quarta-feira, 15 de maio de 2019

ARTIGO CIENTÍFICO: ANTEPASSADOS NÃO TÃO DISTANTES - MARCELO GLEISER - COM QUESTÕES GABARITADAS

ARTIGO: Antepassados não tão distantes
              
  Marcelo Gleiser

    Os chimpanzés sofrem quando perdem a mãe ou um amigo

    Quando Darwin afirmou, no século 19, que somos descendentes de macacos, que temos mais a ver com criaturas peludas e barulhentas com rabos longos e dentes afiados do que com anjos celestes, os vitorianos ficaram ultrajados. Por 3.000 anos, a história que vinha sendo contada era diferente. Seríamos criação de Deus, quase tão perfeitos quanto ele. Não fosse a ousadia de Adão e Eva, estaríamos até agora passeando nus pelo Jardim do Éden, sem sabermos da existência do pecado original.
        Muita gente ainda se ofende com a insistência dos cientistas em nos chamarem de macacos evoluídos. Mas deveríamos nos orgulhar de nossos antepassados, que encontraram meios de sobreviver em um ambiente austero e cheio de predadores. 
        Há 30 milhões de anos, babuínos, chimpanzés e humanos eram indiferenciáveis. Desde então, variações genéticas submetidas à pressão da seleção natural foram criando as diferenças que resultaram nos três primatas.
        Babuínos mostram uma grande sofisticação social, vivendo em grupos de aproximadamente 150 indivíduos que reúnem em torno de oito famílias. Pesquisadores como Dorothy Cheney (nenhuma relação com o vice-presidente americano) e Robert Seyfarth, que passam longos períodos nas florestas de Botsuana, verificaram que babuínos, especialmente as fêmeas, desenvolvem fortes alianças familiares, defendendo membros da família em caso de desavenças com outros babuínos ou em ataques de predadores. 
        Para tal, os primatas desenvolveram meios de identificar seus parentes visualmente e por meio de vocalizações. Não há dúvida de que o agrupamento dos babuínos exibe traços que podemos identificar na nossa sociedade. Quantas famílias têm um assobio especial que usam quando estão em lugares muito cheios?
        Mas nossos parentes mais próximos são os chimpanzés, com quem dividimos 98,4% dos nossos genes. Jane Goodall, a pesquisadora inglesa que revelou ao mundo a sofisticação dos nossos primos, passou anos nas florestas da Tanzânia observando seu comportamento. 
        Diferentemente dos babuínos, a característica mais marcante dos chimpanzés não é o agrupamento, mas a sofisticação de seu comportamento. Chimpanzés estão entre os poucos animais que usam ferramentas para efetuar tarefas. Cortam galhos longos para "pescar" formigas e cupins em troncos e cupinzeiros. 
        Como os babuínos, caçam em grupos e defendem seu território em ferozes guerras tribais. Como os humanos, sofrem quando perdem a mãe, o pai ou um irmão, ou quando um companheiro de longa data morre. Esses achados tornam difícil distinguir se somos um pouco macacos ou se os macacos são um pouco humanos. Certamente, eles nos remetem às nossas origens evolucionárias. 
        Recentemente, um experimento na Universidade de Kyoto, no Japão, comparou a memória dos chimpanzés com a dos humanos. Sequências de cinco números de um a nove foram mostradas a estudantes e chimpanzés por frações de segundo na tela de um computador. Após 650 milésimos de segundo, os números do monitor viravam quadrados brancos. O teste envolvia tocar os quadrados em ordem numérica crescente. 
        Tanto os estudantes quanto o chimpanzé acertaram 80% das vezes. Quando o intervalo baixou para 210 milissegundos, os humanos acertaram 40% das vezes e o chimpanzé 80%. Perdemos para um macaco. "Talvez", disse um dos pesquisadores, "nossa habilidade para contar atrapalhe". No mínimo, o experimento mostra que nossos primos são bem menos distantes do que pensamos. 

             MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
                                                    Folha de São Paulo, 25/5/2008. Licenciado pela Folhapress.
Entendendo o Texto:

01 – O texto lido foi publicado em um jornal de grande circulação. Nesse texto, o autor aborda um tema bastante debatido nos meios científicos.
a)   Qual é esse tema?
A teoria da evolução do homem, de Darwin.

b)   Na sua opinião, o tratamento dado ao assunto do texto lido é muito específico – portanto, voltado exclusivamente para leitores cientistas –, ou é relativamente simples, tendo a finalidade de informar os leitores em geral? Justifique sua resposta.
O texto foi produzido para um público amplo e heterogêneo, pois apresenta uma linguagem que não exige conhecimentos profundos sobre a teoria da evolução do homem.

c)   Qual é a finalidade principal desse texto: expor um conteúdo científico de forma clara e objetiva ou persuadir o leitor a respeito do ponto de vista de seu autor?
Expor um conteúdo de natureza científico.

d)   É possível afirmar que o texto tem também a intenção de defender a ideia de que o homem e descendente dos macacos? Justifique sua resposta.
Sim, pois o autor demonstra a lógica da teoria com exemplos de pesquisas, e o texto afirma que os macacos são bem menos distantes de nós do que pensamos.

02 – Pelo fato de lidarem com assuntos ligados a áreas científicas do conhecimento, os textos de divulgação científica frequentemente fazem uso de uma linguagem em que há vocabulário e conceitos básicos.
a)   Identifique, no texto, palavras ou expressões usadas no meio científico para abordar o fato de os humanos serem descendentes dos macacos.
Variações genéticas, seleção natural, primatas, genes, origens evolucionárias, experimento.

b)   A que área científica pertencem tais palavras ou expressões?
A ciência que trata da evolução humana.

03 – A estrutura de um texto de divulgação científica não é rígida, pois depende do assunto e de outros fatores da situação, como: quem produz o texto, para quem, com que finalidade. Apesar disso, normalmente o autor apresenta uma ideia principal ou tese, geralmente um conceito ou um ponto de vista sobre um conceito, e procura fundamentá-la com “provas” ou evidências, isto é, exemplos, comparações, resultados objetivos de experiências, dados estatísticos, relações de causa e efeito, etc. No texto “Antepassados não tão distantes”:
a)   Qual é a ideia principal apresentada pelo autor?
A de que o homem é descendente do macaco.

b)   Com que “provas” ou argumentos o autor fundamenta a tese que defende?
O autor busca argumentos em dados de pesquisas que comparam comportamentos humanos com os de macacos, como, por exemplo: os babuínos mostram uma grande sofisticação social e desenvolvem fortes alianças familiares, defendendo membros da família em caso de desavenças com outros babuínos ou em ataque de predadores (como os humanos, e exibem traços que podem ser identificados em nossa sociedade, como assobiar para encontrar pessoas; os chimpanzés sofrem quando perdem um ente querido e fazem uso da memória, assim como os seres humanos.
c)   De que o autor se serve para justificar seu ponto de vista?
Ele apresenta três pesquisas feitas por autoridade no assunto: a realizada nas florestas de Botsuana com babuínos, a realizada nas florestas da Tanzânia com chimpanzés e um experimento na Universidade de Kyoto.
04 – Observe a linguagem empregada no texto:
a)   Nas formas verbais, que tempo e modo são predominantes?
O presente do indicativo.
b)   Qual variedade linguística foi empregada?
A variedade padrão.
c)   A linguagem revela preocupação com a expressividade e a emotividade, ou é clara, objetiva e tende à impessoalidade?
É clara, objetiva e impessoal.
d)   Considerando-se o assunto e o veículo em que o texto foi publicado, pode-se afirmar que esse nível de linguagem é adequado à situação? Por quê?
Sim. Porque o texto é voltado para leitores interessados em assuntos científicos, que tem certa familiaridade com termos científicos e dominam a variedade padrão.
05 – Quais são as principais características do texto de divulgação científica? Respondam, levando em conta os critérios a seguir: finalidade do gênero, perfil dos interlocutores, suporte/veículo, tema, estrutura e linguagem.
      Transmitir conhecimento de natureza científica. O autor é especialista em uma área científica. O destinatário é o leitor de revistas e jornais interessado em assuntos científicos. O suporte do texto são revistas, jornais e sites da internet. Os temas são relacionados com os diferentes campos da ciência. Estruturalmente, apresenta uma ideia central ou uma explicação sobre o objeto de estudo, desenvolvida por meio de “provas” e apresenta também, facultativamente, uma conclusão. Emprega a variedade padrão da língua, apresenta termos e expressões científicas e formas verbais principalmente no presente do indicativo. A linguagem é clara, objetiva, impessoal.  

TEXTO: MISSÃO ESPACIAL NA LUA - PABLO NOGUEIRA - COM QUESTÕES GABARITADAS


Texto: Missão espacial na Lua
        
    Pablo Nogueira

        A nave estava pousada havia mais de quatro horas quando os visitantes resolveram descer. Moviam-se com dificuldade de quem possui um corpo projetado para viver num mundo diferente. Começaram a desembarcar os equipamentos. Alguns se destinavam a fazer observações no subsolo, outros podiam detectar fontes de calor escondidas debaixo da crosta. Enquanto máquinas funcionavam, os dois tripulantes começaram a coletar pedras. Embora aquela fosse a sexta expedição a pousar ali, sua tripulação era a primeira a contar com um membro capaz de estudar a geologia daquele mundo. E, conhecendo a geologia, poderiam ter um vislumbre, ainda que incompleto, de sua própria história.
        Essa cena já aconteceu. O mundo alienígena em questão era a nossa Lua, que em 11 de dezembro de 1972 estava sendo visitada pelos membros da Apollo 17. A pesquisa geológica realizada pela missão ajudou os cientistas a reconstruir a história do satélite.
        (...)
Pablo Nogueira. Não se esqueça de nós. Galileu.
São Paulo: Globo, n. 213. abr. 2009. p. 63-4.
Entendendo o texto:
01 – Qual o significado das palavras abaixo:

·        Geologia: Ciência que estuda origem, história e estrutura da terra.
·        Vislumbre: ideia imprecisa.

02 – A leitura desse texto lhe causou surpresa? Por quê?
      Sim. A princípio, não é possível saber quem são as pessoas envolvidas e qual é o lugar em que acontece a situação exposta, já que não são identificados. No entanto, no segundo parágrafo, o leitor é informado de que se trata de uma expedição feita por seres humanos à Lua, em 1972.

03 – Um texto jornalístico, por exemplo, a reportagem, caracteriza-se por apresentar um texto claro, objetivo e neutro, par que o leitor tenha acesso à informação e possa tirar suas próprias conclusões acerca do que foi veiculado. O trecho do texto lido apresenta essa característica? Explique.
      Sim. Mas apenas no segundo parágrafo. No primeiro parágrafo tem-se a impressão de que se trata de um texto literário, por exemplo, um conto, pois remete a um tempo passado, com riqueza de descrições, além de não haver clareza sobre onde ocorre a situação e quem dela participa, criando uma atmosfera de mistério. 

04 – Em sua opinião, por que o jornalista empregou uma linguagem incomum a textos jornalísticos em sua reportagem?
      Para, logo no início da reportagem, atrair a atenção do leitor, despertando sua curiosidade, de modo a fazer com que ele leia todo texto.

05 – Sobre a expressão em 11 de dezembro de 1972, responda às questões a seguir.
a)   Que circunstância ela expressa: causa, proporção ou tempo?
Expressa tempo.

b)   Como ela é classificada sintaticamente?
Adjunto adverbial.

06 – Agora, observe o seguinte período:
        “Enquanto as máquinas funcionavam, os dois tripulantes começaram a coletar pedras”.

a)   Divida esse período em oração principal e oração subordinada.
Oração principal: os dois tripulantes começaram a coletar pedras. Oração subordinada: Enquanto as máquinas funcionavam.

b)   Copie a frase de sentido equivalente a esse período.
·        Por causa daquilo, os dois tripulantes começaram a coletar pedras.
·        Naquele momento, os dois tripulantes começaram a coletar pedras.
·        Com certeza, os dois tripulantes começaram a coletar pedras.

c)   Qual é a função sintática do trecho grifado na frase da questão anterior, que possui sentido equivalente à oração subordinada?
Adjunto adverbial.

d)   Qual é a circunstância expressa pela oração subordinada: proporção, causa ou tempo?
A expressão é tempo.

e)   A palavra enquanto presente na oração subordinada é uma conjunção subordinativa. Que tipo de relação de sentido essa conjunção estabelece entre a oração subordinada e a oração principal?
A conjunção subordinativa estabelece uma circunstância de tempo; o tempo em que a ação da oração principal ocorre.



terça-feira, 14 de maio de 2019

CONTO: OS LAÇOS DE FAMÍLIA - CLARICE LISPECTOR - COM GABARITO

Conto: Os laços de família               

              Clarice Lispector

       A mulher e a mãe acomodaram-se finalmente no táxi que as levaria à Estação. A mãe contava e recontava as duas malas tentando convencer-se de que ambas estavam no carro. A filha, com seus olhos escuros, a que um ligeiro estrabismo dava um contínuo brilho de zombaria e frieza assistia.
        — Não esqueci de nada? perguntava pela terceira vez a mãe.
        — Não, não, não esqueceu de nada, respondia a filha divertida, com paciência.
        Ainda estava sob a impressão da cena meio cômica entre sua mãe e seu marido, na hora da despedida. Durante as duas semanas da visita da velha, os dois mal se haviam suportado; os bons-dias e as boas-tardes soavam a cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir. Mas eis que na hora da despedida, antes de entrarem no táxi, a mãe se transformara em sogra exemplar e o marido se tornara o bom genro. “Perdoe alguma palavra mal dita”, dissera a velha senhora, e Catarina, com alguma alegria, vira Antônio não saber o que fazer das malas nas mãos, a gaguejar – perturbado em ser o bom genro. “Se eu rio, eles pensam que estou louca”, pensara Catarina franzindo as sobrancelhas. “Quem casa um filho perde um filho, quem casa uma filha ganha mais um”, acrescentara a mãe, e Antônio aproveitara sua gripe para tossir. Catarina, de pé, observava com malícia o marido, cuja segurança se desvanecera para dar lugar a um homem moreno e miúdo, forçado a ser filho daquela mulherzinha grisalha… Foi então que a vontade de rir tornou-se mais forte. Felizmente nunca precisava rir de fato quando tinha vontade de rir: seus olhos tomavam uma expressão esperta e contida, tornavam-se mais estrábicos – e o riso saía pelos olhos. Sempre doía um pouco ser capaz de rir. Mas nada podia fazer contra: desde pequena rira pelos olhos, desde sempre fora estrábica.
        — Continuo a dizer que o menino está magro, disse a mãe resistindo aos solavancos do carro. E apesar de Antônio não estar presente, ela usava o mesmo tom de desafio e acusação que empregava diante dele. Tanto que uma noite Antônio se agitara: não é por culpa minha, Severina! Ele chamava a sogra de Severina, pois antes do casamento projetava serem sogra e genro modernos. Logo à primeira visita da mãe ao casal, a palavra Severina tornara-se difícil na boca do marido, e agora, então, o fato de chamá-la pelo nome não impedira que… – Catarina olhava-os e ria.
        — O menino sempre foi magro, mamãe, respondeu-lhe. O táxi avançava monótono.
        — Magro e nervoso, acrescentou a senhora com decisão.
        — Magro e nervoso, assentiu Catarina paciente. Era um menino nervoso, distraído. Durante a visita da avó tornara-se ainda mais distante, dormira mal, perturbado pelos carinhos excessivos e pelos beliscões de amor da velha. Antônio, que nunca se preocupara especialmente com a sensibilidade do filho, passara a dar indiretas à sogra, “a proteger uma criança” …
        — Não esqueci de nada…, recomeçou a mãe, quando uma freada súbita do carro lançou-as uma contra a outra e fez despencarem as malas. — Ah! ah! – exclamou a mãe como a um desastre irremediável, ah! dizia balançando a cabeça em surpresa, de repente envelhecida e pobre. E Catarina?
        Catarina olhava a mãe, e a mãe olhava a filha, e também a Catarina acontecera um desastre? seus olhos piscaram surpreendidos, ela ajeitava depressa as malas, a bolsa, procurando o mais rapidamente possível remediar a catástrofe. Porque de fato sucedera alguma coisa, seria inútil esconder: Catarina fora lançada contra Severina, numa intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do tempo em que se tem pai e mãe. Apesar de que nunca se haviam realmente abraçado ou beijado. Do pai, sim. Catarina sempre fora mais amiga. Quando a mãe enchia-lhes os pratos obrigando-os a comer demais, os dois se olhavam piscando em cumplicidade e a mãe nem notava. Mas depois do choque no táxi e depois de se ajeitarem, não tinham o que falar – por que não chegavam logo à Estação?
        — Não esqueci de nada, perguntou a mãe com voz resignada.
        Catarina não queria mais fitá-la nem responder-lhe.
        — Tome suas luvas! disse-lhe, recolhendo-as do chão.
        — Ah! ah! minhas luvas! exclamava a mãe perplexa. Só se espiaram realmente quando as malas foram dispostas no trem, depois de trocados os beijos: a cabeça da mãe apareceu na janela.
        Catarina viu então que sua mãe estava envelhecida e tinha os olhos brilhantes.
        O trem não partia e ambas esperavam sem ter o que dizer. A mãe tirou o espelho da bolsa e examinou-se no seu chapéu novo, comprado no mesmo chapeleiro da filha. Olhava-se compondo um ar excessivamente severo onde não faltava alguma admiração por si mesma. A filha observava divertida. Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue. Como se “mãe e filha” fosse vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso. A velha guardara o espelho na bolsa, e fitava-a sorrindo. O rosto usado e ainda bem esperto parecia esforçar-se por dar aos outros alguma impressão, da qual o chapéu faria parte. A campainha da Estação tocou de súbito, houve um movimento geral de ansiedade, várias pessoas correram pensando que o trem já partia: mamãe! disse a mulher. Catarina! disse a velha. Ambas se olhavam espantadas, a mala na cabeça de um carregador interrompeu-lhes a visão e um rapaz correndo segurou de passagem o braço de Catarina, deslocando-lhe a gola do vestido. Quando puderam ver-se de novo, Catarina estava sob a iminência de lhe perguntar se não esquecera de nada…
        — …não esqueci de nada? perguntou a mãe.
        — Também a Catarina parecia que haviam esquecido de alguma coisa, e ambas se olhavam atônitas – porque se realmente haviam esquecido, agora era tarde demais. Uma mulher arrastava uma criança, a criança chorava, novamente a campainha da Estação soou… Mamãe, disse a mulher. Que coisa tinham esquecido de dizer uma a outra? e agora era tarde demais. Parecia-lhe que deveriam um dia ter dito assim: sou tua mãe, Catarina. E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha.
        — Não vá pegar corrente de ar! gritou Catarina.
        — Ora menina, sou lá criança, disse a mãe sem deixar porém de se preocupar com a própria aparência. A mão sardenta, um pouco trêmula, arranjava com delicadeza a aba do chapéu e Catarina teve subitamente vontade de lhe perguntar se fora feliz com seu pai:
        — Dê lembranças a titia! gritou.
        — Sim, sim!
        — Mamãe, disse Catarina porque um longo apito se ouvira e no meio da fumaça as rodas já se moviam.
        — Catarina! disse a velha de boca aberta e olhos espantados, e ao primeiro solavanco a filha viu-a levar as mãos ao chapéu: este caíra-lhe até o nariz, deixando aparecer apenas a nova dentadura. O trem já andava e Catarina acenava. O rosto da mãe desapareceu um instante e reapareceu já sem o chapéu, o coque dos cabelos desmanchado caindo em mechas brancas sobre os ombros como as de uma donzela – o rosto estava inclinado sem sorrir, talvez mesmo sem enxergar mais a filha distante.
        No meio da fumaça Catarina começou a caminhar de volta, as sobrancelhas franzidas, e nos olhos a malícia dos estrábicos. Sem a companhia da mãe, recuperara o modo firme de caminhar: sozinha era mais fácil. Alguns homens a olhavam, ela era doce, um pouco pesada de corpo. Caminhava serena, moderna nos trajes, os cabelos curtos pintados de acaju. E de tal modo haviam-se disposto as coisas que o amor doloroso lhe pareceu a felicidade – tudo estava tão vivo e tenro ao redor, a rua suja, os velhos bondes, cascas de laranja – a força fluía e refluía no seu coração com pesada riqueza. Estava muito bonita neste momento, tão elegante; integrada na sua época e na cidade onde nascera como se a tivesse escolhido. Nos olhos vesgos qualquer pessoa adivinharia o gosto que essa mulher tinha pelas coisas do mundo. Espiava as pessoas com insistência, procurando fixar naquelas figuras mutáveis seu prazer ainda úmido de lágrimas pela mãe. Desviou-se dos carros, conseguiu aproximar-se do ônibus burlando a fila, espiando com ironia; nada impediria que essa pequena mulher que andava rolando os quadris subisse mais um degrau misterioso nos seus dias.
        O elevador zumbia no calor da praia. Abriu a porta do apartamento enquanto se libertava do chapeuzinho com a outra mão; parecia disposta a usufruir da largueza do mundo inteiro, caminho aberto pela sua mãe que lhe ardia no peito. Antônio mal levantou os olhos do livro. A tarde de sábado sempre fora “sua”, e, logo depois da partida de Severina, ele a retomava com prazer, junto à escrivaninha.
        — “Ela” foi?
        — Foi sim, respondeu Catarina empurrando a porta do quarto de seu filho. Ah, sim, lá estava o menino, pensou com alívio súbito. Seu filho. Magro e nervoso. Desde que se pusera de pé caminhara firme; mas quase aos quatro anos falava como se desconhecesse verbos: constatava as coisas com frieza, não as ligando entre si. Lá estava ele mexendo na toalha molhada, exato e distante. A mulher sentia um calor bom e gostaria de prender o menino para sempre a este momento; puxou-lhe a toalha das mãos em censura: este menino! Mas o menino olhava indiferente para o ar, comunicando-se consigo mesmo. Estava sempre distraído. Ninguém conseguira ainda chamar-lhe verdadeiramente a atenção. A mãe sacudia a toalha no ar e impedia com sua forma a visão do quarto: mamãe, disse o menino. Catarina voltou-se rápida. Era a primeira vez que ele dizia “mamãe” nesse tom e sem pedir nada. Fora mais que uma constatação: mamãe! A mulher continuou a sacudir a toalha com violência e perguntou-se a quem poderia contar o que sucedera, mas não encontrou ninguém que entendesse o que ela não pudesse explicar. Desamarrotou a toalha com vigor antes de pendurá-la para secar. Talvez pudesse contar, se mudasse a forma. Contaria que o filho dissera: mamãe, quem é Deus. Não, talvez: mamãe, menino quer Deus. Talvez. Só em símbolos a verdade caberia, só em símbolos é que a receberiam. Com os olhos sorrindo de sua mentira necessária, e sobretudo da própria tolice, fugindo de Severina, a mulher inesperadamente riu de fato para o menino, não só com os olhos: o corpo todo riu quebrado, quebrado um invólucro, e uma aspereza aparecendo como uma rouquidão. Feia, disse então o menino examinando-a.
        — Vamos passear! respondeu corando e pegando-o pela mão.
        Passou pela sala, sem parar avisou ao marido: vamos sair! e bateu a porta do apartamento.
        Antônio mal teve tempo de levantar os olhos do livro – e com surpresa espiava a sala já vazia. Catarina! chamou, mas já se ouvia o ruído do elevador descendo. Aonde foram? perguntou-se inquieto, tossindo e assoando o nariz. Porque sábado era seu, mas ele queria que sua mulher e seu filho estivessem em casa enquanto ele tomava o seu sábado. Catarina! chamou aborrecido embora soubesse que ela não poderia mais ouvi-lo. Levantou-se, foi à janela e um segundo depois enxergou sua mulher e seu filho na calçada.
        Os dois haviam parado, a mulher talvez decidindo o caminho a tomar. E de súbito pondo-se em marcha.
        Por que andava ela tão forte, segurando a mão da criança? pela janela via sua mulher prendendo com força a mão da criança e caminhando depressa, com os olhos fixos adiante; e, mesmo sem ver, o homem adivinhava sua boca endurecida. A criança, não se sabia por que obscura compreensão, também olhava fixo para a frente, surpreendida e ingênua. Vistas de cima as duas figuras perdiam a perspectiva familiar, pareciam achatadas ao solo e mais escuras à luz do mar. Os cabelos da criança voavam…
        O marido repetiu-se a pergunta que, mesmo sob a sua inocência de frase cotidiana, inquietou-o: aonde vão? Via preocupado que sua mulher guiava a criança e temia que neste momento em que ambos estavam fora de seu alcance ela transmitisse a seu filho… mas o quê? “Catarina”, pensou, “Catarina, esta criança ainda é inocente!” Em que momento é que a mãe, apertando uma criança, dava-lhe esta prisão de amor que se abateria para sempre sobre o futuro homem. Mais tarde seu filho, já homem, sozinho, estaria de pé diante desta mesma janela, batendo dedos nesta vidraça; preso. Obrigado a responder a um morto. Quem saberia jamais em que momento a mãe transferia ao filho a herança. E com que sombrio prazer. Agora mãe e filho compreendendo-se dentro do mistério partilhado. Depois ninguém saberia de que negras raízes se alimenta a liberdade de um homem. “Catarina”, pensou com cólera, “a criança é inocente!” Tinham porém desaparecido pela praia. O mistério partilhado.
        “Mas e eu? e eu?” perguntou assustado. Os dois tinham ido embora sozinhos. E ele ficara. “Com o seu sábado.” E sua gripe. No apartamento arrumado, onde “tudo corria bem”. Quem sabe se sua mulher estava fugindo com o filho da sala de luz bem regulada, dos móveis bem escolhidos, das cortinas e dos quadros? fora isso o que ele lhe dera. Apartamento de um engenheiro. E sabia que se a mulher aproveitava da situação de um marido moço e cheio de futuro – desprezava-a também, com aqueles olhos sonsos, fugindo com seu filho nervoso e magro. O homem inquietou-se. Porque não poderia continuar a lhe dar senão: mais sucesso. E porque sabia que ela o ajudaria a consegui-lo e odiaria o que conseguissem. Assim era aquela calma mulher de trinta e dois anos que nunca falava propriamente, como se tivesse vivido sempre. As relações entre ambos eram tão tranquilas. Às vezes ele procurava humilhá-la, entrava no quarto enquanto ela mudava de roupa porque sabia que ela detestava ser vista nua. Por que precisava humilhá-la? no entanto ele bem sabia que ela só seria de um homem enquanto fosse orgulhosa. Mas tinha se habituado a torna-la feminina deste modo: humilhava-a com ternura, e já agora ela sorria – sem rancor? Talvez de tudo isso tivessem nascido suas relações pacíficas, e aquelas conversas em voz tranquila que faziam a atmosfera do lar para a criança. Ou esta se irritava às vezes? Às vezes o menino se irritava, batia os pés, gritava sob pesadelos. De onde nascera esta criaturinha vibrante, senão do que sua mulher e ele haviam cortado da vida diária. Viviam tão tranquilos que, se se aproximava um momento de alegria, eles se olhavam rapidamente, quase irônicos, e os olhos de ambos diziam: não vamos gastá-lo, não vamos ridiculamente usá-lo. Como se tivessem vívido desde sempre.
        Mas ele a olhara da janela, vira-a andar depressa de mãos dadas com o filho, e dissera-se: ela está tomando o momento de alegria – sozinha. Sentira-se frustrado porque há muito não poderia viver senão com ela. E ela conseguia tomar seus momentos – sozinha. Por exemplo, que fizera sua mulher entre o trem e o apartamento? não que a suspeitasse mas inquietava-se.
        A última luz da tarde estava pesada e abatia-se com gravidade sobre os objetos. As areias estalavam secas. O dia inteiro estivera sob essa ameaça de irradiação. Que nesse momento, sem rebentar, embora, se ensurdecia cada vez mais e zumbia no elevador ininterrupto do edifício. Quando Catarina voltasse eles jantariam afastando as mariposas. O menino gritaria no primeiro sono, Catarina interromperia um momento o jantar… e o elevador não pararia por um instante sequer?! Não, o elevador não pararia um instante.
        — “Depois do jantar iremos ao cinema”, resolveu o homem. Porque depois do cinema seria enfim noite, e este dia se quebraria com as ondas nos rochedos do Arpoador.

Extraído do livro: Laços de Família, Editora Rocco – Rio de Janeiro, 1998.

Entendendo o conto:

01 – Severina passara quinze dias na casa da filha e do genro. Observe o diálogos entre a sogra e o genro.
a)   Como se caracteriza a relação entre eles? Indique um trecho que comprove sua resposta.
Uma relação de tolerância e falsidade, conforme explicita o trecho “Durante as duas semanas da visita da velha, os dois mal se haviam suportado”.

b)   Na hora da despedida, Catarina sente vontade de rir. Por quê?
Porque percebe o comportamento falso da mãe e do marido, que querem passar por sogra e genro exemplares.

02 – Nos contos de Clarice Lispector, é comum um fato banal do cotidiano desencadear um processo de epifania, isto é, um processo de revelação, de tomada de consciência da personagem.
a)   Que fato desencadeia um processo epifânico no relacionamento entre mãe e filha?
A freada brusca do carro que as aproxima fisicamente.

b)   A partir desse momento, o que se revela à Catarina quanto ao relacionamento com a mãe? Por quê?
A proximidade física entre as duas evidencia o quanto elas tinham se distanciado nos últimos anos e o quanto o relacionamento entre elas era artificial e convencional.

03 – Releia este fragmento do conto: “A mãe tirou o espelho da bolsa e examinou-se no seu chapéu novo, comprado no mesmo chapeleiro da filha. Olhava-se compondo um ar excessivamente severo onde não faltava alguma admiração por si mesma. A filha observava divertida. Ninguém mais pode te amar senão eu, pensou a mulher rindo pelos olhos; e o peso da responsabilidade deu-lhe à boca um gosto de sangue. Como se “mãe e filha” fosse vida e repugnância. Não, não se podia dizer que amava sua mãe. Sua mãe lhe doía, era isso.”

a)   Na prosa de Clarice, é comum o emprego de metáforas ou de antíteses e paradoxos surpreendentes. Identifique nesse trecho um exemplo de um desses recursos.
“Como de ‘mãe e filha’ fosse vida e repugnância”; “Sua mãe lhe doía”.

b)   Dê uma interpretação coerente à frase: “Sua mãe lhe doía”.
A mãe, para Catarina, era como uma ferida aberta, um problema não resolvido, que doía constantemente, pedindo uma solução.

04 – Há diferentes formas de o narrador inserir os pensamentos das personagens na narrativa. Ele pode fazê-lo, por exemplo, de modo linear, delimitando nitidamente a voz do narrador e o pensamento das personagens; pode também empregar o discurso indireto livre, misturando a fala do narrador com a fala das personagens; pode, ainda, inserir pensamentos das personagens simultaneamente ao acontecimento dos fatos. No fragmento reproduzido na questão anterior:
a)   De que modo o narrador introduz o pensamento das personagens?
Ele o introduz simultaneamente ao acontecimento dos fatos.

b)   Que efeito esse recurso provoca no andamento da narrativa?
A narrativa se torna mais dinâmica e profunda, pois o leitor consegue saber o que a personagem está pensando enquanto está agindo.

c)   O que se destaca mais na literatura de Clarice Lispector: o enredo ou a introspecção psicológica das personagens? Por quê?
A introspecção psicológica. O enredo normalmente é secundário; ele interessa na medida em que cria situações que levam a reflexões sobre o ser humano.

05 – Os diálogos entre mãe e filha são repetitivos e vazios, evidenciando uma oposição entre o que é dito e o que é pensado.
a)   Constantemente Severina diz “Não esqueci de nada...”. Considerando o relacionamento das duas, o que elas realmente poderiam estar esquecendo?
Poderiam estar se esquecendo de conversar sobre elas mesmas, como mãe e filha, como pessoas, e não apenas como papéis sociais convencionais.  

b)   Com base em elementos do texto, responda: O que as duas personagens efetivamente gostariam de ter dito? O que as impede de dizerem uma à outra o que realmente pensam e sentem?
Gostariam de dizer coisas íntimas, significativas para a vida delas, como o sentimento de mãe e filha, ou sobre a vida familiar. Elas não diziam essas coisas porque pareciam estar acostumadas à situação, endurecidas pelo hábito e sem forças para começar um novo relacionamento.

06 – Clarice, em vários de seus contos, retrata a condição da mulher na sociedade, o casamento sem amor e a vida alienada da mulher o lado do marido. No conto “Os laços de família”, o processo epifânico vivido por Catarina faz com que ela chegue a sua casa diferente, mudada. E a palavra que o filho lhe diz parece dar continuidade ao processo epifânico.
a)   Que efeito tem sobre o marido a iniciativa de Catarina de sair do apartamento com o filho?
Catarina desestrutura a vida do casal, construída sobre certa estabilidade financeira e papéis sociais convencionais: ela dona de casa dedicada, ele um engenheiro bem-sucedido.

b)   Considerando “Os laços de família” (título do conto) observados entre Catarina e a mãe, troque ideias com os colegas e dê uma interpretação coerente: Por que Catarina toma a iniciativa de sair do apartamento com o filho, sem comunicar ao marido?
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Parece que Catarina não quer que a história entre ela e a mãe se repita entre ela e o filho. A atitude que ela toma é uma forma de romper a cadeia das relações familiares superficiais e convencionais.

c)   Na sua opinião, Catarina vai voltar?
Resposta pessoal do aluno.

07 – Com base no conto “Os laços de família”, responda: Mesmo trabalhando com o universo da consciência individual de personagens, a literatura de Clarice Lispector consegue ser também social? Justifique sua resposta. 
      Sim, pois acaba fazendo uma crítica à fragilidade e à superficialidade das relações familiares.



POEMA: MATURIDADE - OSWALD DE ANDRADE - COM GABARITO

Poema: Maturidade
   

           Oswald de Andrade

O Sr. e a Sra. Amadeu
    Participam a V. Exa.
        O feliz nascimento
            De sua filha
               Gilberta.
               Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade. 4. ed.
São Paulo: Globo, 2006. p. 50.
Entendendo o poema:

01 – No poema “Maturidade” de Oswald de Andrade, o corpo do poema se assemelha a que tipo gênero textual?

     O corpo do poema se assemelha ao gênero textual epistolar. 

02 – Tanto em sua poesia quanto em sua prosa, Oswald de Andrade fez uso de paródias, decolagens e da técnica dadaísta do ready-made, isso é, a atribuição de valor artístico a objetos deslocados de seu contexto normal de uso. Observe o poema “maturidade”.

a)     Com que tipo de gênero textual o corpo do poema se assemelha?
Anúncio. Assemelha-se a um cartão que informa o nascimento de um bebê.

b)     Que novo sentido o texto ganha com o título “maturidade”?
O texto ganha um teor filosófico, existencial. De que estão comemorando o nascimento da primeira filha, pois com o primeiro filho os pais amadurecem.