Crônica: Sempre que alguém entra em discutir o carácter do povo português
Fernando Pessoa
Ora as criaturas de imaginação excessiva são fatalmente enfermas dum defeito; esse defeito é
a deficiência de imaginação.
Isto pode parecer um
paradoxo a quem ainda creia, ingenuamente, que há paradoxos neste mundo. A
asserção, porém, é tão fácil de demonstrar que não vale a pena reparar no modo
como se apresenta.
Tomemos um exemplo
conhecido. É o caso desses literatos modernos que em sua obra se entusiasmam
pelos loucos, pelos vagabundos e pelos criminosos-natos, ou, em grau menos
sangrento, pelos proletários “rotos e oprimidos” e outros objectos análogos.
Ora todo o artista, se não por condição social, é, pelo menos por temperamento,
o contrário de tudo quanto os loucos, os criminosos-natos ou os proletários
realmente e verdadeiramente são. Sucede, pois, que a sua simpatia por tais
criaturas só pode nascer da violenta necessidade de sair para fora de assuntos
do meio em que vive — tanto no meio social, de gente pacata e apenas palavrosa,
que cerca os artistas, como do meio, por assim dizer, nervoso, isto é, aquela
disposição requintada e exigente que é a atmosfera espiritual em que o artista
vive consigo próprio. E essa necessidade de sair para fora da atmosfera
psíquica, onde respira, é manifestamente trabalho da imaginação excessiva. De
resto, o género literário que esta espécie de autores
vinca — assuntos excessivos, sentimentos exagerados, estilo complexo
e doente —, tudo isso confirma que se trata dum fenómeno de excessiva
imaginação.
Mas, se colocássemos
um destes literatos entre criminosos-natos reais, entre verdadeiros loucos ou
entre proletários existentes, condenando-o, não a atravessar esse meio, mas a
viver nele, o desgraçado só não fugiria se o não deixassem fugir. A mesma
requintada condição nervosa e imaginativa, que lhe faz o entusiasmo por esses
meios, lho tiraria, se neles se demorasse.
Que explicação tem
este fenómeno? Aquela que de entrada demos: a deficiência imaginativa que
caracteriza os imaginativos em demasia. Se ao construir no seu espírito uma
representação nítida dessas figuras que o atraem, o artista conseguisse
imaginá-las a valer, com absoluta nitidez, tal nitidez equivaleria a
um antegosto desses próprios meios, e resultaria, desde logo, aquele nojo por
eles que um contacto real causaria.
Toda esta demonstração veio a propósito do excesso de imaginação do português. E o fim a que veio é podermos estabelecer claramente qual a terapêutica a aplicar neste caso. Com a demonstração, que fizemos, essa terapêutica ficou indicada. Aqui, como na homeopatia, similia similibus curantur, o excesso imaginativo do português, que tão daninho lhe tem sido, só pode ser curado mediante uma cultura cada vez maior da imaginação portuguesa. Educar as novas gerações no sonho, no devaneio, no culto prolixo e doentio da vida interior, vem a dar em educá-las para a civilização e para a vida. Sobre ser fácil e agradável, o tratamento é de resultado seguro.
PESSOA, Fernando. Crónicas da vida que passa. O Jornal, n. 8, Lisboa, v. 8, 11 abr.
1915. Disponível em: <https://bit.ly/2yuMb4P>.
Acesso em: 12 ago. 2018.
Entendendo o texto
01. Marque a opção que se refere ao gênero textual ao
qual esse texto pertence.
a. Apesar
de constar na referência que esse texto faz parte de um conjunto de crônicas,
esse texto é uma notícia, pois foi publicado em um jornal.
b. Fernando Pessoa, ao escrever esse texto, em 1915, teve como objetivo
levar os leitores a refletir sobre alguns fatos do cotidiano daquela época, por
isso, esse texto pode ser considerado uma crônica.
c. Esse
texto pode ser considerado um conto, pois tem personagens e é escrito em uma
linguagem formal.
d. Esse
texto pode ser considerado uma reportagem, pois está publicado em um jornal e é
escrito em uma linguagem formal.
02. Qual é a
característica notável do espírito português mencionada no texto?
a. Excesso de racionalidade.
b. Excesso de imaginação.
c. Falta de criatividade.
d. Pragmatismo.
03. Qual é o defeito
das criaturas com imaginação excessiva, segundo o texto?
a. Falta de inteligência.
b. Deficiência de imaginação.
c. Falta de disciplina.
d. Deficiência de memória.
04. O texto cita artistas que se entusiasmam
por quais tipos de personagens?
a. Reis e rainhas.
b. Loucos, vagabundos e criminosos-natos.
c. Heróis e vilões.
d.
Cientistas e inventores.
05. Por que os artistas têm simpatia por
personagens como loucos e criminosos, de acordo com o autor?
a. Porque se identificam com eles.
b. Porque querem criticar a sociedade.
c. Porque necessitam sair do meio em que
vivem.
d.
Porque são obrigados pela sociedade.
06. O que aconteceria se um artista vivesse
permanentemente entre loucos ou criminosos, segundo o texto?
a. Iria se adaptar facilmente.
b. Iria ficar entusiasmado.
c. Iria querer fugir.
d. Iria se tornar um deles.
07. Qual é a explicação dada pelo autor para
o fenômeno de artistas se interessarem por personagens marginalizados?
a. A deficiência
imaginativa dos imaginativos em demasia.
b. A busca por fama e reconhecimento.
c. A pressão da sociedade.
d. A necessidade de sustento financeiro.
08. O que a nitidez imaginativa de um artista
equivaleria, segundo o texto?
a. A uma
experiência real.
b. A uma fantasia irreal.
c. A
um sonho agradável.
d. A uma alucinação temporária.
09. Qual é a terapêutica sugerida pelo autor
para o excesso de imaginação dos portugueses?
a. Reduzir a imaginação.
b. Aumentar a cultura da imaginação.
c. Focar em atividades físicas.
d. Promover a educação técnica.
10. O autor compara a terapêutica sugerida a
qual prática médica?
a.
Alopatia.
b. Cirurgia.
c. Homeopatia.
d. Psicanálise.
11. Segundo o autor, educar as novas gerações
no sonho e no devaneio resulta em quê?
a. Falta de interesse pela realidade.
b. Educação para a civilização e para a
vida.
c. Maior alienação social.
d. Desenvolvimento de habilidades técnicas.
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