quarta-feira, 21 de junho de 2023

CONTO: A HISTÓRIA DE BLIMUNDO (FRAGMENTO) - RECONTADO POR LEÃO LOPES - COM GABARITO

 CONTO: A história de Blimundo

       Recontado por Leão Lopes

[...]

          Era uma vez um boi. Um boi grande, um boiona que se chamava Blimundo.

Blimundo, filho das rochas, possante, calmo e sabedor do mundo, amante da vida e da liberdade, era boi respeitado por todos os seus iguais, e não só pelas ribeiras, pelos campos e pelas vertiginosas montanhas. Amigo da harmonia em todas as coisas, Blimundo nada fazia que contrariasse a justiça e a ordem natural da evolução da vida. Tinha seu próprio entendimento do mundo e da liberdade, que defendia no cotidiano, pelos picos, pelas bordeiras e assomadas.

          Senhor Rei, ao saber da existência de Blimundo, do seu comportamento, de suas convicções e atitudes, que considerava irreverentes em relação às leis estabelecidas no seu reino, não ficou nada tranquilo. Não admitia que boi algum do seu território fugisse à obediência, às demandas dele, senhor todo-poderoso, dono das ribeiras, dos campos, dos lombos e das vertiginosas montanhas, dono de todas as águas e dos trapiches.

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        — Que boi julgava ser Blimundo, que procurava, com o seu exemplo, tornar irreverentes ao Rei todos os outros bois do território real? Que bicho depois faria os trabalhos do campo, faria andar o trapiche […], daria carne para o sustento à grande e pomposa mesa real? Ainda por cima, ele não queria vagabundos no seu reinado, revoltosos e bichos que não acatassem as ordens!

Um Rei é um Rei

Um boi é um boi!

         — E, se mando cortar a cabeça de um boi para o meu jantar, têm que me obedecer! — pensava alto e irritado o Senhor Rei. — Guarda, reúne os soldados, e que tragam o Blimundo, vivo ou morto! — ordenou o Rei.

Saiu a tropa armada de machados, machadins, coletes de ferro, capacete, arpões e afins, espumando, na sede de cumprir a tão real missão.

Subiram rochas, desceram ribeiras, rebuscaram campos em busca de Blimundo. A um dado momento da penosa busca, e de um lombo estratégico, este os detectou e aguardou. No momento decisivo, pensando os heróis do reino – dentro de suas armaduras de ferro e cravo – apanhar o possante, calmo e sabedor do mundo, amante da vida e da liberdade que era Blimundo, não tiveram tempo para mais tarde saber contar como foi.

Blimundo deu conta deles num estilhaçar de machados, machadins, coletes de ferro, capacetes, arpões e afins, com a sabedoria que aprendera das rochas!

Não descansou o Senhor Rei quando soube da notícia.

Vendo que não podia arriscar mais do que restava dos seus heroicos soldados, reuniu os homens valentes do reino e disse:

— Súditos! Eu sou o vosso Rei! O reino está ameaçado por Blimundo, que, arrastando na sua irreverência outros bois, dignos servidores do reino, poderá nos levar à miséria e à fome! A conduta desse Blimundo é verdadeiramente perigosa para a nossa sobrevivência nesses lombos e nessas ribeiras! Quem depois poderá reinar quando todos os bois tomarem a liberdade? Quem fará andar os trapiches? De quem virá a carne para a minha mesa? De quem? Respondam! De quem? Morte ao Blimundo e viva o Rei! — berrou o Senhor Rei.

— Viva o Senhor Rei! — secundaram os súditos.

Estes, fiéis servidores do Rei, obedientes e tementes ao Senhor, armaram-se de facas e facões, paus e forquilhas, fisgas e enxadas e saíram à cata de Blimundo, o possante, calmo e sabedor do mundo, amante da vida e da liberdade, amigo da harmonia entre todas as coisas.

Os súditos, ingênuos e obedientes, galgaram lombos, desceram encostas, palmilharam ribeiras, revolveram furnas até que encontraram o procurado.

Fonte da imagem- https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhp6cjFdyf6zFSMoyBtO5BeUSZWwJq5Y4JzvfaCXGMq3FrLeAcFVC3vs-G2Y1zvAbd2jEWnEZpgaK2kTQ0sfS9FhYa9FJGpxA7Kjk1xCnaF3s4SRV6dkiSEA29XhZ6ySMCWY5oD0NKZ2wgV5KbYshdDSAqXrmWy6RKCYGxQmmnRFnzH4gPI8G9vQ0stgL4/s1600/blimundo.jpg


Blimundo já os esperava. Sabia que, pela liberdade que tanto amava, teria que pagar tão alto preço e que o Senhor Rei não desistiria do intento de o transformar, vivo ou morto, num boi subserviente e sem personalidade, num boi que tivesse que acatar as demandas e os abusos do Rei sem se indignar, sem se revoltar.

Deixou os súditos se aproximar e esperou pelo ataque. Foi um encontro rápido e decisivo. Não ficou inteiro um só homem valente do reino, nem faca nem facão, nem pau nem forquilha, nem fisga nem enxada em postura de vir a contar como foi.

Blimundo respirou fundo e angustiado, afastando-se da cena.

Quando chegaram as notícias ao palácio, o Senhor Rei caiu em desespero.

Não tinha mais estratégias de combate ao Blimundo e não podia suportar a ideia de tão perigoso desafiador à solta. É nisto que lhe chega a notícia de um rapazinho criado no borralho de cinza que lhe promete ir buscar Blimundo.

— Quero vê-lo já! — ordenou o Senhor Rei.

Trouxeram o rapaz, e o Rei, espantando, pergunta:

— Tu, menino? Trazer Blimundo? Esse maldito que me desfez um exército e os melhores homens do reino? Como podes trazer-me Blimundo?

— Senhor Rei: dá-me um cavaquinho, um bli d’água e uma bolsa de prentém que eu trago Blimundo. E, como recompensa, quero metade da riqueza do reino e sua codizinha, para com ela casar!

E assim fez o Rei, comprometendo-se com a recompensa.

Com o seu saco de prentém, bli d’água a tiracolo e seu cavaquinho ao peito, sai o rapazinho do palácio, rumo aos campos e às ribeiras, os lombos e as furnas, os picos e atalhos, à cata de Blimundo com uma canção na boca, cantada com todo o sentimento e sem parar:

Oh, Blimundo

Senhor Rei mendé-me bem’shcóbe

Pa bô bé casá q’Vequinha de Praia

Tim-tim ne nhê cavequim

Cop-cop ne nhê prentém

Glu-glu ne nhê bli d’ága

Oh, Blimundo

Senhor Rei mendé-me bem’shcóbe

Pa bô bé casá q‘Vequinha de Praia

Tim-tim ne nhê cavequim

Cop-cop ne nhê prentém

Glu-glu ne nhê bli d’ága

A dada altura, Blimundo, do seu esconderijo, ouve a canção que o encanta.

Levanta as grandes orelhas e se põe à escuta com mais atenção. Quando entende bem a mensagem, deixa o rapazinho se aproximar, pedindo:

— Canta, canta outra vez! Toca o teu cavaquinho!

Oh, Blimundo

Senhor Rei mendé-me bem’shcóbe

Pa bô bé casá q’Vequinha de Praia

Tim-tim ne nhê cavequim

Cop-cop ne nhê prentém

Glu-glu ne nhê bli d’ága

— É verdade que eu vou casar com a Vaquinha de Praia? Não me estás a enganar?

— ingadou Blimundo.

 — Não! — respondeu o rapaz.

— Então vou contigo!

O rapaz pede a Blimundo que se abaixe todo e que o deixe ir montado, porque

o caminho é longo e duro. Blimundo obedece, mas exige:

— Mas... vais a cantar! É tão bonita essa canção...

E assim foram:

Oh, Blimundo

Senhor Rei mendé-me bem’shcóbe

Pa bô bé casá q’Vequinha de Praia

Tim-tim ne nhê cavequim

Cop-cop ne nhê prentém

Glu-glu ne nhê bli d’ága

Oh, Blimundo

Senhor Rei mandou buscar-te

Porque vais casar com a

Vaquinha de Praia

Tim-tim no meu cavaquinho

Cop-cop no meu milho torrado

Glu-glu na minha cabaça de água

De vez em quando, Blimundo perguntava:

— Mas... eu vou casar com a Vaquinha de Praia?

Foram andando, andando, em direção ao

palácio do Rei.

— Não pares de cantar! Canta mais perto do

meu ouvido! — pedia Blimundo.

Oh, Blimundo

Senhor Rei mendé-me bem’shcóbe

Pa bô bé casá q’Vequinha de Praia

Tim-tim ne nhê cavequim

Cop-cop ne nhê prentém

Glu-glu ne nhê bli d’ága

Entretanto, o Senhor Rei, pelo sim, pelo não, e com medo do que viesse a acontecer, mandara a tropa colocar-se em pontos estratégicos do lugar real e ordenara aos súditos que ninguém se mostrasse quando o rapaz aparecesse com Blimundo.

Já o Sol tinha passado para a outra ribeira, quando à entrada do lugar real surgiu Blimundo, pachorrento e feliz, e sobre ele o rapazinho com o seu cavaquinho.

Senhor Rei que esperava no sobrado não queria acreditar no que estava vendo. Impressionado pela grandeza de Blimundo, perguntava a si mesmo como conseguira o rapaz trazer-lhe tão arrostado e temido personagem que muitas noites de sono lhe roubara e muitos estragos ao reino causara.

Blimundo seguiu pela rua principal crivado de olhares de medo e respeito através das frestas das portas e janelas, devidamente trancadas.

Só um amor; só uma velha paixão; só essa grande força arrastaria Blimundo, feliz, calmo e confiante, pela rua que o levaria a enfrentar o Rei, que sempre o perseguira pelos ideais de amor e de liberdade.

Só a correspondente paixão da Vaquinha de Praia e a enorme vontade de a libertar das garras do Rei o levaram a enfrentar com suficiente tranquilidade esse chamado do dono de todas as terras, águas, ribeiras, atalhos, furnas e campos, rochas e lombos.

Chegados junto à entrada do palácio, o rapazinho pediu a Blimundo que o deixasse descer e que o esperasse, pois tinha que pedir o barbeiro ao Rei para lhe fazer a barba antes de o apresentar à Vaquinha de Praia.

O rapaz entra pelo palácio adentro e explica ao Rei o seu plano. Veio com ele um barbeiro com seus apetrechos. Atrás, o Senhor Rei, ansioso pelo desfecho do plano concebido pelo rapaz.

Blimundo, paciente, deixa-se envolver pela toalha e ensaboar, enquanto o Rei e o rapaz assistem com ar triunfante à cerimônia.

Blimundo fecha os olhos imaginando a impaciência da Vaquinha de Praia esperando, enquanto o pincel de barba envolve deliciosamente, com espuma branca e fresca, a sua barba selvagem.

Blimundo deixa-se embalar quase como num sonho, e, num ápice, com um terrível e certeiro golpe de navalha do barbeiro-carrasco, fica o plano consumado. É traiçoeiramente assassinado Blimundo. Seu corpo cai para um lado, e, num estrebuchar de revolta e violência, uma bela patada traseira de toneladas de força atinge o Senhor Rei, que perde aí o seu reinado.

O rapazinho e o barbeiro fogem despavoridos, mas jamais iriam esquecer o último olhar de revolta de Blimundo, o último olhar que os havia de perseguir eternamente.

Blimundo cantou no seu derradeiro fôlego. Cantou na agonia do momento a sua última canção, profunda e condenadora, bela e terrivelmente melancólica, que jamais deixaria de condenar seus assassinos.

E, no grande banquete após a tragédia, cada bocado de carne no prato dos convivas levava o sabor de revolta e da bela e condenadora canção que imortalizaria Blimundo, esse sabedor do mundo e das coisas, amante da vida e da liberdade, amigo da beleza e da harmonia e que nada fazia que contrariasse a justiça e as leis da natureza.

Esta é a história de Blimundo.

LOPES, Leão. A história de Blimundo In: GONÇALVES, Zetho Cunha et al. Dima, o passarinho que criou o mundo: mitos, contos e lendas dos países de língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2013. E-book.

Fonte: Livro – Português – Conexão e Uso -7º Ano – Dileta Delmanto/Laiz B. de Carvalho, Editora Saraiva, 1ª ed., São Paulo, 2018.p.166-172.

Vocabulário

arrostado: que desafia ou afronta o adversário.

fisga: atiradeira, estilingue.

borralho de cinza: origem pobre.

pachorrento: lento, calmo.

boiona (crioulo cabo-verdiano): boi muito grande.

bordeiras (crioulo): caminhos íngremes.

assomadas (crioulo): cumes.

lombos (crioulo): elevações no terreno.

machadins (crioulo): machadinhas, pequenos machados.

secundaram: responderam.

fisgas: atiradeiras, estilingues.

furnas: grutas.

Entendendo o texto

01. O narrador conta que Blimundo era calmo, sabedor das coisas do mundo, amante da vida e da liberdade, amigo da harmonia e da justiça e respeitado por todos os seus iguais.

a)   Como Blimundo era visto pelo Rei?

O Rei o considerava desobediente, revoltado, vagabundo e desrespeitoso.

b) Releia estes trechos da fala atribuída ao Rei, dirigindo-se a seus súditos.

A conduta desse Blimundo é verdadeiramente perigosa para a nossa sobrevivência [...]. Quem fará andar os trapiches? De quem virá a carne para a minha mesa?

 Considere a descrição de Blimundo e essa fala do Rei. Que tipo de comportamento o Rei espera de Blimundo?

O Rei espera um comportamento subserviente, que Blimundo obedeça a ordens, que trabalhe sem descanso e que sacrifique sua vida, se necessário, para alimentar os seres humanos.

02. A figura do boi Blimundo, na tradição oral de Cabo Verde, representa alguns ideais e é considerada uma alegoria de resistência à escravatura e ao poder absoluto de um rei autoritário. Quais são os ideais que Blimundo representa?

Espera-se que os alunos reconheçam em Blimundo o desejo de liberdade, de justiça e igualdade para todos.

03. No conto, apenas o boi, um animal, tem nome; os seres humanos são mencionados por sua designação genérica: o Rei, o rapazinho, o barbeiro, os soldados. Por que isso acontece?

Ao nomear um indivíduo mesmo que se trate, como no conto, de um boi, cria-se uma identidade para ele. Com a identidade cria-se também empatia.

É um recurso que aproxima o leitor do personagem.

04. Releia o primeiro e os últimos parágrafos do texto. Neles, o narrador repete uma mesma informação sobre Blimundo.

a) Que informações se repetem?

O narrador descreve Blimundo como um amante da vida e da liberdade, amigo da beleza e da harmonia, e diz que nada fazia que contrariasse a justiça e as leis da natureza.

b)   Que efeito essa repetição provoca no texto?

A repetição da descrição, que também acontece em outros trechos, enfatiza o caráter de Blimundo, reforçando os ideais que ele representa. 

05. A descrição do cenário é importante para o desenvolvimento da história de Blimundo.

a) Como o cenário é caracterizado?

Como um ambiente cheio de terrenos íngremes, formados por ribeiras, campos, vertiginosas montanhas, e com a presença dos trapiches.

           b)De que forma esse cenário contribui para acompanharmos o desenvolvimento da história?

O cenário mostra o alcance do poder do Rei na história e a trajetória de Blimundo, que caminha por lugares hostis, se mantém escondido e a salvo dos que o perseguem.

06. Depois de tentativas frustradas de capturar Blimundo, qual foi o plano proposto pelo personagem jovem para iludir Blimundo e levá-lo até o Rei?

Disse que o levaria para casar com a Vaquinha que ele amava.

07. Releia o texto observando os itens a seguir.

• Expressões utilizadas no início do texto.

• Local onde ocorre a ação.

• Tempo em que ocorre a ação.

• Caracterização dos personagens.

• Tipo de narrador.

• O autor do texto.

a) Qual é a expressão utilizada no início do texto?

    A expressão usada no início do texto é “Era uma vez...”.

           b)Onde ocorre a ação? O local é indeterminado.

               O local é indeterminado.

c)   Quando ocorre a ação? A ação ocorre em um tempo indeterminado.

A ação ocorre em um tempo indeterminado.

d) O narrador participa da ação?

     O narrador conta a história como quem a ouviu contar,

sem participar dos fatos narrados.

e) Em qual pessoa verbal (foco narrativo) o texto é narrado?

     O texto é narrado em 3ª pessoa.

f) Quem é o autor do texto?

    Essa versão é contada pelo escritor Leão Lopes; no

entanto, ele não criou a história, somente a recolheu da

tradição oral de Cabo Verde.

08. Os contos populares sempre motivam alguma reflexão. Sobre o que esse conto faz você refletir?

Possibilidades: Líderes poderosos podem se tornar opressores. Quem ama a liberdade pode se tornar uma ameaça para os poderosos.

09. Você vê alguma relação entre o ensinamento desse conto, de origem africana, com a sua realidade no Brasil? Justifique sua resposta.

Resposta pessoal. Espera-se que os alunos compreendam o caráter universal dos ensinamentos de contos populares, independentemente de sua origem ou de seus personagens

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