CRÔNICA: JÁ LI ISSO EM ALGUM LUGAR
Moacyr Scliar
Ele era um rapaz sério, trabalhador. Ela era uma moça séria, trabalhadora. Namoravam havia muitos anos. Desde a infância, na verdade. Porque as famílias se conheciam e faziam gosto de que os dois namorassem. E, assim, eles namoravam e até falavam em noivar e em casar.
A verdade, porém, é que o relacionamento entre ambos era, no máximo, morno. Muito respeito mútuo, bastante afeto, tratamento cordial; mas paixão, paixão arrebatadora, isso não havia. De qualquer modo foram levando. Até que ele conheceu outra garota. Encontro casual, num supermercado. Ela deixou cair um objeto qualquer, ele a ajudou, começaram a conversar, saíram para tomar alguma coisa, marcaram um encontro e quando deu por si, ele estava, aí sim, apaixonado.
O que representava um tremendo problema de consciência. Como contar à sua namorada de tantos anos o que estava acontecendo? Como terminar aquela antiga ligação?
Foi então que ouviu falar do site que dava dicas para romper. De imediato entrou ali. Havia numerosos modelos de cartas, desde as curtas e brutais ("Estou cheio de sua cara, desapareça") até as mais sofisticadas e elegantes. Destas, escolheu uma que lhe pareceu particularmente satisfatória: "Durante muitos anos convivemos com afeto e alegria. Durante muitos anos nossa existência foi iluminada pela lâmpada do amor. Mas seja por falta de energia, seja por outra razão qualquer, a lâmpada do amor está se apagando. Antes que fiquemos totalmente no escuro é melhor que terminemos nossa relação como amigos. É melhor que busquemos a luz em outros amores. Guardaremos, um do outro, uma terna lembrança; é isso o que importa."
Imprimiu a carta, assinou-a e telefonou para a namorada marcando um encontro naquela mesma noite. Era uma segunda-feira, e ela não gostava de sair nas segundas-feiras, mas, para surpresa dele, aceitou o convite de imediato: eu também precisava falar com você, é muita coincidência.
Foi mais fácil do que ele esperava, muito mais fácil. Disse que algo tinha acontecido, algo que uma carta explicaria, e entregou-lhe o envelope fechado. Ela replicou que também tinha uma carta para ele. Despediram-se, numa boa.
Ele entrou num bar, abriu o envelope, e leu: "Durante muitos anos convivemos com afeto e alegria. Durante muitos anos nossa existência foi iluminada pela lâmpada do amor. Mas seja por falta de energia, seja por outra razão qualquer, a lâmpada do amor está se apagando. Antes que fiquemos totalmente no escuro é melhor que terminemos nossa relação como amigos. É melhor que busquemos a luz em outros amores. Guardaremos, um do outro, uma terna lembrança; é isso o que importa."
Com o que ele concluiu: grandes amores são para poucos. Mas sites na internet estão ao alcance de todos.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um
texto de ficção baseado em reportagens publicadas na Folha.
SCLIAR, Moacyr. Histórias
que os jornais não contam. Rio de Janeiro: Agir, 2009.
Entendendo o texto
O título "Já li isso em algum
lugar" está mais diretamente relacionado à parte da crônica em que o
protagonista encontra um site com modelos de cartas para fins de
relacionamentos.
O trecho que explica o fato de os personagens namorarem desde a infância e fazerem planos para o futuro não é explicitamente referenciado na crônica.
03. Que expressão o cronista usa para definir o relacionamento entre os dois e que nos permite entender que chegava a ser quase frio?
O cronista usa a expressão "muito respeito mútuo, bastante afeto, tratamento cordial" para definir o relacionamento entre os dois, indicando que era um relacionamento onde faltava uma paixão intensa.
04. O 3° parágrafo inicia-se com “O que representava um tremendo problema de consciência.” Os termos em destaque referem-se a um fato do parágrafo anterior. Diga qual é esse fato.
Os termos "O que representava um tremendo problema de consciência" referem-se ao fato do rapaz ter se apaixonado por outra garota, o que criou um dilema ético e moral para ele.
05. O que levou o rapaz a consultar o site, de onde retirou a carta, conforme se lê no 5º/6º parágrafos?
O rapaz consultou o site porque estava enfrentando um problema de consciência sobre como terminar seu relacionamento atual de muitos anos e não sabia como fazer isso de maneira a abordar.
06. Por que o cronista, no 7º parágrafo, diz que foi mais fácil do que o rapaz esperava?
No 7º parágrafo, o cronista diz que foi
mais fácil fazer que o rapaz esperasse porque a namorada também tinha uma carta
semelhante para entregar a ele. Ela também queria terminar o relacionamento.
O cronista reforça a ideia de facilidade
usando a expressão "numa boa", indicando que a conversa e o término
ocorreram sem problemas.
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