PEÇA TEATRAL: Caveirinha
Luís Francisco Carvalho Filho
[São catorze salas, de catorze juízes,
lado a lado, unidas por um longo corredor. As portas permanecem fechadas, para
que o trança-trança não atrapalhe. As audiências são marcadas com intervalo de
cinco minutos entre uma e outra. Há pressa, não há pontualidade. Os intimados
aguardam a chamada num saguão apertado, onde uma sucessão de fileiras de bancos
de madeira se organiza em um pequeno auditório. Carta precatória é um
procedimento: o juiz faz a inquirição de alguém e remete o texto para o juiz de
outro lugar. O juiz daqui não conhece o caso e, provavelmente, nunca mais vai
ouvir falar no processo.]
Juiz: Qual o seu nome?
G...: G...
Juiz: Dizem os autos do inquérito
policial que o senhor, R... e T... deram causa à morte de L..., provocando, por
negligência, um acidente de trabalho na Indústria de Farinha. Diz a Justiça
Pública que a vítima no recebeu treinamento para trabalhar na máquina, tendo
sido sugado pelos exaustores no terceiro dia de trabalho. A morte da vítima foi
imediata, o corpo foi dilacerado. O senhor e R... são acusados de omissão. Nada
fizeram para evitar o acidente, apesar de previsível. T... é acusado de
contratar a vítima, sem treinamento, para a realização de um trabalho perigoso.
O que o senhor tem a dizer sobre a denúncia? O senhor conheceu a vítima?
G...: Não. Eu sou um dos proprietários
da indústria e trabalho aqui, na cidade. Eu me dedico à área financeira. A
indústria fica a cem quilômetros. Há uma gerência industrial, chefiada por um
administrador habilitado e bastante experiente no ramo, que cuida justamente de
toda essa parte técnica. Nós sempre seguimos as regras de prevenção do
Ministério dos Acidentes. Não houve negligência.
Juiz: O senhor presenciou os fatos?
G...: Não.
Juiz: O que o senhor sabe do acidente?
G...: Eu fui informado pelo meu
gerente, uma hora depois, por telefone.
Juiz: O que ele disse?
G...: Disse que a vítima havia sido
imprudente, que tinha ingressado na área de ventilação da máquina, que é
cercada por tapumes. Disse que o rapaz foi socorrido imediatamente, mas morreu
a caminho do hospital, que já avisara a família e que estava providenciando o
enterro. Ele não tinha autorização para entrar ali, não tinha nada para fazer
ali. Ali só entram mecânicos. Há uma placa, na parede, avisando do perigo. A
placa tem uma caveirinha vermelha desenhada.
Juiz: Ele recebeu treinamento?
G...: Sim. A máquina não é perigosa. O
operário não mantém contato com nenhuma engrenagem capaz de ferir. É fácil de
ser operada. Ela só é barulhenta e os operários usam um protetor de ouvido. O
trabalhador recebeu instruções, foi advertido para não entrar naquele recinto.
Juiz: Se o senhor é inocente, por que
então o senhor acha que foi denunciado?
G...: Eu não sei. Talvez preconceito.
Meu advogado diz que é preconceito. Mas eu não sou um empresário poderoso,
minha empresa é pequena.
Juiz: [Ditando.] Que não presenciou os
fatos descritos na denúncia e nega a acusação. Que alega ser inocente, vítima
de preconceito contra o empresariado. Que o interrogando trabalha na cidade e
cuida da parte financeira da firma. Que a indústria tem um gerente técnico, que
é responsável. Que recebeu um telefonema do gerente e soube do acidente. Que a
culpa foi da vítima e que havia uma placa vermelha com o desenho de uma caveira
no local, indicando perigo, e que mesmo assim ele foi irresponsável e
desobedeceu. [Para o réu.] Quanto tempo durou o treinamento?
G...: Não há um treinamento específico,
porque eles não lidam com a parte mecânica da máquina, o senhor entende? Ele
simplesmente jogava espigas de milho e mandioca no funil da máquina. Sem risco.
Juiz: Mas quanto tempo durou o
treinamento?
G...: É imediato. Não há necessidade de
cursos ou de aprendizados mais complexos.
Juiz: Ele teve aulas?
G...: Não, aulas não. Não precisava...
Juiz: Ele já trabalhou na máquina no
primeiro dia?
G...: Sim, como todos os outros. Os novos
empregados observam os companheiros antigos, começam ajudando, e começam a
trabalhar. Não há perigo. Nunca houve um acidente.
Juiz: Alguém tentou detê-lo?
G...: Não, ninguém; olha, ninguém viu
ele entrar naquela sala.
Juiz: [Ditando.] Que o aprendizado da
vítima foi imediato, sem preleções. Que os trabalhadores da indústria trabalham
nas máquinas, já no primeiro dia de emprego, fáceis de ser operadas. Que os
operários observam como os outros fazem e começam logo a trabalhar. Que a
vítima só jogava milho e mandioca no funil e não corria riscos. Que a máquina é
barulhenta e os operários usam fones de ouvido. Que a vítima não deveria estar
naquele local e que ninguém o impediu. [Para o réu.] A vítima foi socorrida?
G...: Sim, ele foi levado para o
hospital, mas já estava morto.
Juiz: Conhece os outros réus?
G...: Sim. R... é meu sócio, cuida da
parte comercial, e T... é o gerente da indústria.
Juiz: Conhece as testemunhas do
promotor?
G...: Não.
Juiz: [Ditando.] Que a vítima morreu a
caminho do hospital. Que conhece os co-réus, sendo R... o seu sócio e T... o
gerente. Que nada tem para alegar contra as testemunhas. Que sai ciente do
prazo de três dias para defesa prévia e de que não pode mudar de endereço sem
comunicar ao juízo deprecante, saindo também ciente da data da audiência. Nada
mais...
[O juiz é surpreendido pela
intervenção.]
Advogado: Excelência, eu sei que o
advogado não pode interferir no interrogatório, nem é essa a minha intenção,
mas eu gostaria, pela ordem, que alguns esclarecimentos do réu ficassem
consignados no termo.
Juiz: O senhor não pode interferir
mesmo. Mas faltou alguma coisa? O quê? O réu não reclamou de nada.
Advogado: É papel do advogado
reclamar... O réu informou a Vossa Excelência que recebeu a notícia do acidente
por um telefonema de seu gerente industrial. No termo ficou constatado que o
réu “soube do acidente”. Eu peço...
Juiz: Olha, eu não vejo nenhum erro no
meu termo. Ele não presenciou o acidente. Não é? Ele ouviu falar do acidente,
ele soube por telefone. Está certo? Qual o problema?
Advogado: Excelência, tal como está no
termo, o réu aparenta uma certa indiferença em relação aos fatos. Mas ele foi
informado imediatamente, cobrou providências... Ele não ouviu dizer, ele foi
informado, percebe? Tal como está escrito, parece que o réu reagiu com
indiferença à notícia da tragédia. Não é o senhor quem julgará a causa. O juiz
do caso pode fazer uma interpretação desfavorável do interrogatório. Correto?
Juiz: Está bem. [Ditando.] Dada a
palavra ao defensor, foi dito que ficasse consignado que o réu informou a esse
juízo que soube do acidente, por um telefonema do co-réu T..., que já havia
tomado todas as providências. – Está bem assim, doutor?
Advogado: Obrigado, Excelência. É um
detalhe, mas o réu informou que os operários usam “protetores de ouvido”. No
termo ficou constando que eles usam “fones de ouvido”. São coisas diferentes...
Juiz: Olha, doutor, eu me lembro muito
bem, ele falou “fone de ouvido”. Não posso admitir que o senhor conduza o
interrogatório. O que o senhor disse?
G...: Eu disse que os operários usam
“protetores de ouvido”, é um equipamento exigido pela legislação.
Juiz: É “protetor”, é? O senhor falou
“fone de ouvido”. Eu me lembro.
G...: Não, eu disse “protetor”. Tenho
certeza.
Juiz: [Ditando] Que a vítima usava
protetor de ouvido e não fone de ouvido, como constou acima.
Advogado: Excelência, eu gostaria ainda
que ficasse esclarecido que ninguém, na indústria, percebeu que a vítima entrou
no recinto proibido antes do acidente.
Juiz: Ah, ele não falou isso.
Advogado: Excelência, quando o acusado
respondeu a pergunta do senhor, informando que ninguém deteve a vítima, ele
disse que ninguém na fábrica viu a vítima entra no local. Assim, ninguém
poderia detê-la. Não é? O termo está incompleto.
Juiz: Ele não disse isso, doutor. O
senhor sabe que eu fui gentil. Eu permiti sua atuação. O senhor sabe, a lei não
permite interferências da defesa e da acusação no interrogatório, mas o senhor
vem e abusa. Assim, não dá. O senhor não pode induzir as palavras do
interrogado.
Advogado: Eu não induzi o réu a nada,
Excelência. Eu não admito... Olha, eu agradeço a sua tolerância, eu... Eu
gostaria de lembrar que o interrogatório é um ato de defesa do réu, que a
palavra do réu não pode ser censurada e que tudo deve ser transcrito da maneira
mais fiel possível. Eu sugiro que o senhor pergunte ao réu sobre o que ele
disse realmente e se Vossa Excelência desejar, pode também consignar minha
interferência.
Juiz: O senhor não disse isso, disse?
G...: Disse sim. Ninguém da indústria
viu quando ele entrou no local do acidente.
Juiz: [Ditando.] Que após interferência
do advogado de defesa, o réu informou que havia dito que ninguém na empresa viu
a vítima entrar na sala onde veio a falecer, referência esta não ouvida antes
por este juízo. [Para a escrevente.] Chega, vamos encerrar este termo...
CARVALHO FILHO,
Luís Francisco. Nada mais dito nem perguntado. São Paulo, Editora 34, 2001. p.
41-6.
Fonte: Linguagem
Nova. Faraco & Moura. Editora Ática. 8ª série. p. 96-102.
Entendendo o texto:
01 – O texto lido, criado
por um escritor, é a reprodução de uma audiência em que o juiz interroga o réu.
Apresenta características de um texto de teatro. Que características são essas?
Rubricas; falas
de personagens, sem narrador.
02 – Apesar de ser
ficcional, o texto parece extremamente realista, saindo diretamente dos
tribunais. Justifique essa afirmativa.
O autor, advogado
criminalista, consegue transpor para a linguagem escrita os diálogos e os termos
jurídicos com uma fidelidade incrível. Parece que o texto tem autonomia, é
quase transcrição de algo gravado.
03 – Qual é o objetivo do
primeiro parágrafo eu está entre colchetes?
Descrever o
ambiente do fórum onde se passa a audiência a ser relatada e explicar o
procedimento adotado, que é uma carta precatória.
04 – O procedimento relatado
é uma carta precatória, isto é, o juiz faz o interrogatório e remete o texto
para um juiz de outro lugar, que fará o julgamento. Sendo assim, como deve ser
a linguagem utilizada?
A linguagem deve ser objetiva, precisa e
extremamente fiel ao que foi dito no interrogatório.
05 – No texto, foram
empregados dois tipos de discurso: o direto e o indireto. Em que situação foi
empregada cada uma dessas formas de discurso?
Discurso direto:
no diálogo entre o juiz e o réu e entre o juiz e o advogado.
Discurso indireto: nas passagens em que o
juiz reproduz para a escrevente o que o réu falou.
06 – “Não houve
negligência.” O que o réu quer dizer com essa afirmativa?
Não houve
descuido, desleixo, desatenção.
07 – Segundo o réu, qual foi
a causa da morte da vítima?
Imprudência: a
pessoa entrou em lugar cercado por tapumes com aviso de perigo na parede.
08 – No texto, o juiz, ao
ditar para a escrevente, começa as frases com que. É, em geral, dessa maneira que juízes e delegados
relatam depoimentos. Como se pode explicar esse uso?
O juiz está
empregando o discurso indireto ao ditar para a escrevente. O emprego do que
pressupõe um texto anterior: O réu afirmou / relatou / disse... Como essa frase
introdutória é óbvia no contexto, o juiz a suprime.
09 – O advogado do réu
interfere no interrogatório três vezes. Você concorda com as observações que
ele faz? Justifique sua resposta.
Resposta pessoal
do aluno.
10 – A linguagem com que o
advogado se dirige ao juiz é bastante formal e mesmo cerimoniosa. Que pronome o
advogado emprega que revela esse nível formal de linguagem?
Os pronomes de
tratamento Excelência e Vossa Excelência.
11 – Na última fala do
advogado, há um período que justifica muito bem a razão de suas interferências
no interrogatório. Transcreva-o.
“Eu gostaria de
lembrar que o interrogatório é um ato de defesa do réu, que a palavra do réu
não pode ser censurada e que tudo deve ser transcrito da maneira mais fiel
possível.”
12 – Releia o primeiro
trecho que o juiz dita para a escrevente. Compare-o com as falas do réu. Que
declarações foram omitidas ou alteradas pelo juiz, além do que foi observado
pelo advogado?
O juiz omitiu que
a indústria ficava a cem quilômetros da cidade, onde o réu trabalhava. Não
disse que o administrador era habilitado e bastante experiente no ramo, mas
simplesmente que ele era responsável. Mandou escrever que a vítima foi
irresponsável e desobedeceu o aviso de perigo; o réu só dissera que a vítima
tinha sido imprudente. O aviso, segundo o réu, era uma placa com uma caveirinha
vermelha; de acordo com o juiz, havia uma placa vermelha com uma caveira.
13 – Caveirinha, no texto,
significa perigo. Por que o texto se chama “Caveirinha”?
Quem é que corre perigo, nesse caso?
O réu corre
perigo porque pode sofrer injustiça devido à interpretação que o juiz faz de
suas afirmações.