Conto: Os ratos I –
fragmento
Dionélio Machado
Há ali perto um ruído, dum móvel dali
do quarto. Venha! Incorpora no chiado amorfo, unido... Tem medo de decompor
esse conjunto, de seguir uma linha qualquer naquela massa...
Agora é um guinchinho... Várias notinhas
geminadas... Parou... O seu chiado voltou a ter aquela uniformidade, aquela
continuidade... E o meu marido, o que vai fazer? Nada? Como ele vai viver sem
as garrafas, sem as latas, sem as caixas? Vai perambular pela rua, roubar pra
comer? Ele se põe a escutar agudamente. Um esforço para afastar aquele conjunto
amorfo de ruidozinhos, aquele chiado... Lá está, num canto, no chão, o
guinchinho, feito de várias notinhas geminadas, fininhas...
São os ratos! ... Vai escutar com atenção, a
respiração meio parada. Hão de ser muitos: há várias fontes daquele guinchinho,
e de quando em quando, no forro, em vários pontos, o rufar...
A casa está cheia de ratos...
[...]
Está com sono. Mas é preciso reagir. É
preciso examinar bem ...
E ele passa outra vez a sua ideia numa
crítica. Vê tudo quanto há de sensato e de absurdo nela...
Acordar Adelaide?
Ouve a sua voz, volumosa, retumbando ali
dentro do quarto... Ouve-se dizer, com voz cavernosa, estranha, saindo do
silêncio: " – Adelaide... Adelaide...” Ela não acorda no primeiro momento.
“-- Adelaide...” Não se anima. Talvez que o filho se mexa, que ela se acorde.
Aí então, com voz baixa, natural, apenas informativa: "-- Adelaide... Você
não tem medo que os ratos possam... (“-- Sim...?”) estar mexendo no dinheiro? ...”
“-- Não mexem, não.” -- E ela se volta outra vez na cama para dormir...
Naziazeno se tranquiliza...
Ouve a respiração do filho. Ele dorme um sono
pesado, igual.
Naziazeno examina os “fundamentos”
daquela sua tranquilidade. Seria essa – está por jurar – a opinião de
Adelaide... “Não mexem...” Pode se tranquilizar, pois. Nunca ouviu falar que
houvessem roído um dinheiro assim. "-- Você acha possível, Adelaide, que
os ratos roam dinheiro? ...” “-- É: eles roem papel. Dinheiro é um papel
engraxado...”
Faz-se um grande tumulto dentro da sua
cabeça!
[...]
Está exausto... Tem uma vontade de se
entregar, naquela luta que vem sustentando, sustentando... Quereria
dormir... Aliás, esse frio amargo e triste que lhe vem das vísceras, que lhe
sobe de dentro de si, produz-lhe sempre uma sensação de sono, uma necessidade
de anulação, de aniquilamento...Quereria dormir...
Não sabe que horas são. De fora, do
pátio, chega-lhe um como que pipilar, muito fraco e espaçado.
Quereria dormir...
Mas que é isso?!... Um baque? ...
Um baque brusco do portão. Uma volta sem
cuidado da chave. A porta que se abre com força, arrastando. Mas um breve
silêncio, como que uma suspensão... Depois, ele ouve que lhe despejam (o
leiteiro tinha, tinha ameaçado cortar-lhe o leite...) que lhe despejam
festivamente o leite. (O jorro é forte, cantante, vem de muito alto...) –
Fecham furtivamente a porta... Escapam passos leves pelo pátio... Nem se ouve o
portão bater...
E ele dorme.
MACHADO,
Dyonélio. Os ratos. 7. ed. São Paulo: Ática, 1980. p. 149-57.
Entendendo o conto:
01 – Depois de um dia
estafante, Naziazeno alcança seu objetivo. Assim, sente-se aliviado, de novo um
homem. Porém está tenso, tem dificuldade para adentrar o sono por inteiro.
Relacione esse estado mental da personagem:
a)
Com a frase “Vê tudo quanto há de sensato e
de absurdo nela...”
A oscilação expressa no par sensato / absurdo equivale à oscilação
em que se encontra a personagem, meio acordada, meio dormindo.
b)
Com as constantes repetições de ideias,
sobretudo a frase “Quereria dormir”.
As repetições de palavras e ideias sugerem o movimento da consciência,
cujas ideias vão e vêm continuamente.
02 – Depois que o leiteiro
chega, pega o dinheiro e despeja o leite numa vasilha na cozinha, finalmente
Naziazeno dorme. Relacione esse fato com sua insônia.
A entrega do
leite é a prova concreta de que Naziazeno superou aquela dificuldade, é a
materialização de sua vitória, ao menos naquela situação.
03 – O nome do protagonista
assemelha-se, pelo som, às palavras Nazareno e Lazarento (leproso). Associe a
trajetória da personagem, nas suas 24 horas de sofrimento, ao sentido dessas
palavras.
Nas 24 horas em que procura um meio de
conseguir o dinheiro, Naziazeno faz uma via-crúcis de sofrimento e humilhações
como Cristo; além disso, como um leproso, chega a ser escorraçado por muitos.
04 – Os ratos assumem papel
decisivo nesses momentos finais da narrativa.
a)
Levando em conta as dificuldades da
personagem para conseguir o dinheiro e tomando os ratos no sentido denotativo,
que preocupação eles causam em Naziazeno?
A de que o dinheiro seja roído por eles.
b)
Tomando os ratos como elemento simbólico, o
que eles representam no conjunto da obra?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Podem representar as pessoas
simples, pobres, despossuídas de qualquer bem; podem também representar o
próprio sistema social, que, centrado no interesse econômico, acaba por corroer
as pessoas, transformando-as em coisas.
05 – Leia o comentário
crítico sobre a obra:
“O giro do mundo, o giro do relógio, o
giro da vida nada mais é, no fundo, que o giro do comércio, da moeda, simbolizando
no giro da roleta. Dionélio Machado retoma um dos motivos mais contundentes da
obra de Graciliano Ramos: a reificação a que os homens se sujeitam na sociedade
capitalista, evidenciada, de maneira bastante brutal, pela crise. Os homens são
ratos apequenados, de focinho e visão curtos.”
História
do século XX. São Paulo: Abril Cultural, 1968. v. 4 p. 208.
a) Relacione
o comentário crítico com este trecho do texto: “Quereria dormir... Aliás, esse frio amargo e triste que lhe vem das
vísceras, que lhe sobe de dentro de si, produz-lhe sempre uma sensação de sono,
uma necessidade de anulação, de aniquilamento”.
Ambos fazem referência à anulação e ao aniquilamento do ser humano
na vida em sociedade.
b)
No comentário crítico, Dionélio Machado é
comparado a Graciliano Ramos quanto à análise que faz da condição humana na
sociedade capitalista, isto é, o homem reificado, transformado em coisa. Na sua
opinião, esse comentário sobre Naziazeno é pertinente? Justifique.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Sim, pois Naziazeno é uma
pequena peça na engrenagem social, alheia aos dramas individuais; é apenas mais
um na grande massa de desfavorecidos.