Carta: Contra a doutrina gramatical
tradicional
São Paulo, 04 de novembro de 2001.
Sr. Editor;
(…)
Em 1990, o linguista e educador
britânico Michael Stubbs escrevia que “toda a área da língua na educação está
impregnada de superstições, mitos e estereótipos, muitos dos quais têm
persistido por séculos e, às vezes, com distorções deliberadas dos fatos linguísticos
e pedagógicos por parte da mídia”. É triste constatar que essas palavras,
publicadas há mais de uma década, se aplicam com precisão impressionante ao que
ainda ocorre hoje em dia no Brasil. Afinal, de que outro modo qualificar a
reportagem de capa do número 1725 de Veja senão como uma série de “distorções
deliberadas dos fatos linguísticos e pedagógicos por parte da mídia”?
O texto assinado pelo Sr. João Gabriel
de Lima demonstra o quanto nossos meios de comunicação de massa se encontram, perdoe-me
o lugar-comum, na contramão da História quando o assunto é língua. Há um
absoluto despreparo de jornalistas e comunicadores para tratar do tema (um
exemplo gritante disso veio a público em outra edição recente de Veja, a
de número 1710, com a reportagem “Todo mundo fala assim”).
Se falo de contramão é porque —
passados mais de cem anos de surgimento, crescimento e afirmação da Linguística
moderna como ciência autônoma —, a mídia continua a dar as costas à
investigação científica da linguagem, preferindo consagrar-se à divulgação e
sustentação das “superstições, mitos e estereótipos” que circulam na sociedade
ocidental há mais de dois mil anos. Isso é ainda mais surpreendente quando se
verifica que, na abordagem de outros campos científicos, os meios de
comunicação se mostram muito mais cuidadosos e atenciosos para com os
especialistas da área. Quando o assunto é língua, porém, o espaço maior é
invariavelmente ocupado por alguns oportunistas que, apoderando-se
inteligentemente dessas “superstições, mitos e estereótipos”, conseguem
transformar esse folclore linguístico em bens de consumo que lhes rendem muito
lucro financeiro, além de fama e destaque na mídia. Basta comparar o espaço
dedicado, no último número de Veja, ao Prof. Luiz Antônio Marcuschi
(reconhecido quase unanimemente hoje no Brasil como o nome mais importante da
ciência linguística entre nós) e aos atuais pregadores da tradição gramatical
que infestam o quotidiano dos brasileiros com suas quinquilharias
multimidiáticas sobre o que é "certo" e "errado" na
língua.
Seria espantoso ver uma matéria
de Veja em que aparecessem zoólogos falando mal da Biologia, ou
engenheiros criticando a Física, ou cirurgiões maldizendo da Medicina. No
entanto, ninguém se espanta (e muitos até aplaudem) quando o Sr. João Gabriel
de Lima, fazendo eco aos detratores da Linguística (como o Sr. Pasquale Cipro
Neto), fala da existência de “certa corrente relativista” e escreve absurdos
como “trata-se de um raciocínio torto, baseado num esquerdismo de meia-pataca,
que idealiza tudo o que é popular — inclusive a ignorância, como se ela fosse
atributo, e não problema, do ‘povo’. O que esses acadêmicos preconizam é que os
ignorantes continuem a sê-lo”. Seria muito fácil retrucar que estamos aqui
diante de um “direitismo de meia-pataca” que acredita na existência de uma
“ignorância popular”, mas, como cientista, prefiro recorrer a outro tipo de
argumento, baseado na reflexão teórica serena e na experiência conjunta de
muitas pessoas que há anos se dedicam ao estudo e ao ensino da língua
portuguesa no Brasil.
Segundo a reportagem, as críticas que o
Sr. Pasquale Cipro Neto recebe dessa “corrente relativista” deixam-no
“irritado”. Ora, o que parece realmente irritar o Sr. Pasquale é o fato de que,
apesar de obter tanto sucesso entre os leigos, nada do que ele diz ou escreve é
levado a sério nos centros de pesquisa científica sobre a linguagem, sediados
na mais importantes universidades do Brasil — centros de pesquisa linguística,
diga-se de passagem, reconhecidos internacionalmente como entre alguns dos
melhores do mundo (Unicamp, USP, Unesp, UFRGS, UFPE entre outras). Muito pelo
contrário, se o nome do Sr. Pasquale é mencionado nas nossas universidades, é
sempre como exemplo de uma atitude anticientífica dogmática e até obscurantista
no que diz respeito à língua e seu ensino (em vários de seus artigos em jornais
e revistas ele já chamou os linguistas de "idiotas",
"ociosos", "defensores do vale-tudo" e
"deslumbrados").
Se o Sr. Pasquale se irrita com os
cientistas da linguagem, é porque sabe que não tem como responder às críticas
que recebe por parte dos pesquisadores, dos teóricos e dos educadores
empenhados num conhecimento maior e melhor da realidade linguística do nosso
país. Digo isso com base na experiência de já ter participado de três debates
junto com o Sr. Pasquale e ter conhecido sua estratégia de nunca responder com
argumentos consistentes às críticas a ele dirigidas, preferindo sempre retrucar
com arrogância, prepotência, grosserias e ataques pessoais (chamando os linguistas
de "ortodoxos" — seja isso lá o que for — e de
"bichos-grilos") ou fazendo-se de vítima de alguma perseguição (num
desses encontros ele declarou sentir-se como um "boi de
piranha").
A razão para essa falta de argumentos
consistentes é muita simples: o Sr. Pasquale não tem formação científica para
tratar dos assuntos de que trata. Suas opiniões se baseiam exclusivamente na
arcaica doutrina gramatical normativo-prescritiva, cuja inconsistência teórica
e cujos problemas epistemológicos graves vêm sendo demonstrados e criticados
pela Linguística moderna desde pelo menos o final do século XIX. As concepções
do Sr. Pasquale de "certo" e de "errado" estão em franca
oposição, não só com as teorias científicas mais atuais, mas até mesmo com a
postura investigativa dos gramáticos profissionais de sólida formação filológica
(coisa que ele definitivamente não é), para não mencionar as diretrizes
pedagógicas das instâncias superiores da Educação nacional. O documento do
Ministério da Educação chamado Parâmetros Curriculares Nacionais, por exemplo,
é bem explícito em seu volume dedicado ao ensino da língua portuguesa:
A imagem de uma língua única, mais
próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições
normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão
da mídia sobre 'o que se deve e o que não se deve falar e escrever', não se
sustenta na análise empírica dos usos da língua.
E este mesmo documento é enfático ao
afirmar que: há muitos preconceitos decorrentes do valor social relativo
que é atribuído aos diferentes modos de falar: é muito comum se considerarem as
variedades linguísticas de menor prestígio como inferiores ou erradas. O
problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais
deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo
de educação para o respeito à diferença. Para isso, e também para poder ensinar
Língua Portuguesa, a escola precisa livrar-se de alguns mitos: o de que existe
uma única forma 'certa' de falar — a que se parece com a escrita — e o de que a
escrita é o espelho da fala — e, sendo assim, seria preciso 'consertar' a fala
do aluno para evitar que ele escreva errado. Essas duas crenças produziram uma
prática de mutilação cultural que, além de desvalorizar a forma de falar do
aluno, tratando sua comunidade como se fosse formada por incapazes, denota
desconhecimento de que a escrita de uma língua não corresponde inteiramente a
nenhum de seus dialetos, por mais prestígio que um deles tenha em um dado
momento histórico.
É provável, no entanto, que o Sr.
Pasquale Cipro Neto e o Sr. João Gabriel de Lima acreditem que os Parâmetros
Curriculares Nacionais sejam obra de membros daquela "corrente
relativista" que conseguiram se infiltrar no Ministério da Educação e se
apoderar da redação do documento oficial. Vamos, então, deixar de lado as
propostas oficiais de ensino e lançar um olhar sobre a própria prática
normativo-prescritiva de pessoas como o Sr. Pasquale — assim ficará mais fácil
descobrir por que ele não encontra argumentos para reagir às críticas bem-fundadas
dos linguistas e educadores sérios e por que só consegue fazer sucesso entre os
leigos e os que se recusam (certamente por motivações ideológicas) a aceitar
uma concepção de língua mais democrática.
Consultando a gramática que Pasquale Cipro
Neto assina em parceria com Ulisses Infante (Gramática da Língua Portuguesa,
Editora Scipione, São Paulo, 1998), encontra-se, à p. 521-522, a seguinte
explicação para o uso supostamente "correto" do verbo custar:
Custar, no sentido de "ser
custoso", "ser penoso", "ser difícil" tem como sujeito
uma oração subordinada substantiva reduzida. Observe:
Ainda me custa aceitar sua
ausência.
Custou-nos encontrar sua casa.
Custou-lhe
entender a regência do verbo custar.
No
Brasil, na linguagem cotidiana, são comuns construções como "Zico custou a
chutar" ou "Custei para entender o problema" [...]
Na língua culta, essas construções em
que custar apresenta um sujeito indicativo de pessoa são rejeitadas. Em seu lugar,
devem-se utilizar construções em que surja objeto indireto de pessoa:
"Custou a Zico chutar" (= Custou-lhe chutar").
Quero chamar a atenção, aqui, para a
seguinte afirmação dos autores: "Na língua culta, essas construções [...]
são rejeitadas". Aqui está um exemplo claro e nítido de uma concepção
abstrata da língua, tratada como uma espécie de entidade viva, de sujeito
animado, capaz de "rejeitar" alguma coisa. Ora, que língua culta é
essa que supostamente rejeita essas construções? Será a língua dos nossos
grandes escritores, que sempre serviu de material para o trabalho dos
gramáticos normativistas? Fui investigar e descobri que não é, porque os
exemplos de uso do verbo custar com sujeito são mais do que abundantes na nossa
melhor literatura:
(1) "Seixas custou a conter-se" (José de Alencar)
(2) "... as moças
custavam a se separar" (Clarice Lispector)
(3) "Renato custou a
acordar" (Carlos Drummond de Andrade)
(4) "Felicidade, custas
a vir e, quando vens, não te demoras" (Cecília Meireles)"
Será que Alencar, Clarice Lispector,
Drummond e Cecília Meireles não são bons exemplos de usuários da "língua
culta"? Se não é na literatura, quem sabe, então, se recorrermos à
imprensa contemporânea? Será que é lá que mora a famosa "língua
culta" que rejeita essas construções? Ora, consultando o jornal onde o
próprio Pasquale Cipro Neto escreve (Folha de S. Paulo) e onde presta serviços
de "consultor de português" (seja isso lá o que for),
encontramos:
(6) Quem foi ao show de
Maria Bethânia, anteontem à noite, depois de assistir o sóbrio concerto de João
Gilberto, custou a crer que estivesse na mesma cidade (22/6/1998, p.
5-10).
(7) O técnico colombiano,
Hernán Darío Gómez, [...] custou a admitir a superioridade rival (16/6/1998, p.
4-14).
(8) O nome Kubitschek era
complicado de pronunciar, custou a ser assimilado pela fonética eleitoral
(21/11/1997, p. 4-3).
Se lembrarmos que José de Alencar
morreu em 1877, fica muitíssimo claro que essa construção está viva e presente
na nossa língua há muito mais de um século! Os autores da gramática estão
proferindo uma inverdade ao dizer que essa construção é típica do "Brasil
quotidiano". Os Srs. Pasquale e Ulisses, em vez de se curvar à realidade
concreta dos fatos, tentam nos convencer de que a opção que eles preferem, só
porque é a tradicional, é que deve ser considerada "a melhor". É uma
atitude essencialmente dogmática, que se recusa a empreender a pesquisa
empírica mínima necessária para afirmações sobre o que existe e o que não existe
na língua. Além disso, essa atitude é ainda mais conservadora do que a posição
assumida por gramáticos de gerações anteriores à deles, como Celso Pedro Luft e
Domingos Paschoal Cegalla, que reconhecem a vitória da construção "eu
custo a crer que"...
Esse é apenas um pequeno exemplo de
como é fácil, para um pesquisador munido de instrumental teórico consistente e
de metodologia científica adequada, desautorizar uma a uma, e de modo
convincente, as afirmações presentes no trabalho do Sr. Pasquale Cipro Neto e
de outros atuais defensores da doutrina gramatical tradicional mais normativa e
mais prescritiva possível. Por causa de tudo isso é que a estreia do Sr.
Pasquale no programa Fantástico da Rede Globo representa, para a grande maioria
dos cientistas da linguagem e dos educadores conscientes, mais um exemplo de
como o nosso trabalho ainda está no começo, apesar de tudo o que já temos dito
e feito. O quadro do Sr. Pasquale no Fantástico faz regredir em pelo menos 25
anos os grandes avanços já obtidos pela Linguística na renovação do ensino de
língua na escola brasileira. Não consigo, portanto, deixar de repetir o chavão:
ele se encontra na contramão da História.
Como já enfatizei acima, pessoas como o
Sr. Pasquale só conseguem fazer sucesso entre os leigos, porque dizem
exatamente o que as pessoas desejam ouvir: os mitos, as superstições e as
crenças infundadas que, há mais de dois mil anos, guiam o senso-comum ocidental
no que diz respeito à língua. Refiro-me ao senso-comum ocidental porque essa
situação de embate entre uma ciência linguística moderna e uma doutrina
gramatical arcaica também se verifica em outros países – basta ler os livros
Language Myths, publicado na Inglaterra sob organização de L. Bauer e P.
Trudgill, e o Catalogue des idées reçues sur le langage, publicado na França
por Marina Yaguello. É por isso que escrevi, acima, que nossa luta ainda está
no começo. É uma pena que não possamos contar com a ajuda dos meios de
comunicação para dissipar todos esses mitos e preconceitos, que impedem a
formação, no Brasil em particular, de uma autoestima linguística, uma vez que
tudo o que os brasileiros ouvem e leem são os mesmos chavões, repetidos há
séculos, de que "brasileiro não sabe português" e que a língua que
falamos é "português estropiado". (O pesquisador canadense Christophe
Hopper localizou lamúrias e queixas sobre a "ruína" e a
"decadência" do francês em textos publicados em 1933, 1905, 1730 e
1689, o que prova a antiguidade desse discurso alarmista e preconceituoso sobre
o fenômeno da mudança das línguas ao longo do tempo!)
Outro fato lamentável, na reportagem de
VEJA, é que seu autor não tenha prestado o grande favor à sociedade de
identificar quem são os membros dessa "certa corrente relativista",
para que todos, público leitor em geral e linguistas profissionais em
particular, pudéssemos nos precaver contra o suposto "raciocínio
torto" de um "esquerdismo de meia-pataca" dos que acreditam que
ensinar a norma-padrão não seria útil para as classes sociais desfavorecidas.
Minha curiosidade ficou especialmente aguçada porque, como pesquisador dedicado
há muitos anos ao estudo das relações entre língua, ensino de língua e
fenômenos sociais, até hoje não encontrei uma única obra - assinada por linguista
de formação ou por educador profissional - que negasse a importância do ensino
da norma-padrão na escola brasileira, que pregasse a ideia torpe de que não se
deve ensinar as formas prestigiosas da língua, ou que "preconizam que os
ignorantes continuem a sê-lo", para citar as palavras infelizes da
reportagem de VEJA.
Entre os membros da comunidade
acadêmico-científica que não se intimidam diante da pressão esmagadora das
"superstições, mitos e estereótipos" sobre a língua podemos citar a
Profa. Magda Soares (reconhecida como uma das mais importantes educadoras
brasileiras de todos os tempos) e o Prof. Sírio Possenti (que nunca teve papas
na língua para denunciar e demolir cientificamente os absurdos proferidos por
gente como Pasquale Cipro Neto). Ora, já em 1986, Magda Soares, em seu livro
(um clássico da educação brasileira) Linguagem e Escola (Editora Ática),
escrevia, sem hesitação (p. 78):
Um ensino de língua materna
comprometido com a luta contra as desigualdades sociais e econômicas reconhece,
no quadro dessas relações entre a escola e a sociedade, o direito que têm as
camadas populares de apropriar-se do dialeto de prestígio, e fixa-se como
objetivo levar os alunos pertencentes a essas camadas a dominá-lo, não para que
se adaptem às exigências de uma sociedade que divide e discrimina, mas para que
adquiram um instrumento fundamental para a participação política e a luta
contra as desigualdades sociais.
Também em seu muito divulgado livro Por
que (não) ensinar gramática na escola (Ed. Mercado de Letras, 1996), Sírio
Possenti faz questão de enfatizar (p. 17-18):
O PAPEL DA ESCOLA É ENSINAR
LÍNGUA PADRÃO
[...] adoto sem qualquer dúvida o
princípio (quase evidente) de que o objetivo da escola é ensinar o português
padrão, ou, talvez mais exatamente, o de criar condições para que ele seja
aprendido. Qualquer outra hipótese é um equívoco político e ideológico.
E eu mesmo, que não tenho hesitado em
combater abertamente a manutenção das concepções arcaicas e preconceituosas de
língua, escrevi em meu mais recente livro publicado (Português ou Brasileiro?
Um convite à pesquisa, Parábola Editorial, 2001):
[...] como responder a pergunta
(invariavelmente presente na fala dos professores de língua): qual o objeto de
ensino nas aulas de português? O que devemos ensinar a nossos alunos em sala de
aula?
Uma resposta concisa e rápida seria:
devemos ensinar a norma-padrão. Já que só se pode ensinar algo que o aprendiz
ainda não conhece, cabe à escola ensinar a norma-padrão, que não é língua materna
de ninguém, que nem sequer é língua, nem dialeto, nem variedade, como enfatizei
acima. Ensinar o padrão se justificaria pelo fato dele ter valores que não
podem ser negados - em sua estreita associação com a escrita, ele é o
repositório dos conhecimentos acumulados ao longo da história. Esses
conhecimentos, assim armazenados, constituiriam a cultura mais valorizada e
prestigiada, de que todos os falantes devem se apoderar para se integrar de
pleno direito na produção/condução/transformação da sociedade de que fazem
parte.
Tenho, portanto, a consciência muito
tranquila (como decerto também a têm Magda Soares, Sírio Possenti e, de fato, a
maioria dos linguistas e educadores brasileiros comprometidos com a
democratização de nossa sociedade) de não fazer parte daquela "corrente
relativista" e de não poder ser acusado de ter um "raciocínio
torto". Por isso, volto a lamentar que o Sr. João Gabriel de Lima não
tenha dado nome aos bois, para que, juntos, pudéssemos combater esse suposto
"esquerdismo de meia-pataca". Não nomear seus adversários no plano
intelectual, no entanto, é prática corrente de pessoas como Pasquale Cipro Neto
que, embora alegando referir-se a "alguns" linguistas, nunca se dá ao
trabalho de dizer quem são os "idiotas", "ociosos" e
"deslumbrados" a que se refere.
A grande diferença entre os linguistas
e educadores que defendem o ensino da norma-padrão e os apregoadores da
doutrina gramatical arcaica está no fato de que já se sabe hoje em dia que,
para aprender as formas mais padronizadas e prestigiosas da língua, não é
necessário conhecer a nomenclatura gramatical tradicional, as definições
tradicionais, nem praticar a velha e mecânica análise lexical e muito menos a
torturante análise sintática. Em seu depoimento a VEJA, o Sr. Pasquale Cipro
Neto lamenta que ninguém mais saiba diferenciar "sujeito" de
"predicado", nem mesmo os professores. Ora, todo um longo trabalho de
investigação teórica e de pesquisa em sala de aula - no Brasil e no resto do
mundo -, trabalho que se faz há pelo menos trinta anos, já deixou muito claro
que não é decorando as páginas da gramática normativa que uma pessoa será capaz
de falar, ler e escrever adequadamente às diversas situações. O já citado M.
Stubbs escrevia, em 1987, que [...]
Muita gente lamenta o fim do ensino da
gramática formal (análise sintática e coisas assim), alegando que ele ajudava
as crianças a escrever melhor, com mais precisão e assim por diante. [...] é
duvidoso que aquele ensino jamais tenha ajudado muita gente a escrever melhor,
e é nítido que ele afugentou um grande número de pessoas. A relação entre
análise e compreensão, e entre compreensão consciente e produção de linguagem
efetiva, é difícil de demonstrar.
E o pedagogo canadense Gilles Gagné, em
1983, já dizia: "O uso da língua procede da intenção para a
convenção", conclui McShane (1981), ao passo que a escola procede
infelizmente ao contrário, isto é, das convenções linguísticas para as
intenções de comunicação; intenções, além disso, quase sempre artificiais e
impostas ou sugeridas pelo mestre.
E aquele que é considerado hoje,
inclusive internacionalmente, como o nome mais importante da pesquisa
científica sobre o português brasileiro contemporâneo – o Prof. Ataliba T. de
Castilho, da USP, atual presidente da Associação de Linguística e Filologia da
América Latina e coordenador do grande Projeto da Gramática do Português Falado
(projeto apresentado de maneira distorcida e preconceituosa no número 1710 de
VEJA) – escreve com toda clareza em seu livro A língua falada e o ensino de
português (Ed. Contexto, 1998, p. 21-22):
[...] os recortes linguísticos devem
ilustrar as variedades sócio culturais da Língua Portuguesa, sem discriminações
contra a fala vernácula do aluno, isto é, de sua fala familiar. A escola é o
primeiro contato do cidadão com o Estado, e seria bom que ela não se
assemelhasse a um "bicho estranho", a um lugar onde se cuida de
coisas fora da realidade cotidiana. Com o tempo o aluno entenderá que para cada
situação se requer uma variedade linguística, e será assim iniciado no padrão
culto, caso já não o tenha trazido de casa.
Desse modo, prossegue o autor (p.
23), a gramática deixará de ser vista pelos alunos como a disciplina do
certo e do errado, reassumindo sua verdadeira dimensão, que é a de esquadrinhar
através dos materiais linguísticos o funcionamento da mente humana.
Afinal, o que aconteceu, ao longo dos
séculos, segundo Castilho, foi que a gramática, que não era uma disciplina
autônoma, assumiu na escola uma vida própria, desgarrada de suas origens, e
concentrada apenas na sentença, na palavra e no som, obscurecendo-se sua
argumentação e empobrecendo-se seu alcance.
Se existe, porém, uma grande resistência contra
o redimensionamento do lugar do ensino da gramática na escola é porque todos
sabemos que, ao longo do tempo, o conhecimento mecânico da doutrina gramatical
se transformou num instrumento de discriminação e de exclusão social.
"Saber português", na verdade, sempre significou "saber
gramática", isto é, ser capaz de identificar - por meio de uma
terminologia falha e incoerente - o "sujeito" e o
"predicado" de uma frase, pouco importando o que essa frase queria
dizer, os efeitos de sentido que podia provocar etc. Transformada num saber
esotérico, reservado a uns poucos "iluminados", a
"gramática" passou a ser reverenciada como algo misterioso e
inacessível - daí surgiu a necessidade de "mestres" e
"guias", capazes de levar o "ignorante" a atravessar o
abismo que separa os que sabem dos que não sabem português...
Em conclusão, Sr. Editor, gostaria de
lhe pedir que, uma vez que tão amplo espaço foi concedido aos defensores da ideia
medieval de que "os brasileiros não sabem falar bem", caberia agora a
VEJA conceder igual espaço aos verdadeiros especialistas, às pessoas que
dedicam toda sua energia, toda sua inteligência, toda sua vida, enfim, ao
estudo dos fenômenos da linguagem humana e à proposição de novos métodos de
ensino, capazes de dar voz aos que, por força de tantas estruturas sociais injustas,
sempre foram mantidos no silêncio. Talvez assim Veja possa se livrar
do risco de ser acusada de promover "distorções deliberadas dos fatos
linguísticos e pedagógicos".
Atenciosamente,
Marcos Bagno
Entendendo a carta:
01 – O primeiro parágrafo
contém a tese a ser desenvolvida no decorrer do texto. Qual é essa tese?
A de que a
reportagem da Veja pode ser qualificada como “uma série de distorções
deliberadas dos fatos linguísticos e pedagógicos por parte da mídia”.
02 – No segundo parágrafo, o
autor da carta explica a causa principal das distorções linguísticas e
pedagógicas por parte da mídia. Qual seria?
A falta de
preparo de jornalistas e comunicadores para tratar do tema.
03 – Pasquale questiona:
“Como o aluno vai aprender a diferença entre sujeito e predicado se nem o
professor entende direito? Por que, segundo Bagno, essa questão constitui uma
distorção pedagógica?
É uma distorção
pedagógica porque a questão de Pasquale tem como pressuposto a falsa ideia de
que aprender a classificar termos gramaticais (como sujeito e predicado)
signifique aprender Língua Portuguesa.
04 – Marcos Bagno usa um
recurso argumentativo bastante eficiente para defender sua posição: desautoriza
aqueles que defendem ideias contrárias. Explique essa afirmação e localize o
recurso na carta reproduzida.
Pasquale e o
jornalista João Gabriel de Lima não seriam as pessoas mais adequadas para falar
sobre a língua, já que não possuem formação para isso. O terceiro e o quarto
parágrafos exemplificam o recurso.
05 – Qual seria a estratégia
de Pasquale, segundo Marcos Bagno, para falta de argumentos consistentes?
Ofender seus supostos “adversários”: os
linguistas de formação teórica consistente.
06 – O que seria um
argumento consistente, segundo Marcos Bagno?
Aquele baseado em
pesquisa sistemática, em dados empíricos, em trabalhos científicos de
especialistas.
07 – O autor se refere ao
embasamento teórico de Pasquale como sendo ultrapassado e não válido. Comente.
No quinto
parágrafo, o autor comenta que as opiniões de Pasquale estão baseadas na
“arcaica doutrina gramatical normativo-prescritiva, cuja inconsistência teórica
e cujos problemas epistemológicos graves vêm sendo demonstrados e criticados
pela Linguística moderna desde pelo menos o final do século XIX”.
08 – Observe que o autor da
carta faz várias citações no decorrer de seu texto. Qual é a função dessas citações?
As citações
comprovam e/ou endossam o que diz o autor da carta. Assim, conferem
credibilidade ao texto.
09 – Releia: “É provável, no entanto, que o Sr. Pasquale
Cipro Neto e o Sr. João Gabriel de Lima acreditem que os Parâmetros
Curriculares Nacionais sejam obra de membros daquela "corrente
relativista" que conseguiram se infiltrar no Ministério da Educação e se
apoderar da redação do documento oficial.”
A ironia não é um argumento, mas pode
ser um excelente recurso persuasivo, ou seja, uma forma de seduzir o leitor.
Que palavras constituem ironia? Explique.
A expressão
“membros daquela corrente relativista” e as palavras “infiltrar” e “apoderar”
são relativas aos linguistas, mas sugerem, de forma irônica, obscurantismo e
marginalidade.
10 – Releia o seguinte
trecho da revista Veja.
(As
críticas) ecoam o pensamento de uma certa corrente relativista, que acha que os
gramáticos preocupados com as regras da norma culta prestam um desserviço à
língua. De acordo com essa tendência, o certo e o errado em português não são
conceitos absolutos. Quem aponta incorreções na fala popular estaria, na
verdade, solapando a inventividade e a autoestima das classes menos abastadas.
Isso configuraria uma postura elitista. Trata-se de um raciocínio torto,
baseado num esquerdismo de meia-pataca, que idealiza tudo o que é popular –
inclusive a ignorância, como se ela fosse atributo, e não problema, do “povo”.
O que esses acadêmicos preconizam é que os ignorantes continuem a sê-lo. Que
percam oportunidades de emprego e consequente chance de subir na vida por falar
errado.
a)
Aponte as premissas sobre as quais se
fundamenta esse trecho.
·
A língua portuguesa é única e invariável.
·
Existe aquilo que é certo e aquilo que é
errado falar.
·
A fala “errada” deve ser corrigida.
·
A fala popular possui incorreções, próprias
de gente ignorante.
Todas as premissas são verdadeiras.
b)
As premissas, segundo Marcos Bagno, são
falsas ou verdadeiras?
São todas falsas.
c)
O argumento mais apelativo do trecho afirma
que não ensinar a língua padrão é limitar as possibilidades de ascensão social
e profissional do estudante. Como isso é refutado na carta de Marcos Bagno?
Marcos Bagno afirma que, em hipótese alguma, nenhum linguista ou
educador jamais defendeu em obra científica tal absurdo. Muito pelo contrário,
defende-se que o ensino da norma culta seja o objetivo da escola. Entretanto, o
que se deve erradicar é o preconceito em relação às falas populares e a ideia
de que a norma culta se aprende com regras gramaticais.
11 – No texto, são
utilizadas diferentes palavras e expressões para se referir a Pasquale e a
outros profissionais do mesmo ramo.
a)
Faça uma lista dessas palavras e expressões.
Oportunistas; pregadores da tradição gramatical, detratores da
Linguística, apregoadores da doutrina gramatical arcaica, defensores da ideia
medieval de que “os brasileiros não sabem falar bem”.
b)
O que todas as palavras e expressões têm em
comum?
Todas são depreciativas e enfatizam o caráter e falta de atualização
desses profissionais.