Texto: O MENINO SEM IMAGINAÇÃO
Carlos Eduardo Moraes
Maria botou o jantar e
pela primeira vez, desde que nasci, vi toda a família reunida à volta da mesa.
- Como nos velhos
tempos! – exclamou o vovô satisfeito.
Ele disse que no passado era
assim: as pessoas sentavam juntas, conversavam e trocavam ideias na hora das
refeições. Disse que foi a chegada da televisão que provocou uma debandada
geral. Eu fiquei calado, mas me irrita muito ver alguém falando mal da
televisão. Para mim ela apenas permitiu que cada um comesse quando quisesse,
porque as pessoas não são obrigadas a sentir fome à mesma hora.
- Vamos conversar sobre
o quê? – perguntou o vovô; que não obtendo resposta continuou:
- Não podemos perder
esta oportunidade. Ela talvez não se repita nunca mais.
- Qualquer coisa –
resmungou mamãe desinteressada.
- Eu queria fazer um
comentário sobre o jogo...
- Ah! Futebol não! –
mamãe cortou a frase de papai.
- Então vamos meter o
pau no Governo – propôs vovô.
- Política nem pensar!
– voltou mamãe.
- Existe algum tema
mais relevante do que o sumiço da televisão? – indagou titia.
- Ah! Eu não aguento
falar mais sobre isso! – disse papai.
- Nem eu! – concordou a
mana.
E mergulhamos todos num
longo silêncio.
Eu havia colocado
Fantástica sobre o aparador, na minha frente, mantendo seu controle remoto ao
lado do meu prato, como um talher. Não acreditava que a TV fosse demorar muito
mais fora do ar, porque papai falou que os donos das emissoras são poderosos “e
logo vão dar um jeito nisso”.
Eu dava uma garfada,
ligava e desligava Fantástica; dava outra garfada, ligava e desligava e ligava
e desligava, até que papai saiu de seu silêncio e bateu na mesa:
- Para com isso,
Tavinho! Que mania!
- Só quero saber quando
a imagem vai voltar.
- Você vai saber! Vai
ser uma barulhada infernal por esse país afora!
A comida estava uma
gororoba intragável. Maria é uma grande cozinheira, mas desta vez errou a mão,
salgou tudo e queimou o arroz. Eu deixei cair um pedaço de goiabada no chão,
titia se engasgou com a farofa e mamãe virou a garrafa de água na toalha. Minha
irmã, que não perde uma chance, falou que “o sumiço da televisão está mexendo
com o equilíbrio de muita gente”. Mamãe, eu se manteve calada o tempo todo,
resolveu apelar:
- Amanhã cedinho vou à
igreja iniciar uma novena para Nossa Senhora fazer com que a televisão volte
logo.
- E eu vou à minha
astróloga – emendou titia. – Talvez a conjuntura astrológica explique alguma coisa...
- E eu vou procurar o
pastor da minha igreja – arrematou Maria, de passagem.
O jantar acabou e as
pessoas ficaram vagando pelo apartamento feito almas penadas. Eu mesmo não
sabia o que fazer. Experimentava uma sensação esquisita, das naves. Foi me
dando sono, uma vontade de me encolher debaixo das cobertas.
Minha irmã, ao me ver
acabrunhado num canto, veio até mim:
- Não fique assim,
irmãozinho – disse carinhosa.
- Fico assim. –
resmunguei – A vida perdeu o sentido pra mim.
- Que bobagem! – ela
sorriu meiga. – A televisão é um eletrodoméstico.
- Pra mim é muito mais!
É minha razão de viver!
- A humanidade viveu
milhares de anos sem televisão, Tavinho, e nunca deixou de fazer as coisas
- Pois eu sou aquela
parte da humanidade que não saber fazer as coisas sem televisão.
A mana sorriu e afogou
meus cabelos, delicada:
- Não adianta ficar
emburrado. Faz o jogo do faz de conta. Ás vezes é preciso brincar para se
suportar melhor a realidade.
- Faz de conta o quê? O
quê? – perguntei desafiador.
- Por que você faz de
conta que engoliu a TV?
Lá vinha ela com suas
birutices.
- Eu? Engolir a
televisão?
[...]
MORAES,
Carlos Eduardo. O menino sem imaginação.
ed. 6. São Paulo: Ática, 1997.
Entendendo o texto:
01 – Lendo apenas esse trecho, foi possível compreender o conflito
presente no romance? Como você chegou a essa conclusão?
Professor,
espera-se que o aluno responda que as emissoras não estavam transmitindo a
programação porque aconteceu algum problema, afinal o pai disse que “os donos
das emissoras são poderosos e logo vão dar um jeito nisso”.
02 – Quando Tavinho diz: “[...] pela primeira vez desde que nasci, i
toda a família reunida à volta da mesa”, o que se pode perceber sobre a rotina
da casa?
Percebe-se
que sua família não tem o hábito de realizar as refeições reunida, conversando:
cada um come em um horário diferente e sempre diante da TV.
03 – O que você achou da família de Tavinho? Ela é diferente da sua?
Resposta pessoal.
04 – Com base na leitura desse trecho, explique por que o autor deu esse
título para a história.
Resposta
pessoal. Professor, espera-se que o aluno perceba, a partir da leitura do
trecho, que Tavinho desenvolve uma dependência tão grande da TV que não sabia o
que fazer sem ela, não tinha imaginação para fazer nada. Converse com a turma
sobre a crítica que pode ser percebida nas entrelinhas do texto, de que as
pessoas se tornam passivas, apáticas e alienadas quando desenvolvem esse tipo
de dependência.
05 – Quem é fantástica? Poderíamos chamá-la de personagem? Por quê?
Fantástica
é o nome que Tavinho dá à televisão. Poderíamos chamá-la de personagem, pois
ela é tratada como um ser e é devido ao seu estado (fora de ar) que todo o
enredo da história se desenvolve.
06 – Quem é o narrador dessa história? Como você descobriu isso?
Tavinho,
a personagem principal. Professor, espera-se que o aluno chegue a essa
conclusão observando o uso da primeira pessoa (“eu”).
07 – Como Tavinho reagiu diante do “sumiço da televisão”?
Não sabia o que fazer, ficou muito triste, com vontade de dormir. É
possível constatar pelo trecho: “dava uma garfada, ligava e desligava
Fantástica; dava outra garfada, ligava e desligava e ligava e desligava”.
08 – A irmã de Tavinho, para consolá-lo, sugere: “Não adianta ficar
emburrado. Faz o jogo do faz de conta”. O que você acha que ela quer dizer com
isso?
Professor,
espera-se que o aluno comente que a irmã quer incentivar Tavinho a usar a
imaginação, criar histórias e não ser tão dependente da TV.