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quarta-feira, 2 de março de 2022

CRÔNICA: LIBERDADE, OH, LIBERDADE - DANUZA LEÃO - COM GABARITO

 Crônica: Liberdade, oh, liberdade

                  Danuza Leão

        Todo mundo quer ser livre; a liberdade é o bem mais precioso, almejado por homens e mulheres de todas as idades, e a luta para conquistá-la começa bem cedo.

        Desde os primeiros meses de idade, você só pensa em uma coisa: fazer apenas o que quer, na hora que quer, do jeito que quer.

        Crianças de meses rejeitam a mamadeira de três em três horas, mas choram quando têm fome – querem comer na hora que escolherem –, e quando um pouco mais grandinhas brigam para não vestir a roupa que a mãe escolheu. Ficam loucas para ir sozinhas para o colégio, e quando chegam em casa além do horário previsto, ai de quem perguntar onde elas estiveram. "Por aí" é o que respondem, quando respondem – e as mães que enlouqueçam.

        Quando adolescentes, as coisas pioram: querem a chave do carro (e a de casa), e quando começam a sair à noite e os pais tentam estabelecer uma hora para chegar, é guerra na certa, com as devidas consequências: quarto trancado, onde ninguém pode entrar nem para fazer uma arrumação básica. Naquele território ninguém entra, pois é o único do qual ele se sente dono – e, portanto, livre. A partir dos 12 anos, o sonho de todos os adolescentes é morar num apart –sozinhos, claro.

        Mas o tempo passa, vem um namoro mais sério, e quem ama não é – nem quer ser – livre (para que o outro também não seja). Dá para quem está namorando sumir por três dias? Claro que não. Se for passar o fim de semana na casa da avó, que mora em outra cidade, vai ter que dar o número do telefone – e isso lá é liberdade? E dos celulares, melhor nem falar.

        Aí um dia você começa a achar que, para ser livre mesmo, é preciso ser só; começa a se afastar de tudo e cancela o amor em sua vida – entre outras coisas. Ah, que maravilha: vai aonde quer, volta na hora em que bem entende, resolve se o almoço vai ser um sanduíche ou na-da, sem ninguém para reclamar da geladeira vazia, trocar o canal de televisão ou reclamar porque você está fumando no quarto. Ah, viver em to-tal liberdade é a melhor coisa do mundo. Mas a vida não é simples, e um dia você acorda pensando em se mudar de casa; fica horas pesando os prós e contras, mas não consegue decidir se deve ou não. Pensa em refrescar a cabeça e ir ao cinema, mas fica na dúvida – enfrentar a fila, será que vale a pena? Vê a foto de uma modelo na revista e tem vontade de cortar o cabelo – mas será que vai ficar bem? Acaba não fazendo nada, e depois de tantos anos sem precisar dar satisfação da vida a ninguém, começa a sentir uma estranha nostalgia.

        Como seria bom se tivesse alguém para dizer que é uma loucura fazer uma tatuagem; alguém que te aconselhasse a não trocar de carro agora – pra que, se o seu está tão bom? Que mostrasse o quanto você foi injusta com aquela amiga e precipitada quando largou o marido, o quanto foi rude com a faxineira por uma bobagem. Que falasse coisas que iam te irritar, desse conselhos que você iria seguir ou não, alguém com quem você pudesse brigar, que te atormentasse o juízo às vezes, para você poder reclamar bastante. Alguém que dissesse o que você deve ou não fazer, o que pode e o que não pode e até mesmo te proibisse de alguma coisa.

        E que às vezes notasse suas olheiras e falasse, de maneira firme, que você está muito magra e talvez exagerando na dieta; alguém que percebesse que, faltando dez dias para o final do mês, você só tem 50 reais na carteira e perguntasse se você não está precisando de alguma coisa. E que dissesse sempre, em qualquer circunstância, "vai dar tudo certo".

        Que falta faz um pai.

Danuza Leão. Folha de S. Paulo, 3/3/2002.

Fonte: Livro- PORTUGUÊS: Linguagens – Willian R. Cereja/Thereza C. Magalhães – 7ª Série – 2ª edição - Atual Editora -1998 – p. 113-5.

Entendendo o texto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Almejado: desejado ardentemente.

·        Apart: o mesmo que apart-hotel (apartamento-hotel), espécie de apartamento com regalias de hotel: arrumadeira, lavanderia, cozinheira, manobrista, etc.

02 – A autora defende um ponto de vista a respeito da importância que tem a liberdade na vida das pessoas. Qual é esse ponto de vista e em que fases da vida o ser humano aspira pela liberdade?

      Ela defende o ponto de vista de que a liberdade é o bem mais desejado pelo ser humano em todas as fases da vida.

03 – No 4° parágrafo do texto, a autora diz que, na adolescência, “as coisas pioram”.

a)   Por que há conflitos entre pais e adolescentes?

Os conflitos ocorrem porque os adolescentes se rebelam contra as normas impostas pelos pais, como as de horário para chegar em casa.

b)   Que palavras empregadas pela autora reforçam a ideia de que o lar se transforma num campo de batalha?

As palavras guerra e território, que sugerem lutas e demarcação de espaços e fronteiras.

c)   Se o quarto é o único espaço do qual o adolescente se sente o dono, deduza: Que envolvimento ele tem com o restante da casa e com os problemas do lar?

Nenhum envolvimento; geralmente não se sente dono nem responsável pelo resto da casa; também não se interessa pelos problemas gerais da família.

04 – De acordo com o texto, “o sonho de todos os adolescentes é morar num apart – sozinhos, claro”.

a)   Das regalias que há no lar, quais o adolescente encontraria num apart-hotel?

Comida, roupa lavada e faxina.

b)   O adolescente tem condições concretas de manter um apart-hotel?

Não.

05 – Segundo a autora, a fase do “namoro mais sério” modifica a visão que até então a pessoa tinha de liberdade. “Quem ama”, diz ela, “não é – nem quer ser – livre”.

a)   Explique essa contradição.

Se a pessoa quer a sua liberdade, então precisa dar liberdade ao outro. Por amor, o ser humano começa a sacrificar sua liberdade para garantir a fidelidade do outro.

b)   Levante hipóteses: Por que, a respeito dos telefones celulares, a autora diz “melhor nem falar”?

Porque os celulares põem fim a certa “liberdade” do indivíduo, pois permitem que alguém, a distância, controle tudo o que o outro está fazendo.

06 – Morar sozinho é uma das etapas na conquista da liberdade. De acordo com o texto:

a)   Que vantagens há em morar sozinho?

A pessoa tem liberdade total para fazer o que deseja, sem dar satisfações a outra pessoa.

b)   E quais são as desvantagens?

A falta de um interlocutor para trocar ideias, para opinar sobre as mínimas coisas: corte de cabelo, ir ao cinema, etc.

07 – Releia este trecho:

        “[...] depois de tantos anos sem precisar dar satisfação da vida a ninguém, começa a sentir uma estranha nostalgia.” Veja alguns dos sentidos que a palavra nostalgia tem no dicionário:

        Nostalgia: s.f. 1 melancolia profunda causada pelo afastamento da terra natal [...] 3 saudades de algo, de um estado, de uma forma de existência que se deixou de ter; desejo de voltar ao passado.

Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

a)   No texto em estudo, a nostalgia se deve à falta de quê?

De conselhos, broncas, proibições e consolo.

b)   Que outro sentido ganha, nesse momento, tudo aquilo que antes parecia insuportável ao adolescente?

Ganha um sentido de carinho, de preocupação, de companheirismo, etc.

08 – Comparada com o início do texto, a frase: “Que falta faz um pai”, do final, é surpreendente.

a)   A palavra pai foi empregada conotativamente. Que sentidos ela apresenta no contexto?

Representa a família como um todo: a mãe, os irmãos, a companhia, a solidariedade, o companheirismo, etc.

b)   Levante hipóteses: Até alguém chegar a essa nova forma de ver o mundo, quantos anos terão se passado?

Parece que a cronista se refere a adultos com mais de 30 anos, que já passaram por muitas experiências.

c)   O reconhecimento, nesse estágio da vida, de que “sente falta do pai”, indica que o ser humano amadureceu? Por quê?

Resposta pessoal do aluno. Sugestões: Sim, pois esse reconhecimento significa que as coisas estão sendo vistas de vários ângulos, que a pessoa aprendeu a ponderar, a ser mais tolerante, etc. Ou: Não, porque revela carência.

09 – Em sua trajetória de vida, o ser humano sofre profundas mudanças. De acordo com o texto, essas mudanças fazem com que ele deixe de valorizar a liberdade? Justifique sua resposta.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Não, ele apenas passa a ter uma visão diferente, menos radical, de liberdade. Passa a ver, por exemplo, que ser livre não é necessariamente ser só e que as demais pessoas sem sempre exercem opressão sobre nós. Sua preocupação pode ser, inclusive, uma forma de amor.

 

 

terça-feira, 9 de março de 2021

CRÔNICA: A CASA DO MEU AVÔ - DANUZA LEÃO - COM GABARITO

 Crônica: A casa do meu avô

                    Danuza Leão

       Meu avô paterno, que se chamava Heródoto, tinha dois irmãos, Kociusko e Aristóbulo; sua casa era bem diferente da casa da minha avó materna.

        Eram também 11 tios e tias, mas todos nervosos, desobedientes, brigões e barulhentos. Falavam alto, discutiam e davam grandes gargalhadas – tudo ao mesmo tempo. Depois que a minha avó morreu, meu avô se casou de novo; os três filhos do primeiro casamento odiavam a madrasta, é claro, e eram correspondidos com intensidade, coisas de uma família normal. Sendo assim, seus enteados – entre eles meu pai – tinham muita liberdade: para fazer e sobretudo para pensar.

        Todos adoravam comer e, como a casa era perto do mar, havia sempre grandes peixadas, muito mexilhão, muito camarão de rio e de mar e muita lagosta. No quintal, um canteiro só de pimenta malagueta, e a família se fartava. Comia-se macarrão com pimenta, ovo frito com pimenta, pão com pimenta, sempre tirada na hora, do pé – em conserva, nem pensar. A pimenta era amassada com a faca e espalhada sobre o que se ia comer. Todo mundo saía da mesa fungando, e meu avô dizia: "Se não chorar, não vale". Os mais velhos, quando iam à casa de outros parentes, levavam pimentas num vidrinho, para o que desse e viesse.

        No quintal, um monte de galinhas soltas, e também um galo grande, lindo, de penas ruivas, e um galinho garnisé branco. A primeira percepção de vida que senti – sem entender – foi quando segurei pela primeira vez um ovo que a galinha tinha acabado de botar. O ovo era quente, mas um quente diferente, perturbador; um quente vivo.

        Havia uma mangueira e os mais novos amarravam um saquinho na ponta de uma vara para tirar as mangas ainda verdes; as frutas eram massageadas para que parecessem maduras e vendidas numa rua longe da casa – espertos, os meninos. Quando se comia galinha, o que era raro, era ao molho pardo, e a garotada não perdia a cena, com direito a muito cacarejo e muito sangue. A briga na mesa era pela moela, o objeto de desejo de todos. O pescoço era jogado para um cachorro vira-lata que não tinha dono e sempre aparecia para descolar alguma sobra de comida. Ah, na casa desse meu avô nunca se falou em religião nem nunca ninguém foi à missa.

        Lá não havia muita disciplina; a madrasta de meu pai não conseguia mandar nos que não eram seus filhos e, como os dela queriam fazer o que os meios-irmãos faziam, o resultado era uma confusão permanente. Um dia, a família resolveu se mudar e, quando chegaram à casa nova e contaram, notaram que faltava uma criança; foi preciso voltar para buscá-la.

        Quando meu avô ficou tuberculoso, o médico recomendou uma cidade de bom clima, e a família mudou-se para Barbacena. Fomos visitá-lo uma vez; seu prato, seu copo e seus talheres eram separados dos outros, e não se podia chegar perto para não pegar a doença. Ele ficava o dia todo na varanda, triste, numa cadeira de vime, com as pernas cobertas por uma manta, tomando leite, coitado.

        Era especial, meu avô, e com ele não havia essa de economizar nos sentimentos: quando eu nasci, mandou fazer meu nome em metal, bem grande, e botou na fachada da casa onde morava. Ah, meu avô querido.

        Depois que ele morreu, a família se dispersou, mas ainda guardo dele a mais linda carta que já recebi, contando um sonho que havia tido comigo, querendo me abraçar e não conseguindo.

        O tempo passou, mas ainda sei trechos dessa carta de cor – e continuo gostando muito de comer pimenta.

        E, como ele dizia, se não chorar, não vale.

  LEÃO, Danuza. Folha de São Paulo, 28 jul. 2002. Caderno C. p. 22.

                   Fonte: Português – Língua e Cultura. Carlos Alberto Faraco. Volume 1. 2. Ed. – Curitiba: Base Editorial, 2010. P. 27-8.


Entendendo a crônica:

01 – Por que a figura do avô paterno foi tão marcante para a autora?

      Era especial, meu avô, e com ele não havia essa de economizar nos sentimentos: quando eu nasci, mandou fazer meu nome em metal, bem grande, e botou na fachada da casa onde morava. Ah, meu avô querido.

02 – Observe que há um momento neste segundo texto em que aparece o motivo “a primeira vez” (que já encontramos na crônica “Mar”, de Rubem Braga). De que “primeira vez” nos fala a autora?

      No quintal, um monte de galinhas soltas, e também um galo grande, lindo, de penas ruivas, e um galinho garnisé branco. A primeira percepção de vida que senti – sem entender – foi quando segurei pela primeira vez um ovo que a galinha tinha acabado de botar. O ovo era quente, mas um quente diferente, perturbador; um quente vivo.

03 – O aspecto que ganha realce quando lemos as duas crônicas de Danuza Leão são as diferenças entre as duas famílias. Esta crônica vai se construindo tendo a primeira como ponto de referência (A casa da minha avó): a autora vai contrastando os temperamentos das pessoas e o modo de vida de cada família. Como exercício de leitura, faça um levantamento dessas diferenças.

·        A casa da minha avó: temperamento – 4° e 11° parágrafos.

                                    Modo de vida – 1°, 3°, 5°, 8° e 9° parágrafos.

·        A casa do meu avô: temperamento – 2° e 6° parágrafos.

                                 Modo de vida – 1°, 2°, 3°, 5°, 6° e 9° parágrafos.

 

sexta-feira, 19 de julho de 2019

CRÔNICA: A CASA DA MINHA AVÓ - DANUZA LEÃO - COM GABARITO

Crônica: A casa da minha avó
                 Danuza Leão


       Era um sobrado; na parte de baixo, o armazém do meu avô, onde se vendia um pouco de tudo. Tecidos, renda, sianinha, botões, fumo de rolo, açúcar, feijão e grãos de um modo geral -não em pacotes mas em sacos grandes, que ficavam no chão. No andar de cima, onde morava a família, era a casa de minha avó -nunca do meu avô.
      No armazém havia um balcão onde os mais chegados iam toda tarde conversar, com direito a um copinho de cachaça -um só. Meu avô, italiano, se vestia de terno, gravata e colete, e em casa se concedia o direito de tirar o paletó mas sempre de gravata e colete.
      Em cima, dando para a praça, havia uma sala de visitas que só era aberta em ocasiões muito especiais -que nunca aconteciam-, com sofá, cadeiras estofadas e um piano. Mais para dentro uma grande sala de jantar onde todos almoçavam e jantavam à mesma hora -11h30 e 19h; em cada quarto, três ou quatro camas, e banheiro era um só, para os avós, 12 filhos e os netos que lá passavam grandes temporadas.
       Minhas oito tias só tinham um objetivo na vida: arranjar um marido, e bastava que ele fosse um rapaz bom e trabalhador. Das oito, só uma trabalhava: era professora, e ia a cavalo, todos os dias, dar aulas. Foi a única que ficou solteira. As outras se casaram e para suas filhas só havia um objetivo na vida: casar, ter filhos. E assim corria a vida.
       Nos fundos da casa, havia uma varanda virada para o rio; ao lado, a cozinha com uma janela de onde se tinha a vista mais bonita da casa; por essa janela a empregada jogava o lixo. A palavra ecologia ainda não existia e da varanda nós, crianças, ficávamos vendo as cascas de laranja e banana sendo levadas pela correnteza.
        A grande aventura era dormir no chão duro. Os menores imploravam para ter o privilégio de dormir com um lençol em cima dos tacos e um travesseiro. Era essa a grande farra.
        Uma vez por semana vinha um homem lavar o chão da casa; ele jogava baldes de água, passava sabão, depois enxaguava, tirava o excesso com um rodo e secava com um pano. Só a sala da frente era encerada e o brilho dado na mão, com uma flanela.      Quando o trabalho estava pronto ficava um cheiro de casa de gente honesta, de gente direita. Onde foram parar esses cheiros?
         As comidas eram de interior: galinha quase todo dia e, para dar uma corzinha ao refogado, colorau. Os legumes eram de roça: abobrinha, jiló, couve, repolho, chuchu. Às vezes uma tia perguntava: "Você quer um ovo frito?" Esse privilégio só acontecia às vezes e só para os netos que estavam de visita.
As sobremesas eram doce de banana em rodelas e de mamão verde. Esse meu lado da família (da minha mãe) não era muito de comer. Lá pelas 21h tinha um lanche modesto: café com leite, pão e manteiga; aos domingos havia biscoitos, e cada uma das crianças tinha o direito de fazer um do feitio que quisesse, que era sempre o mesmo: uma lagartixa e no lugar dos olhos, dois feijões.
        Uma ou duas vezes por ano o rio subia sem violência, tranquilamente, e inundava a cidade; as pessoas saiam de casa de bote para fazer compras ou uma visita. Uma enchente era melhor do que qualquer coisa, e as pessoas tiravam retratos nos botes.
         Havia muitas visitas a tias, avós e primas longínquas. Os laços familiares eram cultivados com cuidado, mas o melhor de tudo era quando as tias moravam do outro lado do rio, porque aí a gente atravessava a ponte o que era, sempre, uma emoção. E ainda havia a ponte de ferro por onde passava o trem, que era um perigo. O sonho de todos nós, crianças, era atravessar essa ponte pulando sobre os dormentes, e a minha falta de coragem para desobedecer e atravessar a ponte de ferro é uma frustração até hoje não superada. Outra: nunca ter tomado um banho no rio.
São belas as lembranças de quem passou parte da infância em uma cidade do interior com um rio e uma ponte-duas, aliás.
           E melhor ainda é lembrar.
LEÃO, Danuza. Folha de S.Paulo, 21 jul. 2002. Caderno C, p.2.
Livro: Português: língua e cultura – FARACO, Carlos Alberto. V.1.

Estudo do texto
1.   A autora descreve a casa da sua avó e relata algumas de suas rotinas. E dá destaque àquilo que era mais marcante para as crianças. Qual era “a maior aventura”? O que era “o melhor de tudo”? E qual era “o sonho de todas as crianças que frequentavam a casa?
A maior aventura era dormir no chão duro (6º parágrafo); o melhor de tudo era quando as tias moravam do outro lado do rio, porque aí as crianças atravessavam a ponte, o que era, sempre, uma emoção (11º parágrafo); o sonho de todas as crianças era atravessar a ponte da estrada de ferro (11º parágrafo).

2.   Perto do fim da crônica, encontramos a autora confessando uma velha frustação (qual é ela?). E, em seguida, arremata o texto com uma breve reflexão motivada pelo relato das lembranças da infância. O que nos diz ela sobre estas lembranças?
A frustação foi nunca ter tido a coragem de desobedecer e atravessar a ponte da ferrovia (11º parágrafo). E a reflexão sobre as lembranças da infância: são belas as lembranças de quem passou parte da infância em uma cidade do interior com um rio e uma ponte – duas, aliás (12º parágrafo).

3.   A autora fala das oito tias. Nada diz, porém, sobre os tios. Apesar disso, há um dado no texto que nos permite inferir que eles eram quatro. Que dado é esse?
No fim do terceiro parágrafo, a autora menciona o número de filhos de seus avós:12. Se eram 12 filhos e 8 eram mulheres, sobram 4 homens.

4.   O que quer dizer a autora quando afirma: “A palavra ecologia ainda não existia”?
Ela quer dizer que, no tempo de sua infância, não estava ainda disseminada socialmente a preocupação com a preservação do ambiente.



segunda-feira, 22 de abril de 2019

CRÔNICA: UMA TIA - DANUZA LEÃO - COM QUESTÕES GABARITADAS

Crônica: Uma tia
      
        DANUZA LEÃO 

        Uma tia. Só que não estou falando de uma tia qualquer; estou falando daquela tia de antigamente, que nem sei se ainda existe.
        Ela era assim: magrinha, já nascida com cerca de 75 anos e com os ombros curvados; era tão discreta que nunca ficava doente – e, se ficava, não dizia (para não dar despesa); por ser a mais velha de uma escadinha de 12 ou 13 irmãos, ficou combinado que nunca se casaria. Naquele tempo, era assim: o destino da mais velha era ajudar a criar os mais novos e cuidar da mãe na velhice.
        Como não tinha renda de nenhuma natureza, depois que a mãe morreu, passou a morar ora com uma irmã, ora com outra, fazendo a única coisa que sabia: ajudar. Um parente estava no hospital? Lá ia ela. Alguém da família teve um bebê? Lá estava ela, firme, dormindo num colchonete para que a mãe pudesse dormir. Se se apegava à criança, ninguém estava interessado. Depois de cumprida a missão, voltava para casa e não se falava mais naquilo.
        Dizem que as mães fazem tudo pelos filhos – e até fazem –, mas essas tias são diferentes. Talvez por não terem nunca perdido tempo pensando em homens canalizam seus sentimentos para as sobrinhas e têm sempre uma predileta. No caso, era eu.
        Por mim ela fazia tudo e, de vez em quando, me dava um presente: uns dois palmos de renda amarelecida pelo tempo, que eu adorava – restos do enxoval de um vago noivado que não chegou ao casamento. O noivo desapareceu, nunca mais se tocou no assunto, e as pulseiras e broches de ouro com flores de coral foram devolvidas, como faziam as moças direitas.
        Essa tia não possuía um só bem material, mas era sempre muito cheirosa; cheirava a água-de-colônia, que usava pouco, para economizar. E, quando dei a ela – que já beirava os 90 anos – um casaquinho rosa de tricô, banal, trazido de Paris, ela só o usava em ocasiões muito especiais, para não gastar.
        Em qualquer idade, ficar doente e ter uma tia dessas é uma bênção. Com o quarto em penumbra, ela se sentava numa cadeira em silêncio total e só se levantava – isso várias vezes ao dia – para botar as costas da mão na testa para ver como estava a febre. E isso, falando bem baixinho. Uma mãe faz isso? Faz, mas, quando a febre baixa, aproveita para dar um pulinho ao cabeleireiro para estar linda no jantar da noite.
        Com essa tia, é diferente; você pode contar com ela para rigorosamente tudo, e esse amor não pede nada em troca. Nem mesmo agradecimento.
        É doloroso, mas faz parte da vida não dar valor às pessoas que temos certeza de que nos amam. Quantos domingos eu fiquei lendo e relendo os jornais, sem chamá-la para almoçar fora, coisa de que ela teria gostado tanto (sempre pedindo os pratos mais baratos, claro)? Quantas vezes deixei de levar para ela uma caixinha com três sabonetes ou um frasco de lavanda que nem precisava ser francesa? Pois é.
      O tempo passou, ela morreu, e eu – que não a via muito porque tinha o trabalho, os filhos, o dia-a-dia, a maldita ginástica que não podia perder – nem sofri tanto assim. Passou.
        As reações às vezes são lentas; uns quatro ou cinco anos depois, tive uma cólica renal e, no meio da dor, lembrei-me dela. Dela, que teria ficado sentada no chão do banheiro, passando a mão pelos meus cabelos, só de carinho, enquanto eu tomava aqueles longos banhos quentes para melhorar a dor; dela, que fazia a bainha de meu vestido cinco minutos antes da festa, se fosse preciso; dela, a única que lembrava e contava episódios de minha infância que só ela sabia. Dela, que gostava de mim como nunca, jamais, ninguém gostou nem gostará, e eu só soube depois. Dela, que quando me via em algum sufoco, sempre terminava dizendo: "Vou rezar muito por você, e a Nossa Senhora vai te ajudar", sem tentar me convencer a ir à missa ou a acreditar em Deus.
        E eu, que nunca disse o quanto gostava dela.

                 Danuza Leão. As aparências enganam. São Paulo: Publifolha, 2004.
Entendendo a crônica:

01 – Na crônica, a autora fala de uma tia “que nem sei se ainda existe”. Você tem uma tia assim?
      Resposta pessoal do aluno.

02 – No texto inteiro, há trechos que descrevem a tia. Mas, em certa passagem, essa descrição é bastante evidente.
a)   Que passagem é essa?
Está descrito no 2° parágrafo.

b)   Como essa tia é descrita pela autora?
É descrita física e psicologicamente.

c)   Localize a expressão que introduz esse trecho explicitamente descritivo.
A expressão é: “Ela era assim”.

03 – Que papel ela desempenhava na família?
      O de cuidar dos irmãos mais novos e da mãe na velhice.

04 – A característica principal dessa tia é que ela ajudava sempre que necessário. Indique passagens do texto que explicitam isso.
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Há várias passagens que indicam isso, às vezes de forma melancólica, às vezes de forma bem-humorada.

05 – Com que outro membro da família a tia é comparada? Na sua opinião, por que a autora faz essa comparação?
      Com a mãe. A mãe é associada ao zelo e ao cuidado para com os filhos, características principais dessa tia.

06 – Embora a autora fale de uma tia em especial, é possível afirmarmos que ela buscou descrever um tipo de tia que pode existir em qualquer família. Esse procedimento de linguagem é o que chamamos de generalização. Indique passagens do texto que evidenciem a generalização. 
      Ela generaliza por meio do uso de determinadas expressões como “ter uma tia dessas”, ou “essas tias são diferentes. O tempo todo, há essa dicotomia no texto: a tia em especial, e a generalização dessa figura da parentela.

07 – Todo o texto é percorrido por um sentimento da sobrinha para com a tia.
a)   Que sentimento é esse?
A saudade da tia perdida é o que marca o texto, do começo ao fim.

b)   Localize uma passagem que justifica sua resposta ao item anterior.
No parágrafo que começa em “As reações às vezes são lentas [...]”, esse sentimento fica explícito.

08 – Ao fim da crônica, a autora declara seu arrependimento por não ter sido mais generosa com a tia da seguinte forma: “E eu, que nunca disse o quanto gostava dela”. Na sua opinião, por que Danuza Leão termina o texto dessa forma?
      Resposta pessoal do aluno.

09 – Uma crônica é um texto em que o autor, a partir da observação de um fato corriqueiro, um evento singular, um hábito ou uma situação usual do quotidiano, leva seus leitores a refletirem. O fato observado por Danuza Leão é de qual natureza: um fato corriqueiro, um evento singular ou uma situação habitual do quotidiano? Explique.
      É uma situação habitual. Há indícios no texto que apontam para isso, por exemplo o uso do procedimento da generalização, indicado na questão 6 desta seção.

10 – Ao escrever sua crônica, a autora mistura diferentes níveis de linguagem. Observe: “E, quando dei a ela – que já beirava os 90 anos – um casaquinho rosa de tricô, banal, trazido de Paris, ela só o usava em ocasiões muito especiais, para não gastar.”
a)   Qual é p sentido do verbo beirar nessa passagem?
Nessa passagem, significa “aproximar-se de”.

b)   Consulte o dicionário e verifique que significados ele registra para essa palavra.
O dicionário registra entre outros, os seguintes significados: “costear, ladear, ir pela margem de”; “fazer limite com”.

c)   Por que o uso do verbo beirar, nesse trecho pode ser considerado um indício de que há mistura de níveis de linguagem no texto?
Na linguagem formal, o uso de “aproximar-se” é mais usual.

11 – Releia o trecho a seguir: “Com essa tia, é diferente; você pode contar com ela para rigorosamente tudo, e esse amor não pede nada em troca. Nem mesmo agradecimento.”
        A quem se refere o pronome você nessa passagem? Justifique sua opinião.
      A primeira impressão é que ela se refere ao leitor. Mas, ao ler o trecho com mais atenção, percebe-se que o pronome generaliza a ideia, ou seja, “você pode contar com ela” é o mesmo que dizer “é possível contar com ela” ou “pode-se contar com ela”. O pronome então funciona como índice de indeterminação do sujeito.

12 – Releia esta passagem da crônica: “O tempo passou, ela morreu, e eu – que não a via muito porque tinha o trabalho, os filhos, o dia-a-dia, a maldita ginástica que não podia perder – nem sofri tanto assim. Passou.”
a)   No início e no fim desse parágrafo, emprega-se o verbo passou. O sentido é o mesmo nas duas ocorrências? Explique.
Na primeira ocorrência, o verbo refere-se à passagem do tempo, sendo sinônimo de “transcorrer”.
Na segunda ocorrência, o sentido é outro: “deixar de ocorrer”, “cessar”, “terminar”.

b)   Qual é o sujeito de passou na segunda ocorrência? Explique.
O sujeito – não expresso – pode ser subentendido pelo contexto o sofrimento passou.

13 – No penúltimo parágrafo do texto, que começa em “As reações às vezes são lentas [...]”, repete-se várias vezes a palavra dela após ponto e vírgula ou ponto final. Na sua opinião, o que a autora consegue com essas repetições?
      Essas repetições marcam a insistência na figura da tia. Essa palavra, repetida assim, cria um ritmo semelhante à batida de martelo, o que comunica a ideia de que ela, a autora, não mais se esquecerá dessa tia.

14 – A última palavra do texto é dela. Na sua opinião, por que a autora finaliza o texto com essa palavra?
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Volta-se na insistência sobre a figura da tia e a autora consegue terminar o texto de forma circular, como se fechasse um ciclo.