segunda-feira, 28 de setembro de 2020

ARTIGO: O PROTAGONISMO DAS MANIFESTAÇÕES ESTÁ NO SOCIAL, E NÃO NO FACEBOOK - MARCOS HILLER - COM GABARITO

 ARTIGO: O protagonismo das manifestações está no social, e não no Facebook

                                              Marcos Hiller

Compreender essas interações mediadas pelas tecnologias digitais tem sido para mim uma questão central para a reflexão da sociedade contemporânea na medida em que se evidenciam transformações de ordem social, cultural, política e econômica.

 Ao pensarmos sobre o que está acontecendo hoje no Brasil, devemos ter um cuidado extremo para não cairmos em análises simplistas das manifestações e de todas essas movimentações sociais que assistimos diante de nossas janelas, televisores e telas de smartphones. Muitas das coisas que ando lendo colocam, por exemplo, o Facebook como um fator fundamental e protagonista do que estamos presenciando. Eu não parto dessa lógica. Colocar o Facebook como ferramenta principal de tudo isso que é, para mim, um argumento míope, raso e inconsistente.

O próprio uso do termo revolução, que aparece em textos, comentários e opiniões nas mídias e sobretudo nas nossas timelines, deve ser repensado. Será que estamos diante de uma revolução? Acho que não e ainda é muito cedo para concluir isso. Compreender essas interações mediadas pelas tecnologias digitais tem sido para mim uma questão central para a reflexão da sociedade contemporânea na medida em que se evidenciam transformações de ordem social, cultural, política e econômica.

Olhando no retrovisor da história, tivemos sim uma revolução da escrita no Oriente Médio no século V, ou então a revolução da imprensa de Johannes Gutemberg no século XV e até mesmo a tão estudada Revolução Industrial no século retrasado. Revolução significa ruptura. Significa que antes era de uma forma e depois ficou de outra. Na própria Revolução Industrial, coloca-se equivocadamente a máquina como o protagonista do acontecimento. O protagonismo está na apropriação social das pessoas sobre o surgimento da máquina, e não na máquina. É o mesmo que colocar, equivocadamente, o microblog Twitter como protagonista do que vimos acontecer na chamada Primavera Árabe. A queda de governos no Oriente Médio foi causada pelas pessoas e pela apropriação social das pessoas sobre essas redes sociais digitais. Sempre no social.

Vive-se hoje uma nova revolução? Uma revolução, ainda em curso, implementada pelas tecnologias digitais e ocasionando importantes transformações no interior dos distintos aspectos da sociedade? Há quem acredite que sim, que há uma revolução. Eu não partilho dessa opinião. Podemos ver contundentes transformações em todos os campos sociais, econômicos, políticos e culturais. Diferentemente de outras manifestações similares no Brasil e no mundo, dessa vez, vemos produtos culturais sendo apropriados pelas pessoas (sempre pelas pessoas) como, por exemplo, a música da banda O Rappa (“Vem pra rua”), utilizada em um filme publicitário da montadora FIAT e com o mote da Copa do Mundo, mas que já virou uma espécie de hino desses levantes. Ou então a máscara branca do grupo “Anonymous”, sendo utilizada como símbolo central e mascarando e ocultando rostos de muitas pessoas. Sem falar dos cartazes com frases de protesto e dizeres bem humorados.

Neste texto, eu coloco a minha reflexão sobre o que estamos vendo, e opto pela não-adoção do termo revolução para classificar essas transformações que evidenciamos. Os argumentos de algumas pessoas carregam um tom radicalmente revolucionário, fazendo crer que tudo aquilo que antes era passado, passa a ser agora de forma diferente, antagonizando e contradizendo o que passou. Se não existisse Facebook, estaria acontecendo toda essa mobilização social nas ruas? Certamente sim. Não é uma página de web, na verdade uma grande mídia originada em um dormitório de Harvard, que deve ser colocada no centro dessas transformações sociais, políticas e econômicas que podem estar por vir. Tudo bem que o Facebook e outras plataformas podem é contribuir de forma interessante no sentido de articular encontros e mobilizar pessoas. Mas os atores principais dessa história toda são e sempre serão as pessoas, o povo, o social. Oras, nem metade do Brasil possui acesso à Internet e cerca de um terço do país acessa o Facebook, sendo que desses, cerca de 30 milhões acessam o site de Mark Zuckerberg na palma na mão. O fato é que ainda é muito cedo para prever no que resultará toda essa mobilização. O preço das passagens já voltaram ao valor anterior. Mas o que realmente está por vir, eu não me arrisco a prever.

ENTENDENDO O TEXTO

1)   O texto acima trata principalmente

a)   do facebook como protagonista das manifestações que estão sendo presenciadas no Brasil.

b)   da revolução industrial que aconteceu  no século retrasado, tendo o microblog Twitter como protagonista.

c)   das plataformas que devem contribuir de forma interessante no sentido de articular encontros e mobilizar pessoas.

d)   dos atores responsáveis pelas manifestações que são: as pessoas, o povo, o social.

 

2)   A partir da leitura do texto pode-se afirmar que é fato

a)   a inexistência das redes sociais nas manifestações.

b)   a existência das redes sociais nas manifestações.

c)   o aparecimento das revoluções a partir do Facebook.

d)   o Facebook como principal responsável pelas manifestações.

 

3)   Os termos mas (4º parágrafo) e se (5º parágrafo) indicam

a)   Condição e causa.

b)   Causa e oposição.

c)   Condição e oposição.

d)   Oposição e condição.

 

TEXTO: A CARREGADORA DE PEDRAS - SÔNIA BIONDO - COM GABARITO

 TEXTO: A CARREGADORA DE PEDRAS

                                     Sônia Biondo


     Desde que conquistou o direito à jornada dupla de trabalho, a chamada mulher moderna ainda parece estar longe de conseguir desfazer o mal-entendido que provocou a briga pela igualdade profissional com os homens. Não era bem isso o que desejava. Mas, no afã de se liberar de outras opressões, ela acabou partindo para o mercado de trabalho como se ele fosse a solução de todos os problemas financeiros, conjugais, maternais e muitos outros “ais”. E pagou o preço da precipitação, claro. 

            Agora não adianta chorar sobre o leite derramado – até porque a maior parte das vezes continua sendo ela que vai limpar, ah, ah! Falando sério, todas nós sabemos que há muito a fazer para promover alguns ajustes e atualizações nessa relação de direitos e deveres de homens e mulheres. Como falar sobre isso ajuda, vamos lá.

           Em primeiro lugar, a questão do tempo livre. Que não existe, de fato. Aquele ditado “descansa carregando pedras” foi feito para ela. Trabalhando fora ou dentro de casa, a mulher dificilmente se livra da carga das tarefas domésticas, mesmo que não se envolva pessoalmente. Costuma ser dela a responsabilidade pela arregimentação das empregadas, faxineiras, babás, jardineiros, lavadeiras, passadeiras, prestadores de serviço em geral, sem falar no abastecimento da casa. (...)

     Depois, com o desaparecimento gradual da parceria patroa/empregada doméstica, homens e mulheres terão, mais cedo do que se pensam, que lidar com a administração do caos doméstico. Sem privilégios. E a primeira providência para esse futuro cor-de-rosa começa com a educação progressista dos filhos, os novos maridos e esposas que contarão com uma boa ajuda de um arsenal de maravilhas eletrônicas – entre elas, a de empregada-robô. Que não enguiça. Porque, se enguiçar, já sabem quem vai mandar consertar. Ou não?

 ENTENDENDO O TEXTO

 1)   O tema do texto é

a)   a conquista da dupla jornada de trabalho das mulheres.

b)   o desaparecimento gradual da parceria patroa/empregada.

c)   a sobrecarga de trabalho da mulher moderna.

d)   a briga da mulher moderna pela igualdade profissional.

 

2)   A partir da leitura do texto podemos afirmar que a chamada mulher moderna

a)   apesar  de conquistar a igualdade profissional não solucionou seus problemas.

b)   conquistou igualdade profissional com os homens e se livrou das tarefas domésticas.

c)   descansa nos horários de folga, e se livra do doce organograma do lar.

d)   partiu para o mercado de trabalho para resolver todos os seus problemas.

    

3)   No texto, a expressão “...não adianta chorar sobre o leite derramado” tem o sentido de

a)   se o leite, literalmente, for derramado às mulheres que irão limpar.

b)   que o direito de igualdade foi adquirido, porém foi mal-entendido.

c)   que as mulheres podem reclamar o cumprimento dos seus direitos adquiridos.

d)   que a solicitação feita pelas mulheres foi atendida e não há como mudá-la.




 

ARTIGO: POR QUE O MUNDO ESTÁ TÃO DESORIENTADO - DOMENICO DE MASI - COM GABARITO

 ARTIGO: POR QUE O MUNDO ESTÁ TÃO DESORIENTADO

Domenico de Masi

   Se eu tivesse de indicar qual denominador comum psicológico caracteriza a sociedade atual no mundo inteiro, não teria dúvida. Alguns povos são dominadores, outros, submissos; alguns são tímidos, outros agressivos. Há os desorganizados e os extremamente metódicos. Alguns são laicos e outros
fundamentalistas. Também existem os povos voltados para a modernidade e outros que são tradicionalistas. No entanto, todos os povos do mundo estão, hoje, desorientados.
          O que leva a essa desorientação é a rapidez e a multiplicidade das mudanças. Seis séculos antes de Cristo, quando as transformações ocorriam lentamente, Heráclito escreveu: "É na mudança que as coisas se assentam". Mas poderíamos dizer isso hoje? A invenção das técnicas para dominar o fogo, o desenvolvimento da agricultura e do pastoreio na Mesopotâmia, as grandes descobertas científicas e geográficas realizadas entre os séculos XII e XVI representam saltos.

          No entanto, nenhuma dessas mudanças se realizou em espaço de tempo inferior à vida média de uma pessoa. Nenhum ser humano pôde assistir ao processo inteiro.
         Hoje as coisas são diferentes. Ao longo de poucas décadas, passamos de uma economia industrial centrada na produção de automóveis e de eletrodomésticos a uma economia pós-industrial centrada na produção de serviços, informação, símbolos, valores e estética.

          Passamos de uma cultura moderna de livros e de jornais a uma pós-moderna feita de televisão e internet. Saímos do poder exercido por capitães da indústria para o de cientistas, artistas e da mídia de massa. (...)
         É como se, de improviso, uma imensa avalanche, uma enorme massa d’água, uma erupção vulcânica e um terremoto se abatessem de uma só vez sobre uma região tranquila, aterrorizando seus habitantes.

           Alguns desses habitantes talvez até contassem com a destruição, mas a grande maioria foi surpreendida durante o sono e vive agora na maior desorientação.(...)
          Quem está desorientado passa, de fato, por uma profunda sensação de crise, e quem se sente em crise deixa de projetar o próprio futuro. Quando uma pessoa, uma família ou um país renuncia a projetar seu futuro, outro o projetará no lugar deles. E não fará por bondade altruísta, mas em proveito próprio.


(Revista Época, p. 92, 13/09/2007)SARESP/2003.

ENTENDENDO O TEXTO

1)   “Passamos de uma cultura moderna de livros e de jornais a uma pós-moderna feita de televisão e internet”. Indique o trecho em que o autor emite uma opinião a respeito da constatação apresentada acima.

a)   “Saímos do poder exercido por capitães da indústria para o de cientistas, artistas e da mídia de massa”.

b)   “E não fará por bondade altruísta, mas em proveito próprio.”

c)   “No entanto, nenhuma dessas mudanças se realizou em espaço de tempo inferior à vida média de uma pessoa.”

d)   “É como se, de improviso, uma imensa avalanche (...) se abatessem de uma só vez sobre uma região tranquila, aterrorizando seus habitantes.”

2)   Assinale a alternativa que melhor expresse a tese defendida pelo texto.

a)   Alguns povos são dominadores; outros submissos.

b)   Alguns povos são tímidos; outros, agressivos.

c)   É desnecessário fazer projetos para o futuro.

d)   Todos os povos do mundo estão, hoje, desorientados.

3)   Identifique a alternativa que apresenta marcas do autor e do leitor do artigo, respectivamente:

a)   “tivesse de indicar qual denominador comum psicológico”.

“Alguns desses habitantes talvez até contassem com a destruição.”

b)   “Heráclito escreveu: ‘É na mudança que as coisas se assentam”.

“Nenhum ser humano pôde assistir ao processo  inteiro”.

c)   “A invenção das técnicas para dominar o fogo, (...) representam saltos”.

“No entanto, nenhuma dessas mudanças se realizou”.

d)   “não teria dúvida”. “poderíamos dizer isso hoje?”

 

4)   Leia as sentenças abaixo.

I . “Há os desorganizados e os extremamente metódicos”.

II. “Também existem os povos voltados para a modernidade e outros que são tradicionalistas.”

III. “Saímos do poder exercido por capitães da indústria para o de cientistas, artistas e da mídia de massa.”

 

Assinale a alternativa que apresenta somente argumentos relacionados à tese:

a)   I.

b)   II e III.

c)   III.

d)   I, II e III.

5)   “Passamos de uma cultura moderna de livros e de jornais a uma pós-moderna feita de televisão e internet”.

Indique o trecho em que o autor emite uma opinião a respeito da constatação apresentada acima:

a)   “Saímos do poder exercido por capitães da indústria para o de cientistas, artistas e da mídia de massa”.

b)   “E não fará por bondade altruísta, mas em proveito próprio.”

c)   “No entanto, nenhuma dessas mudanças se realizou em espaço de tempo inferior à vida média de uma pessoa.”

d)   “É como se, de improviso, uma imensa avalanche (...) se abatessem de uma só vez sobre uma região tranquila, aterrorizando seus habitantes.”

 

6)   De acordo com o autor, Heráclito teria escrito: “É na mudança que as coisas se assentam”.

Assinale a alternativa que traz uma opinião divergente:

a)   “(...) Todos os povos do mundo estão hoje desorientados.”

b)   “Se eu tivesse que indicar (...) não teria dúvida”.

c)   “Hoje as coisas são diferentes”.

d)   “Nenhum ser humano pôde assistir ao processo inteiro”.

 

7)   Em “Alguns são laicos e outros fundamentalistas tem posições relacionadas com:

a)   doutrinas religiosas.

b)   modernidade.

c)   industrialização.

d)   desorientação.

 

domingo, 27 de setembro de 2020

CONTO: O ENCONTRO - LYGIA FAGUNDES TELLES - COM GABARITO

 Conto:  O encontro

                      Lygia Fagundes Telles

  Em redor, o vasto campo. Mergulhado em névoa branda, o verde era pálido e opaco. Contra o céu, erguiam-se os negros penhascos tão retos que pareciam recortados a faca. Espetado na ponta da pedra mais alta, o sol espiava através de uma nuvem.

“Onde, meu Deus?! - perguntava a mim mesma - Onde vi esta mesma paisagem, numa tarde assim igual?”

Era a primeira vez que eu pisava naquele lugar. Nas minhas andanças pelas redondezas, jamais fora além do vale. Mas nesse dia, sem nenhum cansaço, transpus a colina e cheguei ao campo. Que calma! E que desolação. Tudo aquilo - disso estava bem certa - era completamente inédito para mim. Mas por que então o quadro se identificava, em todas as minúcias, a uma imagem semelhante lá nas profundezas de minha memória? Voltei-me para o bosque que se estendia à minha direita. Esse bosque eu também já conhecera com sua folhagem cor de brasa dentro de uma névoa dourada. “Já vi tudo isto, já vi... Mas onde? E quando?”

Fui andando em direção aos penhascos. Atravessei o campo. E cheguei à boca do abismo cavado entre as pedras.

Um vapor denso subia, como um hálito daquela garganta de cujo fundo insondável, vinha um remotíssimo som de água corrente. Àquele som eu também conhecia. Fechei os olhos. “Mas se nunca estive aqui! Sonhei, foi isso? Percorri em sonho estes lugares e agora os encontro, palpáveis, reais? Por uma dessas extraordinárias coincidências teria eu antecipado aquele passeio enquanto dormia?”

Sacudi a cabeça, não, a lembrança - tão antiga quanto viva - escapava da inconsistência de um simples sonho. Ainda uma vez fixei o olhar no campo enevoado, nos penhascos enxutos. A tarde estava silenciosa e quieta. Contudo, por detrás daquele silêncio, no fundo daquela quietude eu sentia qualquer coisa de sinistro. Voltei-me para o sol que sangrava como um olho empapando de vermelho a nuvenzinha que o cobria. Invadiu-me a obscura sensação de estar próxima de um perigo. Mas que perigo era esse e em que consistia?

Dirigi-me ao bosque. E se fugisse? Seria fácil fugir, não? Meu coração se apertou, inquieto. Fácil, sem dúvida, mas eu prosseguia implacável como se não restasse mesmo outra coisa a fazer senão avançar. “Vá-se embora depressa, depressa!” - a razão ordenava enquanto uma parte do meu ser, mergulhada numa espécie de encantamento, se recusava a voltar.

Uma luz dourada filtrava-se por entre a folhagem do bosque que parecia petrificado. Não havia a menor brisa soprando por entre as folhas enrijecidas, numa tensão de expectativa.

“A expectativa está só em mim” - pensei, triturando entre os dedos uma folha avermelhada. Veio-me então a certeza absoluta de já ter feito várias vezes esse gesto enquanto pisava naquele -mesmo chão que arfava sob os meus sapatos. Enveredei por entre as árvores. - “E nunca estive aqui, nunca estive aqui” - fui repetindo a aspirar o cheiro frio da terra. Encostei-me a um tronco e por entre uma nesga da folhagem vislumbrei o céu pálido. Era como se o visse pela última vez.

“A cilada” - pensei diante de uma teia que brilhava suspensa entre dois galhos. No centro, a aranha. Aproximei-me: era uma aranha ruiva e atenta, à espera. Sacudi violentamente o galho e desfiz a teia que pendeu em farrapos. Olhei em redor, assombrada. E a teia para a qual eu caminhava, quem? quem iria desfaze-la? Lembrei-me do sol, lúcido como a aranha. Então enfurnei as mãos nos bolsos, endureci os maxilares e segui pela vereda.

“Agora vou encontrar uma pedra fendida ao meio.” E cheguei a rir, entretida com aquele estranho jogo de reconhecimento: lá estava a grande pedra golpeada, com tufos de erva brotando na raiz da fenda. “Se for agora por este lado, vou encontrar um regato.” Apressei-me. O regato estava seco mas os pedregulhos limosos indicavam que provavelmente na próxima primavera a água voltaria a correr por ali.

Apanhei um pedregulho. Não, não estava sonhando. Nem podia ter sonhado, mas em que sonho podia caber uma paisagem tão minuciosa? Restava ainda uma hipótese: e se eu estivesse sendo sonhada? Perambulava pelo sonho de alguém, mais real do que se estivesse vivendo. Por que não? Daí o fato estranhíssimo de reconhecer todos os segredos do bosque, segredos que eram apenas do conhecimento da pessoa que me captara em seu sonho. “Faço parte de um sonho alheio” - disse e espetei um espinho no dedo. Gracejava mas a verdade é que crescia minha inquietação: “se for prisioneira de um sonho, agora escapo.” Uma gota de sangue escorreu pela minha mão, a dor tão real quanto a paisagem.

Um pássaro cruzou meu caminho num voo tumultuado. O grito que soltou foi tão dolorido que cheguei a vacilar num desfalecimento, e se fugisse? E se fugisse? Voltei-me para o caminho percorrido, labirinto sem - esperança. “Agora é tarde!” - murmurei e minha voz avivou em mim um último impulso de fuga. “Por que tarde?”

A folha que resvalou pela minha cabeça era a seca advertência que colhi no ar e fechei na mão, que eu não buscasse esclarecer o mistério, que não pedisse explicações para o absurdo daquela tarde tão inocente na sua aparência. Tinha apenas que aceitar o inexplicável até que o nó se desatasse, na hora exata.

Enveredei por entre dois carvalhos. Ia de cabeça baixa, o coração pesado mas as passadas eram enérgicas, impelida por uma energia que não sabia de onde vinha. “Agora vou encontrar uma fonte. Sentada ao lado, está uma moça.”

Ao lado da fonte, estava a moça vestida com um estranho traje de amazona. Tinha no rosto muito branco uma expressão tão ansiosa que era evidente estar à espera de alguém. Ao ouvir meus passos, animou-se para cair em seguida no maior desalento.

Aproximei-me. Ela lançou-me um olhar desinteressado e cruzou as mãos no, regaço.

- Pensei que fosse outra pessoa, estou esperando uma pessoa...

Sentei-me numa pedra verde de musgo, olhando em silêncio seu traje completamente antiquado: vestia uma jaqueta de veludo preto e uma extravagante saia rodada que lhe chegava até a ponta das botinhas de amarrar. Emergindo da gola alta da jaqueta destacava-se a gravata de renda branca, presa com um broche de ouro em forma de bandolim. Atirado no chão, aos seus pés, o chapéu de veludo com uma pluma vermelha.

Fixei-me naquela fisionomia devastada. “Já vi esta moça, mas onde foi? E quando?...” Dirigi-me a ela sem o menor constrangimento, como se a conhecesse há muitos anos.

- Você mora aqui perto?

- Em Valburgo - respondeu sem levantar a cabeça.

Mergulhara tão profundamente nos próprios pensamentos, que parecia desligada de tudo, aceitando minha presença sem nenhuma surpresa, não notando sequer o disparatado contraste de nossas roupas. Devia ter chorado. E agora ali estava numa patética exaustão, as mãos abandonadas no regaço, alguns anéis de cabelo caindo pelo rosto. Nunca criatura alguma me pareceu tão desesperada, tão tranquilamente desesperada, se é que cabia tranquilidade no desespero. Perdera toda a esperança e decidira resignar-se. Mas sentia-se a fragilidade naquela resignação.

- Valburgo, Valburgo... - fiquei repetindo. O nome não me era desconhecido. E não me lembrava de nenhum lugar com esse nome em toda aquela região.

- Fica logo depois do vale. Não conhece Valburgo?

- Conheço - respondi prontamente. Tinha agora a certeza de que esse lugar não existia mais.

Com um gesto indiferente, ela tentou prender o cabelo que desabava do penteado alto. Afrouxou ansiosamente o laço da gravata, como se lhe faltasse o ar. O bandolim de ouro pendeu, repuxando a renda. “Esse broche... Mas já não vi esse mesmo broche nessa mesma gravata?!”

- Eu esperava uma pessoa - disse com esforço, voltando o olhar dolorido para o cavalo preso a um tronco.

- Gustavo?

Esse nome escapou-me com tamanha espontaneidade que me assustei, era como se estivesse sempre em minha boca, aguardando aquele instante para ser dito.

- Gustavo - repetiu ela e sua voz era um eco. Gustavo.

Encarei-a. Mas por que ele não tinha vindo? “E nem virá, nunca mais. Nunca mais.”

Fixei obstinadamente o olhar naquela desconcertante personagem de um antiquíssimo álbum de retratos. Álbum que eu já folheara muitas vezes, muitas. Pressentia agora um drama com cenas entremeadas de discussões tão violentas, lágrimas. A cena esboçou-se esfamadamente nas minhas raízes, cena que culminou naquela noite das vozes exasperadas. De homens. De inimigos. Alguém fechou as janelas da pequena sala frouxamente iluminada por um candelabro. Procurei distinguir o que diziam quando através da vidraça embaçada vi delinear-se a figura de um velho magro, de sobrecasaca preta, batendo furiosamente a mão espalmada na mesa enquanto parecia dirigir-se a uma máscara de cera que flutuava na penumbra.

Moveu-se a máscara entrando na zona de luz. Gustavo! Era Gustavo. A mão do velho continuou batendo na mesa e eu não podia me despregar dessa mão tão familiar com suas veias azuis se enroscando umas nas outras numa rede de fúria. Nos punhos de renda de sua camisa destacavam-se com uma nitidez atrozos rubis de suas abotoaduras. Um dos homens avançou. Foi Gustavo? Ou o velho? A garrucha avançou também e a cena explodiu em, meio de um clarão. Antes do negrume total vi por último as -abotoaduras brilhando irregulares como gotas de sangue.

Senti o coração confranger-se de espanto, “quem foi que atirou, quem foi?!” Apertei os nós dos dedos contra os olhos. -Era quase insuportável a violência com que o sangue me golpeava as fontes.

- Você devia voltar para casa.

- Que casa? - perguntou ela abrindo as mãos.

Olhei para suas mãos. Subi o olhar até seu rosto e fiquei sem saber o que dizer: era parecidíssima com alguém que eu conhecia tanto.

- Por que não vai procurá-lo? - lembrei-me de perguntar. Mas não esperei resposta. A verdade é que ela também suspeitava de que estava tudo acabado.

Escurecia. Uma névoa roxa - e que eu não sabia se vinha do céu ou do chão - parecia envolvê-la numa aura. Achei-a impregnada da mesma falsa calmaria da paisagem.

- Vou-me embora - disse apanhando o chapéu.

Sua voz chegou-me aos ouvidos bastante próxima. Mas singularmente longínqua. Levantei-me. Nesse instante, soprou um vento gelado com tamanha força que me vi enrolada numa verdadeira nuvem de folhas secas e poeira. A ramaria vergou num descabelamento desatinado. Verguei também tapando a cara com as mãos. Quando consegui abrir os olhos ela já estava montada. O mesmo vento que despertara o bosque, com igual violência arrancou-a daque­la apatia: palpitava em cima do cavalo tão elétrico quanto as folhas vermelhas rodopiando em redor. Espicaçado, o animal batia com os cascos nos pedregulhos, desgrenhado, indócil. Quis retê-la..

- Há ainda uma coisa!

Ela então voltou-se para mim. A pluma vermelha de seu chapéu debatia-se como uma labareda em meio da ventania. Seus olhos eram agora dois furos na face de um tom acinzentado de pedra.

- Há ainda uma coisa - repeti agarrando as rédeas do cavalo. Ela arrancou as rédeas das minhas mãos e chicoteou o cavalo. Recuei. Aquela chicotada atingiu em cheio o mistério. Desatou-se o nó na explosão da tempestade. Meus cabelos se eriçaram. Era comigo que ela se parecia! Aquele rosto era o meu.

- Eu fui você - balbuciei. - Num outro tempo eu fui você! - quis gritar e minha voz saiu despedaçada. Tão simples tudo, por que só agora entendi?... O bosque, a aranha, o bandolim de ouro pendendo da gravata, a pluma do chapéu, aquela pluma que minhas mãos tantas vezes alisaram... E Gustavo? Estremeci. Gustavo! A saleta esfumaçada, se fez nítida. Lembrei-me do que tinha acontecido. E do que ia acontecer.

- Não! - gritei, puxando de novo as rédeas. Um raio chicoteou o bosque com a mesma força com que ela chicoteou o cavalo. Ele empinou, imenso, negro, os olhos saltados, arrancando-se das minhas mãos. Estatelada, vi-o fugir por entre as árvores.

Fui atrás. O vento me cegava. Espinhos me esfrangalhavam a roupa. Mas eu corria, corria alucinadamente na tentativa de impedir o que já sabia inevitável. Guiava-me a pluma vermelha que ora desaparecia, ora ressurgia por entre as árvores, flamejante na escuridão. Por duas vezes senti o cavalo tão próximo que poderia tocá-lo se estendesse a mão. Depois o galope foi se apagando até ficar apenas o uivo do vento.

Assim que atingi o campo, desabei de joelhos. Um relâmpago estourou e por um segundo, por um brevíssimo segundo, consegui vislumbar ao longe a pluma debatendo-se ainda. Então gritei, gritei com todas as forças que me restavam. E tapei os ouvidos para não ouvir o eco de meu grito misturar-se ao ruído pedregoso de cavalo e cavaleira se despencando no abismo.

 

ENTENDENDO O CONTO

 1)   O texto “O Encontro” é um texto:

(A) poético.

(B) narrativo.

(C) jornalístico.

(D) dissertativo.

(E) descritivo.

 

    2) Na frase ―Já vi tudo isso, já vi...Mas onde?, o uso das reticências sugere

       (A) impaciência.

       (B) impossibilidade.

       (C) incerteza.

       (D) irritação.

 

   3)  No trecho, ―Mas por que então o quadro se identificava, em todas as minúcias, a uma imagem semelhante lá nas profundezas da minha memória? o termo destacado significa

       (A) colina.

       (B) detalhes.

       (C) partes.

       (D) redondeza.

 

4) Como o leitor é inserido nessa história?

       Por meio da descrição do ambiente pela visão da própria protagonista.

 

5) Cite um trecho que mostra o modo como a protagonista vê e precebe a paisagem ao seu redor.

       “[...] os negros penhascos tão retos que pareciam retos que pareciam recortados a faca. Espetado na ponta da pedra mais alta, o sol espiava através de uma nuvem.” (TELLES, 1998, p.69)

 

6) Como a autora narra a história?

     Narra em detalhes o que acontece com ela... é uma narrativa fantástica, cheia de realidade e sonhos.

 

7) Cite alguns versos onde ocorre a figura de linguagem de personificação.

     “...Voltei-me para o sol que sangrava...”

     “A tarde estava silenciosa e quieta”.

     “...E cheguei à boca do abismo cavado entre as pedras.”

        8) No decorrer da narrativa, a personagem-protagonista cria uma espécie de jogo do reconhecimento de que forma?

             Através de uma tensão entre a possiblidade de a personagem estar prevendo o futuro(previsões) ou lembrando-se do passado(reminiscência). Muitas são as previsões (ou seriam lembranças?) que a personagem faz.

 

       9) Qual é o ponto alto dessa narrativa?

            O momento do encontro da personagem com seu duplo e do reconhecimento do seu eu em um outro, em que a personagem descobre o porquê da familiarização com o lugar e com a moça de traje antiquado.

 

     10) Que trecho revela que a protagonista entende tudo que estava acontecendo?

           “...tão simples tudo, por que só agora entendi? (...) lembrei-me do que tinha acontecido e do ia acontecer”.