

      Dona Ermelinda está brincando com Zeca, tentando descontrai-lo.

05 – Em que circunstância Zeca começou a trabalhar na agência?

      Zeca foi apresentado pelo namorado da irmã, que trabalha numa gráfica.

06 – Embora sem aparecer diretamente no texto, o que é possível perceber sobre Gervásio?

      Gervásio é o chefe de pessoal da agência. Ele despediu Tonho porque implicava com ele.

07 – Por que Tonho foi despedido?

      Tonho foi despedido porque houve um roubo na agência e Gervásio o considerou culpado por ser preto.

08 – Como você imagina que Tonho tenha se sentido ao ser tratado dessa forma?

      Resposta pessoal do aluno.