Romance: Viagens
de Gulliver
Viagem
a Lilliput – Após a tempestade, um reino em miniatura
A tempestade começou de repente. Ondas
de mais de 30 metros envolviam o navio e o jogavam de um lado para outro, como
se fosse de brinquedo. Rajadas de vento logo destruíram as velas.
Eu era o
médico de bordo e fiquei esperando o pior.
-- Recifes a estibordo!
O grito desesperado do marinheiro que
estava na gávea soou quase ao mesmo tempo que o barulho do choque do majestoso
veleiro Antílope, no qual viajávamos, com a pedras. Foi uma confusão dos
diabos. Tripulantes correndo em todas as direções, gente gritando, outros
jogando-se no mar, cada um tentando salvar a própria pele.
Estava quase paralisado pelo medo, as
mãos grudadas na amurada do convés, quando fui cuspido para fora do navio, que
já se inclinava perigosamente. Senti meu corpo envolto na água gelada do mar e
no momento em que dei por mim – confesso que não me lembro como consegui –
estava num pequeno bote com outros cinco marinheiros, todos remando com fúria
para nos afastarmos o máximo possível do Antílope, que começava a afundar.
Sabíamos que, se ficássemos por perto, seríamos tragados pelo oceano por causa
do redemoinho que sempre se forma em torno de uma embarcação quando está
submergindo.
O esforço valeu, mas foi sobre-humano.
Exaustos, largamos um pouco os remos e deixamo-nos levar pelas ondas, apesar do
perigo ainda presenta. Foi só o tempo de curvar um pouco o corpo para a frente,
a fim de aliviar a tensão nas costas... De repente, uma onda traiçoeira, surgida
da escuridão, jogou o bote longe, despejando-nos outra vez na água.
Ao voltar à tona, apavorado, tentei
enxergar algum companheiro do bote. Sentindo que ia afundar, a água entrando em
minha boca, gritei por eles como pude, uma, duas, sei lá quantas vezes. A única
resposta foi o estrondo das ondas e o zunir do vento. Parecia definitivo: eu
estava ali, no meio do oceano, sozinho...
No entanto, logo reagi. Estava vivo e
isto, diante das circunstâncias, já era alguma coisa. Minha preocupação passou
a ser só uma: manter-me vivo. Comecei então a nadar às cegas.
Lutei com as ondas durante horas a fio.
De vez em quando, para mexer outros músculos, nadava cachorrinho. Foi assim
que, ao esticar uma das pernas, toquei em alguma coisa que parecia o fundo.
Seria possível? Não podia acreditar. Estiquei novamente a perna, bem
devagarinho, e lá estava, sólido, o fundo do mar. Pude então ficar de pé, com a
água batendo no meu queixo. Com o resto das forças, caminhei em direção à
praia, onde, exausto, deixei o corpo cair sobre a areia fofa. Estava salvo,
pelo menos de morrer afogado. Olhando o céu, ainda com estrelas, a primeira
imagem que me apareceu foi a de minha mulher Mary e das crianças.
Mary havia discordado totalmente desta
minha viagem: fez de tudo para que eu desistisse. Lembrou minhas promessas de
nunca mais navegar (eu adorava viajar por mar), contou velhas histórias de
navios engolidos pelo oceano ou devorados por monstros e disse ainda que eu
deveria cumprir minhas obrigações de pai e marido.
Não adiantou. Minha paixão pela
aventura tinha uma força irresistível. Exercia uma atração incontrolável sobre
mim e despertava-me uma sensação que eu amava desde a juventude. Logo que me
formei em medicina, embarquei como médico de bordo para correr o mundo e os
riscos das novas rotas de navegação. Por causa disso tudo, eu embarcara no
Antílope, deixando o porto de Bristol, Inglaterra, no dia 4 de maio de 1699.
Assim, pensando em Mary, nas crianças e em
grandes aventuras, adormeci profundamente, longe de imaginar que estava sendo
observado por alguns olhinhos escondidos na selva.
Não sei por quantas horas dormi. Ao
acordar, senti o sol nos olhos. Tentei mover a cabeça e não consegui: meus
cabelos estavam presos ao chão. Tentei me levantar e não pude: meu corpo estava
como que colado na areia. Meu Deus! O que estaria acontecendo? Para piorar a
situação, senti algo subindo pela minha perna esquerda. Pensei que fosse algum
siri ou caranguejo. Mas aquela coisinha logo alcançou meu peito... Baixei bem
os olhos, como se fosse examinar a ponta de meu nariz, e vi uma criaturinha
humana de menos de um palmo de altura, observando-me com o mesmo olhar de
espanto com que eu a encarava.
Percebi então que dezenas de outros
homenzinhos como aquele corriam pelo meu corpo. Assustado, dei um tremendo
berro. Foi como um terremoto para eles. Apavorados, começaram a atirar-se ao
chão. Deviam ser centenas, pelo burburinho que produziam.
Um deles, mais corajoso, gritou:
-- Hekinah degul!
Todos começaram a repetir a mesma
coisa, cada vez mais alto. Só pensei em sair dali. Concentrei minhas forças no
braço esquerdo e consegui libertá-lo. Todo o meu corpo estava amarrado por
centenas de linhas a ganchos espetados no chão. Antes que pudesse soltar as
outras amarras com a mão esquerda, ouvi um segundo grito uníssono:
-- Tolgo phonac!
Era uma ordem de ataque, por que senti
centenas de pequenas flechadas em minha mão esquerda e no rosto. Eram como
picadas de agulhas. Já irritado, tentei livrar-me delas, mexendo o corpo o
quanto podia. Mas recebi uma chuva maior de flechadas e resolvi aquietar-me
para pensar melhor no que fazer.
Enquanto isso, eles construíram
rapidamente um minipalanque de meio metro de altura do meu lado esquerdo,
próximo à minha cabeça. Alguns deles subiram até lá, e aquele que parecia o
chefão do grupo deu um novo grito: então uns 50 homenzinhos cortaram os fios que
prendiam minha cabeça, e eu a virei em direção ao palanque.
Nesse momento, o tal chefe proferiu um
longo discurso, do qual não entendi coisa alguma. Pela entonação, imaginei que
fazia ameaças. Quando terminou, ficaram todos em silêncio, olhando para mim,
como se eu tivesse entendido tudo e devesse responder. Fiz uma cara de bons
amigos, de quem não quer briga e, com a mão esquerda, tentei mostrar que estava
com fome.
O chefe entendeu imediatamente, o que
foi um alívio. Já haviam mandado preparar a comida: a uma ordem sua, mais de
100 homenzinhos começaram a subir por uma escada, encostada em meu corpo, para
trazer os alimentos até minha boca. Eram pernis e lombos assados de carneiro,
menores do que asas de passarinho, que eu comia com pãezinhos do tamanho da
unha do meu dedo mínimo. Havia também o que beber. Colocaram em minha mão
esquerda tonéis de vinho, cada um equivalente a um copo dos nossos. Fui
bebendo, um a um, rapidamente.
Percebi que ficaram surpresos com a
quantidade que eu comia e a velocidade com que o fazia, mas notei que estavam completamente
à vontade ao me alimentar. Passeavam pelo meu corpo com desenvoltura e eu bem
que me senti tentado a pegar uns 30 ou 40 e atirá-los todos no chão. Porém,
logo me lembrei das flechadas... Além disso, de alguma maneira, eu tinha
firmado um acordo de paz ao ficar submisso e não podia atacar um povo que me
dava comida em abundância e com tanta boa vontade.
Terminada a refeição, todos os
homenzinhos que estavam me alimentando desceram pela escada. Logo após, apenas
um subiu em mim, pela perna direita. Bem solene, chegou ao meu rosto e mostrou
suas credenciais com as armas do reino. Em seguida subiu a comitiva, mais ou
menos umas 12 pessoas. Depois, todos desceram e foram novamente para o
palanque.
O homenzinho das credenciais iniciou
então novo discurso, só que desta vez acompanhado de muita mímica. Falava
várias vezes a palavra Lilliput, que mais tarde eu soube ser o nome do país, e
apontava em certa direção: era a capital, para onde o rei havia decidido que eu
seria levado. Fiz gestos indicando que eu queria ser desamarrado, mas a
autoridade presente foi firme e sacudiu a cabeça negativamente. Fiquei zangado
e tentei soltar-me outra vez. Fui atingido então por milhares de flechas, por
que agora os meus pequenos inimigos eram muito mais numerosos. Pedi desculpas
pelo incidente e demonstrei que concordava com as condições impostas.
-- Pelom selan – ordenou Sua
Excelência.
Os homenzinhos que estavam no chão começaram
a cuidar de mim, passando um unguento para aliviar a dor das flechadas. Ao
mesmo tempo foram soltando, aos poucos, as amarras que me prendiam o lado
esquerdo do corpo, o que me permitiu, com alívio, mudar de posição. Eu nada
podia fazer, mesmo livre pela metade, pois estava com muito sono: os pequenos
habitantes daquela terra haviam misturado ao vinho um remédio para dormir.
Tonto, já quase adormecendo, pude ainda
ver chegar perto de mim uma enorme carreta de madeira, sobre rodas.
[...]
Jonathan Swift. Viagens de
Gulliver. Trad. Cláudia Lopes.
São Paulo: Scipione,
1991. p. 5-10.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto
qual o significado das palavras abaixo:
·
Recife: formação rochosa, em áreas de pouca profundidade.
·
Estibordo: o lado direito do navio, para quem o vê da popa para a proa.
·
Gávea: plataforma a certa altura dos mastros de um navio.
·
Amurada: lado interno do costado de uma embarcação.
·
Convés: qualquer dos pisos ou pavimentos de um navio.
·
Unguento: tipo de pomada.
02 – O título é sempre um
elemento importante em um texto. Após a leitura do título do capítulo
apresentado, foi possível prever o que seria narrado? Comente.
Sim, pois ocorreu
uma tempestade e, em seguida, o personagem principal da história conheceu uma
ilha com seres muito pequenos, em miniatura, como sugere o título.
03 – No final do texto, o
narrador diz que dormiu, pois os homenzinhos haviam misturado um remédio para
dormir à bebida oferecida a ele.
a)
Você já conhecia essa história? Comente.
Resposta pessoal do aluno.
b)
Em caso negativo, o que você acha que
aconteceu com o médico após ele ter dormido?
Resposta pessoal do aluno.
04 – O texto que você leu é
uma narrativa. Identifique qual dos elementos da narrativa permite
caracterizá-lo como de aventura.
O enredo:
construído por meio de uma ação envolta de acontecimentos que dão ritmo
acelerado e empolgante à narrativa (classifica-se como aventura porque no texto
é retratada uma ação arriscada, perigosa, extraordinária); O espaço: mar, ilha
distante e desconhecida.
05 – A partir da leitura, é
possível descobrir quem narra a história? Em que pessoa do discurso se encontra
a narrativa? Explique.
Sim. A narrativa
está em 1ª pessoa, pois quem narra a história é o personagem que vivencia os
fatos, no caso, o médico Gulliver.
06 – O narrador constrói a
narrativa com poucos diálogos e com uma descrição intensa das cenas e sensações
vividas. Comente o efeito que o emprego desse modo de narrar acarreta à
narrativa de aventura.
A narrativa
centrada mais nas ações que no diálogo permite ao leitor imaginar os
acontecimentos de forma mais próxima da que os personagens viveram.
07 – Nos primeiros
parágrafos do texto, o narrador explica como foi iniciada a aventura e descreve
uma situação muito perigosa e emocionante. Que situação é essa?
Uma tempestade em
alto-mar.
08 – Ao perceber que estava
sozinho, Gulliver ficou apavorado. Em que momento ele se deu conta disso? O que
ele fez em seguida?
Ele percebeu que
estava sozinho quando uma onda traiçoeira surgiu na escuridão e jogou o bote
longe, fazendo com que seus companheiros sumissem no mar. Em seguida, ele
decidiu que ia manter-se vivo e nadou às cegas até encontrar uma praia.
09 – Logo que chegou a
praia, o narrador lembrou-se das palavras de sua mulher, que, em vão, tentou
impedi-lo de realizar aquela aventura pelo mar.
a)
Por que ela quis impedi-lo?
Porque temia os perigos que ele poderia enfrentar e também porque
queria que ele ficasse com ela e com os filhos.
b)
O que o motivava a seguir viagem apesar dos
perigos descritos por sua esposa?
Sua paixão pela aventura, que despertava nele uma sensação de prazer
muito grande.
10 – Ao acordar na praia
após naufragar, o médico encontrou habitantes muito diferentes do que estava
acostumado a ver. Tanto Gulliver quanto os homenzinhos ficaram apavorados. O
que provocou tanto assombro e espanto?
A aparência de
cada um. Os homenzinhos eram seres muito pequenos e Gulliver um ser “gigante”.
Assim, todos ficaram assustados em virtude do diferente, do desconhecido.
11 – O médico não entendia o
que os moradores daquela ilha estavam dizendo. No entanto, como ele conseguiu
perceber o que aqueles homenzinhos queriam comunicar?
Por meio da entonação da voz e de alguns
gestos que eles faziam.
12 – Quando conheceu os
homenzinhos, Gulliver não conseguiu se comunicar de imediato com eles. De que
forma Gulliver estabeleceu um acordo de paz com os habitantes da ilha?
Gulliver demonstrou concordar com as
condições impostas.
13 – Releia o trecho seguinte:
“Ondas de mais de 30 metros envolviam o navio e o jogavam de um lado para outro, como se fosse de
brinquedo”.
a)
A que a palavra em destaque se refere?
A palavra em destaque retoma a palavra navio.
b)
A que classe de palavras a palavra destacada
pertence?
Pertence à classe dos pronomes, no caso, pronome pessoal oblíquo.
c)
Que efeito de sentido o uso desse recurso dá
ao texto?
Esse recurso elimina a repetição de uma determinada palavra,
evitando que ele se torne repetitivo.
14 – Releia o seguinte
trecho: “[...] Senti meu corpo envolto
na água gelada do mar e no momento em que dei por mim – confesso que não me
lembro como consegui – estava num pequeno bote com outros cinco marinheiros,
todos remando com fúria para nos afastarmos o máximo possível do Antílope, que
começava a afundar.”
a)
De quem é essa fala? Qual é a função dos
travessões nesse trecho? Explique.
Essa fala é de Gulliver. O travessão indica o acréscimo de uma
informação, um comentário a mais sobre o que está sendo dito.
b)
Que outro sinal gráfico poderia ser usado
para desempenhar a mesma função? Encontre no texto um exemplo que justifique
sua resposta.
Os parênteses. “Eu adorava viajar por mar”.
15 – Quando percebe que está
sozinho, o narrador diz: “Parecia definitivo: eu estava ali, no meio do oceano, sozinho...”.
a)
A que palavra a expressão em destaque se
refere?
À palavra definitivo.
b)
Que função sintática essa expressão exerce?
Aposto explicativo.
c)
Identifique outro trecho do texto em que essa
mesma estrutura aparece.
“Minha preocupação passou a ser só uma: manter-me vivo”.
16 – Observe as expressões
em destaque nos trechos a seguir e escreva o significado com que elas foram
empregadas.
a)
Senti meu corpo envolto na água gelada do mar
e no momento em que dei por mim
[...].
Recuperei a consciência.
b)
O esforço valeu, mas foi sobre-humano.
Fora do comum.
c)
Comecei então a nadar às cegas.
Sem rumo preestabelecido.