Crônica: ELA
Ainda me lembro do dia em que ela
chegou lá em casa. Tão pequenininha! Foi uma festa. Botamos ela num quartinho
dos fundos. Nosso Filho – Naquele tempo só tinha o mais velho – ficou
maravilhado com ela. Era um custo tirá-lo da frente dela para ir dormir.
Combinamos que ele só poderia ir para o
quarto dos fundos depois de fazer todas as lições.
-- Certo, certo. – Eu não ligava muito
para ela. Só para ver um futebol ou política. Naquele tempo, tinha política.
Minha mulher também não via muito. Um programa humorístico, de vez em quando.
Noites Cariocas… Lembra de Noites Cariocas?
-- Lembro vagamente. O senhor vai
querer mais alguma coisa? E me serve mais um destes. Depois decidimos que ela
podia ficar na copa. Aí ela já estava mais crescidinha. Jantávamos com ela
ligada, porque tinha um programa que o garoto não queria perder. Capitão
Qualquer Coisa. A empregada também gostava de dar uma espiada. José Roberto
Kely. Não tinha um José Roberto Kely?
-- Não me lembro bem. O senhor não me
leva a mal, mas não posso servir mais nada depois deste. Vamos fechar.
-- Minha mulher nem sonhava em botar
ela na sala. Arruinaria toda a decoração. Nessa época já tinha nascido o nosso
segundo filho e ele só ficava quieto, para comer, com ela ligada. Quer dizer,
aos pouco ela foi afetando os hábitos da casa. E então surgiu, surgiu um
personagem novo nas nossas casas que iria mudar tudo. Sabe quem foi?
-- Quem?
--
O Sheik de Agadir. Eu, se quizesse, poderia processar o Sheik de Agadir. Ele
arruinou o meu lar.
-- Certo. Vai querer a conta? – Minha mulher
se apaixonou pelo Sheik de Agadir. Por causa dele, decidimos que ela poderia ir
para a sala de visitas. Desde que ficasse num canto, escondida, e só aparecesse
quando estivesse ligada. Nós tínhamos uma vida social intensa. Sempre iam
visitas lá em casa. Também saíamos muito. Cinema, Teatro, jantar fora. Eu
continuava só vendo futebol e notícia. Mas minha mulher estava sucumbindo
depois do Sheik de Agadir, não queria perder nenhuma novela.
-- Certo. Aqui está a sua conta.
Infelizmente temos que fechar o bar.
-- Eu não quero a conta. Quero outra
bebida. Só mais uma.
-- Está bem… Só mais uma.
-- Nosso filho menor, o que nasceu
depois do Sheik de Agadir, não saía de frente dela. Foi praticamente criado por
ela. É mais apegado à ela do que a própria mãe. Quando a mãe briga com ele, ele
corre pra perto dela pra se proteger. Mas onde é que eu estava? Nas novelas.
Minha mulher sucumbiu às novelas. Não queria mais sair de casa. Quando chegava
visita, ela fazia cara feia. E as crianças, claro só faltavam bater em visita
que chegasse em horário nobre. Ninguém mais conversava dentro de casa. Todo
mundo de olho grudado nela. E então aconteceu outra coisa fatal. Se
arrependimento matasse…
-- Termine a sua bebida, por
favor. Temos que fechar.
-- Foi a copa do mundo. A de 74. Decidi
que para as transmissões da copa do mundo ela deveria ser bem maior. E
colorida. Foi a minha ruína. Perdemos a copa, mas ela continua lá, no meio da
sala. Gigantesca. É o móvel mais importante da casa. Minha mulher mudou a
decoração da casa para combinar com ela. Antigamente ela ficava na copa para
acompanhar o jantar. Agora todos jantam na sala para acompanhá-la.
-- Aqui está a conta.
-- E, então, aconteceu o pior. Foi
ontem, hora do Dancin’Days e bateram na porta. Visitas. Ninguém se mexeu. Falei
para a empregada abrir a porta, mas ela fez “Shhh!” sem tirar os olhos da
novela. Mandei os filhos, um por um, abrirem à porta, mas eles nem me
responderam. Comecei a me levantar. E então todos pularam em cima de mim.
Sentaram no meu peito. Quando comecei a protestar, abafaram o meu rosto com a
almofada cor de tijolo que minha mulher comprou para combinar com a maquiagem
da Júlia. Só na hora do comercial, consegui recuperar o ar e aí sentenciei,
apontando para ela ali, impávida no meio da sala: “Ou ela, ou eu!”. O silêncio
foi terrível.
-- Está bem… mas agora vá para casa que
precisamos fechar. Já está quase clareando o dia…
-- Mais tarde, depois da Sessão Coruja,
quando todos estava dormindo, entrei na sala, pé ante pé. Com a chave de
parafuso na mão. Meu plano era atacá-la por trás, abri-la e retirar uma válvula
qualquer. Não iria adiantar muita coisa, eu sei. Eles chamariam um técnico às
pressas. Mas era um gesto simbólico. Ela precisava saber quem é que mandava
dentro de casa. Precisava sabe que alguém não se entregava completamente a ela,
que alguém resistia. E então, quando me preparava para soltar o primeiro
parafuso, ouvi a sua voz. “Se tocar em mim você morre”. Assim com toda a
clareza. “Se tocar em mim você morre”. Uma voz feminina, mas autoritária, dura.
Tremi. Ela podia estar blefando, mas podia não estar. Agi depressa. Dei um
chute no fio, desligando-a da tomada e pulei para longe antes que ela
revidasse. Durante alguns minutos, nada aconteceu. Então ela falou outra vez. “Se
não me ligar outra vez em um minuto, você vai se arrepender”. Eu não tinha
alternativa. Conhecia o seu poder. Ela chegara lá em casa pequenininha e aos
poucos foi crescendo e tomando conta. Passiva, humilde, obediente. E vencera.
Agora chegara a hora da conquista definitiva. Eu era o único empecilho à sua dominação
completa. Só esperava um pretexto para me eliminar com um raio católico. Ainda
tentei parlamentar. Pedi que ela poupasse a minha vida. Perguntei o que ela
queria, afinal. Nada. Só o que ela disse foi “Você tem 30 segundos”.
--
Muito bem. Mas preciso fechar. Vá para casa.
-- Não posso.
--Por quê? – Ela me proibiu de voltar
lá.
Luís Fernando
Veríssimo.
Entendendo a crônica:
01 – Identifique as
personagens do texto. Quem são?
A televisão, a empregada, o filho mais
velho, o narrador, a mulher, o segundo filho e o filho menor.
02 – O narrador do texto:
a)
Observa de fora e conta a história
(narrador-observador).
b)
Participa da história que conta
(narrador-personagem).
03 – Em que espaço se passa
a história?
Se passa dentro
de casa, quartinho dos fundos, a copa e a sala.
04 – Na crônica o discurso
predominante é?
a)
Discurso direto.
b)
Discurso indireto.
05 – Qual é o tempo da
crônica, cronológico ou psicológico?
Cronológico, pois
é determinado pela sucessão dos acontecimentos narrados.
06 – O título da crônica é
um pronome pessoal. A quem se refere esse pronome?
Ela – é um
pronome pessoal (3ª pessoa do singular). Se refere a televisão.
07 – Do que fala o texto?
Faz uma crítica
que a TV está afetando as relações familiares dentro da sua casa.
08 – Na crônica são citados
programas de TV de uma determinada época. Cite os programas falados no texto e
diga a que ano referem-se.
·
Programa Noites Cariocas TV Rio
1965. José Roberto Kely.
·
Telenovela Rede Globo 1966/7. Sheik
de Agadir.
·
Telenovela Rede Globo 1978/9.
Dancin’Days.
·
Sessão de filmes nas madrugadas da
Rede Globo 1972/2016. Copa do mundo 74 e Sessão coruja.
·
Clube do Capitão AZA TV Tupi
1966/79. Capitão Qualquer Coisa.
09 – Na crônica temos um objeto
que adquire ações próprias dos seres humanos, a esse fato denominamos personificação.
Encontre no texto ações humanos realizadas por um objeto e escreva-as abaixo.
O objeto é a
televisão.
“... Tão pequenininha! Foi uma festa.
Botamos ela num quartinho dos fundos”.
“... Aí ela já estava mais
crescidinha...”
“... Quer dizer, aos pouco ela foi
afetando os hábitos da casa”.