Texto: Viagem ao território espinhoso dos excluídos
Marilene Felinto
Não tem “errada” não. No sertão não tem
frescura, não tem estágios, mal tem infância, quanto mais adolescência. Aos 14
anos, a pessoa olha para um lado, olha para outro, não há perspectiva, tudo é
visto na dimensão única da superfície da caatinga plana. Tudo é seco, tudo é
espinho, tudo é nada.
Fazer o quê? No sertão não tem teste
vocacional, não tem profissão, porque mal tem escola. O cara se faz homem no
lombo do jegue, sem sela. A vida é na roça plantando milho, limpando arroz. É
na criação tangendo gado, bode e cabra.
Lá não tem meio-termo. Só tem sim e
não, inverno e verão. O sertão fica lá para detrás daquele morros, nos buracos
do Brasil. No sertão, o céu não é perto como parece daqui. O sertão está mais
par as bandas do inferno, sim, senhor.
O sertão é para conhecer, ir ver. Saber
como vive a juventude do interior, de lá de dentro de um Brasil que nem aparece
em jornal, nem nunca viu um. São Elcioneide, Juciela, Laiane, Marconi, Mardoni,
Cleneildes, Carleusa, Clésio, Maria da Cruz, Antonia Ricarda, Francisco
Salustiano e outra gente de outros nomes diferentes.
A Folha foi, percorreu de carro 1.200
km pelo interior do Piauí e do Ceará. A viagem é uma aventura típica de rali –
as rodovias do Piauí, as BRs brasileiras são de envergonhar.
O suposto asfalto delas é pior do que a
pedra e a terra das estradas e trilhas que cortam a caatinga.
Por ali, nas fronteiras da Serra dos
Cariris Velhos, vivem jovens, entre 12 e 22 anos, na pobreza bárbara da falta
d’água, na escuridão do analfabetismo, do semi-analfabetismo e da falta de luz
elétrica.
Vivem da chama do fogo a lenha,
alimentando sonhos curtos de conseguir um emprego de secretária, telefonista,
mascate.
Os meninos saem, migram, deixam para
trás as casas de taipa cobertas de palha, ainda vão “tentar a vida em São
Paulo”. Para eles, o sertão é sem chance.
Os que ficam, como Agildo, 18, formado
no 2° grau, ou José Ivanildo, 19, que só estudou até a 3ª série, ficam de noite
vendo a vida passar na praça de Pimenteiras (PI).
Agildo e Ivanildo nem mesmo se
alistaram no exército. “Para quê? Aqui não tem emprego, a gente não precisa de
documento”.
Para quê? Para vestir qual farda, em defesa de qual Pátria? Os sonhos
são curtos, e as distâncias ainda são medidas em léguas. Cleidir, 13, pedala 40
minutos sob o sol do meio-dia par ir à escola em São Félix do Piauí.
Para quê? Juciela, 17, da cidade de
Monsenhor Hipólito (PI), analfabeta, é mãe solteira de Laiane, 1 ano.
Sustenta a filha ganhando R$ 40,00 por
mês na casa de farinha, “raspando mandioca, lavando a massa e a goma”.
Computador? Universidade? Não. Cacimba.
Açude. O sertão quase que não existe.
Os modernos – A moto desbanca o jegue
A modernidade chegou ao sertão pelas
duas rodas da moto, meio de transporte tão robusto e resistente quanto o
ancestral jegue nas trilhas de terra e pedra da caatinga.
A moto é uma verdadeira febre entre os
jovens sertanejos de alguma posse. É o caso de Nalva, 15, filha adotiva de um
fazendeiro de São Julião (PI), de quem ganhou sua Honda.
Nalva aprendeu a dirigir moto com o
vaqueiro da fazenda. Ela e suas amigas Cleneildes, 17, e Maria Joselita, 18,
são o que há de mais avançado por aquelas paragens.
Estão menos atrasadas na escola do que
todos os outros jovens com quem a reportagem conversou. Nalva está na 6ª,
Cleneildes, na 7ª, e Joselita, na 8ª série.
De vez em quando, elas leem jornal – o
“Diário do Povo”, da cidade de Picos – e revistas como “Veja” e “Contigo”.
Nunca entraram em um cinema, que Nalva
apenas imagina o que seja: “Um salão grande, com um televisor enorme lá na frente
e lugar do pessoal sentar, para ir assistir filme com o namorado, e gente
vendendo coisas para comer”.
Namoram e são virgens. Têm mais medo do
que vontade de transar, “porque dizem que dói”.
Depois do 2° grau, querem ser bancárias
ou secretárias. O passatempo predileto é jogar futebol. Nos fins de semana, vão
a bares com música “brega” ao vivo, onde canta Bartô Galeno e tocam bandas de
forró como Choque e Capital do Sol. (MF).
Professora
tem 14 anos
Reprodução de exercícios passados pela
professora.
Respostas de
Maria Luzinete, 10 anos.
“Dê
que o Piauí foi colonizado?
Através da fazenda de gado.
Qual era os acontecimentos principal
dos moradores?
Religioso como missa, novenas,
casamento.
Qual
foi a primeira capela do Piauí?
A primeira capela do Piauí foi de Nossa
Senhora da Vitória.
E onde foi construída?
Nas terra da fazendas Cabrobó.
Qual
foi o primeiro governador da capitania?
João Pereira Calda”.
Maria da Cruz, 14, é a única professora
do povoado de Tucuns, distrito de São Félix do Piauí. Ela ensina aos alunos o
pouco que sabe. A lição que escrevia na lousa tinha erros de todo tipo (leia
acima). Ela precisa do emprego para ajudar a família. Seu pai vem todo ano para
o interior de São Paulo, cortar cana como boia-fria.
Folha
– Você é formada?
Maria
da Cruz – Só estudei até a 4ª série. Queria até continuar com o meu estudo,
mas como os pais desses meninos (os alunos) estavam muito aperreados, não
queriam que perdessem o ano, em vim.
Folha
– Você pensa em continuar os estudos?
Maria
da Cruz – Ah, eu penso em me formar em alguma coisa. Tenho essa fé que eu
consigo.
Folha
– Qual o seu salário?
Maria
da Cruz – Eu não tenho salário, por causa que eu sou de menor e o meu grau
de estudo é muito pouco. Eu ganho R$ 35.
Folha
– Por mês?
Maria
da Cruz – É, por mês.
Folha
– Você gosta de das aula?
Maria da Cruz – Gosto. Não é muito
ruim, não.
Folha
– Você namora, sabe o que é fazer sexo?
Maria
da Cruz – Eu, não. Não sei, não. Não entendo sexo.
Folha
– Nem suas amigas sabem??
Maria
da Cruz – Possa que entendam, mas só que elas nunca me explicaram. Essas
coisas eu não imagino com que fosse nada. (MF).
Folha
de S. Paulo, 15 set. 1997. Folhateen.
Fonte: Livro – Encontro
e Reencontro em Língua Portuguesa – 8ª Série – Marilda Prates – Ed. Moderna,
2005 – p. 119/23.
Entendendo o texto:
01 – Identifique o
significado das expressões em destaque.
a)
“Não tem errada não”.
Problema, dúvida.
b)
“Para eles, o sertão é sem chance”.
Algo em que nem se quer pensar, fora de cogitação.
02 – As expressões
destacadas no exercício anterior são gírias muito comuns entre adolescentes da
classe média. A reportagem de Marilene Felinto foi apresentada em um caderno da
Folha de S. Paulo dedicado a leitores adolescentes. Qual o efeito produzido
sobre o leitor pelo uso dessas expressões?
As expressões
aproximam aluno e texto.
03 – Nos dois primeiros
parágrafos, são comparadas a vida de um adolescente da classe média e a vida de
um adolescente que vive no sertão. Considerando o público a que se destina o
jornal em que o texto foi publicado, responda:
a)
Que efeito essa comparação poderia surtir
sobre o leitor?
A comparação permite que o leitor do jornal reconhecer a existência
de adolescentes que não vivem experiências semelhantes às suas.
b)
Que efeito essa comparação surte sobre você?
Resposta pessoal do aluno.
04 – “No sertão, o céu não é
perto como parece daqui. O sertão está mais para as bandas do inferno, sim
senhor”.
a)
Considerando o jornal em que foi publicado o
texto, identifique a que lugar se refere o pronome daqui.
Refere-se à cidade de São Paulo.
b)
As palavras céu e inferno são usadas no texto
em sentido conotativo. A que espécie de céu a autora se refere?
O céu seria realização profissional e pessoal, “sucesso na vida”.
c)
De acordo com o texto, por que no sertão “o
céu não é perto como parece daqui”?
Porque o sertão não há perspectiva, não há possibilidade de o
adolescente crescer e conquistar uma vida melhor.
d)
Por que o sertão estaria mais para as bandas
do inferno?
Porque é quente, árido e é uma região em que há muito sofrimento,
como o texto comprova.
05 – “O sertão é para
conhecer, ir ver. Saber como vive a juventude do interior, de lá de dentro de
um Brasil que nem aparece em jornal nem nunca viu um”.
a)
Após afirmar que “o sertão é para conhecer”,
a autora afirma que o sertão não aparece no jornal. O que se pode concluir
dessa sequência de afirmações?
Pode-se concluir que a vida no sertão não é divulgada, é escondida,
e que somente indo até lá o leitor terá chance de realmente compreender como
ela é.
b)
Em sua opinião, por que o sertão não aparece
no jornal?
Resposta pessoal do aluno.
c)
No seu ponto de vista, em que aspectos a vida
de um adolescente de uma grande metrópole poderia mudar se ele fosse conhecer o
sertão?
Resposta pessoal do aluno.
06 – No quarto parágrafo,
são mencionados diversos nomes.
a)
Por que a autora afirma que são nomes
diferentes?
Porque são diferentes para o leitor do jornal, que vive em São
Paulo, cidade em que esses nomes não são comuns.
b)
Nesse parágrafo, a autora convida o leitor
adolescente a conhecer o sertão. Relacione esse convite à apresentação dos
nomes.
Essa sequência desperta a atenção do leitor para pessoas que são
diferentes dele até no nome, mas que são cidadãos do mesmo país.
07 – “... Na pobreza bárbara
da falta d’água, na escuridão do analfabetismo e da falta de luz elétrica”.
a)
Qual o significado de bárbara no texto?
Não civilizado, atrasado.
b)
Por que o analfabetismo é comparado à
escuridão?
Porque sem saber ler, uma pessoa dica excluída de todo um universo,
fica “cega” para uma parte do que já foi conquistado pelo ser humano.
c)
A autora fala em barbárie, escuridão, para
logo depois iniciar o parágrafo que segue afirmando que os jovens do sertão
vivem da chama do fogo. O que podemos concluir a partir dessa sequência de
afirmações?
Podemos concluir que, para a autora do texto, o sertão está em uma
outra era, privado dos recursos sociais e tecnológicos disponíveis para os
jovens paulistas de classe média, leitores do artigo.
08 – “... alimentando sonhos
curtos de conseguir um emprego de secretária, telefonista, mascate”.
a)
Nos dois primeiros parágrafos do texto, a
autora fala das aspirações profissionais dos leitores, adolescentes de classe
média ou alta. Que aspirações seriam essas?
Eles sonham com a graduação, o diploma de terceiro grau.
b)
Considerando essa informação, por que os
sonhos dos jovens do sertão são classificados de curtos?
Porque são sonhos com profissões que não exigem graduação e que têm
remuneração inferior a profissões que requerem a graduação.
09 – “Para vestir qual
farda, em defesa de qual pátria?” O sertanejo não tem pátria? Por quê?
O sertanejo tem
pátria, mas a pátria esqueceu ou ignorou o sertanejo.
10 – “Os sonhos são curtos,
e as distâncias ainda são medidas em léguas”. A autora contrapõe extensão dos
sonhos e das distâncias. Qual o efeito dessa comparação?
Enfatizar a
dificuldade da vida no sertão.
11 – Maria da Cruz é
professora, embora não tenha completado a graduação.
a)
Por que ela se tornou professora?
Porque não havia ninguém para ocupar essa função.
b)
Para você, quais podem ser as consequências
de não haver professores qualificados para atender a comunidade do distrito de
São Felix do Piauí?
Resposta pessoal do aluno.
12 – Em sua opinião, quais
podem ser as consequência de uma menina de 14 anos não ter qualquer informação
sobre sexo como Maria da Cruz?
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: chamar a atenção para o fato de que essa ignorância expõe a
jovem à violência, a doenças sexualmente transmissíveis e à gravidez
indesejada.
13 – Leia novamente o
título: “Viagem ao território espinhoso dos excluídos”. Considerando as
reflexões feitas sobre o texto, responda:
a)
Espinhoso está sendo usado em sentido
denotativo ou conotativo? Por quê?
Conotativo, pois, embora o sertão seja um local de clima realmente
árido, é espinhoso pelo fato de as pessoas que vivem ali experimentarem muitas
dificuldades.
b)
Quem seria os excluídos?
As pessoas que vivem no sertão.
c)
Estariam excluídos de quê?
De todo o progresso aproveitado por algumas classes sociais.
14 – Que conclusões você
elaborou a partir da reflexão sobre o texto?
Resposta pessoal
do aluno.
15 – Após responder às
questões, você deve ter percebido que a escolha de cada palavra tem um
significado especial em um texto. Em que essa observação pode contribuir para
suas próximas redações?
Resposta pessoal
do aluno.
16 – Considerando ainda a
reflexão feita sobre o sexo, responda: de que forma a preocupação com o
destinatário, a pessoa a quem se dirige o texto, influencia a construção do
texto?
A preocupação com
o destinatário determina o vocábulo, a estrutura e até a linha de argumentação.