Texto: O
MUNDO SEM FIM
Teria eu uns doze anos quando um dia me assaltou a mente, com particular
relevo, a ideia de que o mundo já existira sem mim. Essa ideia é aparentemente
trivial, pois nenhum de nós, em são juízo, pretende ter sido companheiro de
armas de Carlos Magno, ou tripulante da caravela de Cristóvão Colombo.
O mundo,
evidentemente, era mais antigo do que o menino que suspendia o brinquedo para
olhar em volta de si com estranheza; ali estavam as pessoas mais velhas, as
grossas árvores, as casas, as montanhas, tudo a me falar de uma história
anterior e de um cenário anterior. Mas o caso é que eu, de repente, achava
muito esquisita essa ideia tão simples.
As pessoas mais velhas tinham um privilégio perturbador: bastava-lhes querer,
para que dentro delas se armasse um mundo em que eu não era, nem havia
necessidade que fosse. Pedia então à mamãe:
--- Conta uma história de antigamente.
Ela contava. A gente grande virava criança, os mortos saíam das sepulturas, e
as crianças como eu, nesse recuo, mergulhavam na morte branca do não-ser. E de
todas as transmutações era essa a que me parecia mais incompreensível. Na
história que minha mãe contava, os personagens não davam por falta de mim;
ninguém esperava por mim. Os mortos mais mortos, que não chegavam a emergir na
data do episódio, eram todavia lembrados, e lá estavam presentes pelos ecos e
vestígios. Havia o Barão, a tia Elvira, que fora ao baile da Ilha Fiscal, o
Juvêncio, negro legendário pelos exemplos de fidelidade e dedicação. O nome
deles, a saudade deles entrava na história. A marca deles. Eu não. Naquela cena
vagamente amarela, que eu via desenhar-se atrás da testa de minha mãe, revivia
um mundo em que eu não era; nem havia necessidade que fosse.
Lições de abismo. Rio de Janeiro: Agir, 1989, p. 69-71.
Entendendo
o texto:
01 –
Segundo o narrador, a ideia de que o mundo já existira sem ele é “aparentemente
trivial”.
- Por que é uma ideia trivial?
Porque qualquer pessoa sensata sabe que não existia no tempo de acontecimentos
históricos do passado.
02 –
Localize esta frase, no primeiro parágrafo:
“O mundo, evidentemente, era mais antigo do que o menino...”
Que evidências o menino tinha de que o mundo era mais antigo que ele?
O que ele via à sua volta com mais idade que ele: as pessoas mais velhas, as
árvores grossas (logo, de muitos anos), as casas, as montanhas.
03 –
Recorde o início do segundo parágrafo:
“As pessoas mais velhas tinham um privilégio perturbador”.
Privilégio designa uma vantagem: as pessoas mais velhas tinham uma vantagem que
o menino não tinha.
a) Que
privilégio tinham as pessoas mais velhas?
Podiam recordar acontecimentos anteriores
ao nascimento do menino.
b) Por
que isso era um privilégio?
Porque as pessoas mais velhas podiam ter
recordações que o menino não podia ter.
c) Por
que, para o menino, ouvir uma história de antigamente era uma forma de
compensar o privilégio que tinham as pessoas mais velhas?
Porque ficava conhecendo os
acontecimentos que as pessoas mais velhas conheciam.
04 –
Localize esta frase no quarto parágrafo:
“E de todas as transmutações era essa a que me parecia mais incompreensível”.
a) Quais
são “todas as transmutações” a que se refere o narrador?
Gente grande passava de adultos a
crianças, mortos voltavam a viver, crianças deixavam de existir.
b) Qual
era a transmutação que parecia mais incompreensível?
Na história que a mãe contava.
A de as crianças deixarem de existir, não
participarem das histórias de antigamente.
05 – Na
história que a mãe contava, “os mortos saíam das sepulturas” e “as crianças
mergulhavam na morte branca do não-ser”.
a) Por
que os mortos saíam das sepulturas?
Porque, no tempo em que se passava a
história, ainda não tinham morrido, participavam da história como personagens.
b) Em
geral, fala-se da morte do ser: a perda da vida por um ser até
então vivo. O que significa, no texto, “morte do não-ser”?
Morte como ausência de vida. Referindo-se
ao período antes de um ser existir.
c) Por que, na história, as crianças
mergulhavam na morte do não-ser?
Porque, no tempo em que passava a
história, ainda não existiam, ainda não eram seres, ainda não tinham vida.