quinta-feira, 22 de junho de 2023

CONTO: F DE FRUSTAÇÃO - MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

 CONTO: F de Frustração

               Moacyr Scliar

     Viajar, para muitos, é a grande realização; não viajar, para muitos, é a grande frustração.

     Havia um casal que tinha uma inveja terrível dos amigos turistas - especialmente dos que faziam tu­rismo no exterior: Ele, pequeno funcionário de uma grande firma, ela, professora primária, jamais tinham conseguido juntar o suficiente para viajar. Quando dava para as prestações das passagens não chegava para os dólares, e vice-versa; e assim, ano após ano, acabavam ficando em casa. Economizavam, compravam menos roupa, andavam só de ônibus, comiam menos - mas não conseguiam viajar para o exterior. Às vezes passavam uns dias na praia. E era tudo.

Fonte da imagem - https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi70C54UBDdah8vvjAUdjkRs6s2TUCh9Mr4JzbcwZNvwwzQh539qiTYx-gvMg_9lAbsPj68Zah0dT-AumfoEwpLtBHkCCxhYaoaIQR6rDtVDRFqe_J-NXCYNfYOJkYvmoBzNmh_1psVTWcAfbF3kU4XnalWXUU9ACBq__ilXcZ2rJEeN-HLEBXVYZ0ZTBw/s320/VIAGEM.jpg


Contudo, tamanha era a vontade que tinham de contar para os amigos sobre as maravilhas da Euro­pa, que acabaram bolando um plano. Todos os anos, no fim de janeiro, telefonavam aos amigos: estavam se despedindo, viajavam para o Velho Mundo. De fato, alguns dias depois começavam a chegar postais de cidades europeias, Roma, Veneza, Florença; e ao fim de um mês eles estavam de volta, convidando os amigos para verem os slides da viagem. E as coisas interessantes que contavam! Até dividiam os as­suntos: a ele cabia comentar os hotéis, os serviços aéreos, a cotação das moedas, e também o lado pito­resco das viagens; a ela tocava o lado erudito: comentários sobre os museus e locais históricos, peças teatrais que tinham visto. O filho, de dez anos, não contava nada, mas confirmava tudo; e suspirava quando os pais diziam:

    - Como fomos felizes em Florença!

     O que os amigos não conseguiam descobrir era de onde saíra o dinheiro para a viagem; um, mais indiscreto, chegou a perguntar. Os dois sorriram, misterio­sos, falaram numa herança e desconversaram.

     Depois é que ficou se sabendo.

     Não viajavam coisa alguma. Nem saíam da cidade. Ficavam trancados em casa durante todo o mês de férias. Ela ficava estudando os folhetos das compa­nhias de turismo, sobre - por exemplo - a cidade de Florença: a história de Florença, os museus de Florença, os monumentos de Florença. Ele, num peque­no laboratório fotográfico, montava slides, em que as imagens deles estavam superpostas a imagens de Florença. Escrevia os cartões-postais, colava neles selos usados com carimbos falsificados. Quanto ao menino, decorava as histórias contadas pelos pais para confirmá-las se necessário.

     Só saíam de casa tarde da noite. O menino, para fazer um pouco de exercício; ela, para fazer compras num supermercado distante; e ele, para depositar nas caixas de correspondência dos amigos os postais.

     Poderia ter durado muitos e muitos anos, esta história. Foi ela quem estragou tudo. Lá pelas tantas, cansou de ter marido pobre, que só lhe proporcionava excursões fingidas. Apaixonou-se por um piloto, que lhe prometeu muitas via­gens, para os lugares mais exóticos. E acabou pedindo divórcio.

     Beijaram-se pela última vez ao sair do escritório do advogado.

     - A verdade - disse ele - é que me diverti muito com a história toda.

     - Eu também me diverti muito - ela disse.

    - Fomos muito felizes em Florença - suspirou ele.

     - É verdade - ela disse, com lágrimas nos olhos. E prometeu-se que nunca mais iria a Florença.

 SCLIAR, Moacyr. Dicionário do viajante insólito. Porto Alegre L&PM, 1995 p. 29-31 © Herdeiros de Moacyr Scliar.

Fonte: Livro – Português – Conexão e Uso -7º Ano – Dileta Delmanto/Laiz B. de Carvalho, Editora Saraiva, 1ª ed., São Paulo, 2018.p.206-208.

EXPLORAÇÃO DO TEXTO

01.   O livro Dicionário do viajante insólito, em que se insere esse conto, é composto de várias histórias e apontamentos de um pretenso viajante. Como você associa o nome do conto ao do livro?

 Espera-se que os alunos respondam que, tendo no título do livro a palavra dicionário, é de se esperar que os contos e apontamentos sejam organizados em ordem alfabética.

     02. Qual é o assunto do conto? Explique.

É a história de um casal que tinha vontade de viajar, mas não possuía condições financeiras. Com inveja dos amigos, o casal elabora um plano: finge as viagens de férias, contando as histórias para os amigos e até enviando a eles cartões-postais.

     03. O que motivava o estranho comportamento do casal?

      A vontade de viajar e de impressionar os amigos.

     04. Um conto tem poucos personagens, espaço e tempo restritos e um só conflito.

     a) Qual é o conflito do conto?

        A imensa vontade de viajar e não ter dinheiro para tal.

     b) O tempo é restrito no conto? Por que o autor teria feito essa opção?

        Não. A história abrange um tempo mais longo para que o narrador acompanhe fatos que se repetiram durante anos.

    05. Agora, analise os personagens do conto.

     a) Como o narrador se refere a eles?

         O narrador se refere a seus personagens tratando-os por ele, ela, e o menino (ou filho).

     b) Em sua opinião, por que isso ocorre?

         Resposta pessoal. Espera-se que os alunos respondam que, pelo fato de o conto narrar um acontecimento insólito, o que importa é esse acontecimento e não os personagens que aparecem na narrativa. Por esse motivo é que não são nomeados.

    06. Um conto se organiza em torno de um enredo. Localize os fatos que acontecem em cada uma das partes a seguir.

     a) Introdução

         O narrador apresenta o casal e fala da vontade deles de viajar pelo mundo.

    b) Ponto de mudança

        O casal resolve pôr em pratica um plano.

     c) Desenvolvimento

         O casal e o filho ficam escondidos em casa preparando-se para impactar os amigos com suas recordações de viagem; a mulher estuda pontos turísticos das cidades para onde viajariam; o marido prepara slides com imagens da viagem e falsifica selos para colocar nos cartões-postais; o filho apenas confirma aas historias contadas pelos pais; terminadas  as férias inventadas , o casal retorna e chama os amigos para contar suas aventuras nas cidades que fingiram visitar.

      d) Desfecho

         A mulher se apaixona por um piloto de avião que lhe promete viagens reais. Então separa-se do marido e termina a farsa..

    07. Você acha que o desfecho do conto surpreende o leitor? Por quê?

     Resposta pessoal. Possibilidade: Sim, pois com o desenvolvimento da narrativa, o leitor pode pensar que a história se encaminha para um final feliz (a família consegue fazer uma viagem de verdade) ou infeliz (a farsa é descoberta). Ao longo da narrativa, não há nada que leve o leitor a pensar que a mulher se apaixonaria por um piloto e conseguiria viajar.

     08. Como você entendeu a última frase do conto?

       Resposta pessoal.  Possibilidade: A mulher, que tanto se divertira em viagens inventadas, preparando a farsa e o relato aos amigos, possivelmente se pergunta se seria possível se divertir tanto em viagens reais.

     09. O narrador apenas narra a história ou participa dela?

       Apenas narra a história, sem ter participação alguma nos acontecimentos expostos.

   10.  Ao final de cada página das histórias que constam no livro Dicionário do viajante insólito, o autor cita uma reflexão sobre viagens e o nome de quem a teria feito. Leia, a seguir, algumas delas e comente com o professor e os colegas aquela que você considera a que melhor se relaciona ao conto que você leu.

    a) Viajar é conversar com os séculos. (Descartes)

   b) viajar não é necessário, a não ser para imaginações limitadas. (Colette)

   c) O turista não chega a conhecer as pessoas. Ele julga um lugar pelas diversões que oferece. (André Maurois)

   d) Só começamos a gostar de uma viagem três semanas depois de ter voltado. (George Ade)

   Resposta pessoal.

Recursos expressivos

01. Releia este trecho do conto.

          Viajar, para muitos, é a grande realização; não viajar, para muitos, é a grande frustração.

a)   Nessa frase, o narrador aproxima ideias semelhantes ou opostas entre si?

Aproxima ideias opostas.

b)   O narrador, nessa frase, utiliza uma figura de linguagem: a antítese. Leia a informação que está no quadro abaixo e, depois, responda:

Antítese é uma figura de linguagem que se caracteriza por opor duas ideias contrárias. Por exemplo: frio/quente; medo/coragem.

              Como a ideia de antítese é elaborada na frase?

             O narrador opõe a vontade de viajar e a frustração de não conseguir fazê-lo.

      02. Agora, releia o trecho seguinte e observe o uso dos tempos verbais.

Economizavam, compravam menos roupa, andavam só de ônibus, comiam menos – mas não conseguiam viajar para o exterior. Às vezes passavam uns dias na praia e era tudo.

a)   Que tempo verbal foi utilizado?

Pretérito imperfeito do indicativo.

b)   Com que intenção foi usado?

Foi usado para indicar ações habituais no passado.

03. Releia este trecho do terceiro parágrafo do conto.

      Contudo, tamanha era a vontade que tinham de contar aos amigos sobre as maravilhas da Europa, que acabaram bolando um plano. Todos os anos, no fim de janeiro, telefonavam aos amigos: estavam se despedindo, viajavam para o Velho Mundo. De fato, alguns dias depois começavam a chegar postais das cidades europeias, Roma, Veneza, Florença; e ao fim de um mês eles estavam de volta, convidando os amigos para verem os slides da viagem.

Que palavras ou expressões indicam a progressão temporal da narrativa?

Todos os anos, no fim de janeiro, alguns dias depois, no fim de um mês.

04. Adjetivos e advérbios são muito importantes em textos narrativos como o conto. Leia estes fragmentos e preste atenção aos adjetivos destacados.

Fragmento 1

Lá pelas tantas, cansou de ter marido pobre, que só lhe proporcionava excursões fingidas. Apaixonou-se por um piloto, que lhe prometeu muitas viagens, para os lugares mais exóticos.

Fragmento 2

Até dividiam os assuntos: a ele cabia comentar os hotéis, os serviços aéreos, a cotação das moedas, e também o lado pitoresco das viagens; a ela tocava o lado erudito: comentários sobre os museus e locais históricos, peças teatrais que tinham visto.

a)   Quais dos adjetivos destacados têm a função de qualificadores (descritivos, objetivos)?

aéreos, históricos, erudito, teatrais

b)   E quais podem ser considerados avaliadores (manifestam opinião, subjetivos)?

fingidas, pobre, exóticos, pitoresco

 

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