sábado, 5 de novembro de 2022

CRÔNICA: O NASCIMENTO DA CRÔNICA - MACHADO DE ASSIS - COM GABARITO

 Crônica: O nascimento da crônica

               Machado de Assis

        Há um meio certo de começar a crônica por uma trivialidade. É dizer: Que calor! Que desenfreado calor! Diz-se isto, agitando as pontas do lenço, bufando como um touro, ou simplesmente sacudindo a sobrecasaca. Resvala-se do calor aos fenômenos atmosféricos, fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e La glace est rompue; está começada a crônica.

        Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras. Antes de Esdras, antes de Moisés, antes de Abraão, Isaque e Jacó, antes mesmo de Noé, houve calor e crônicas. No paraíso é provável, é certo que o calor era mediano, e não é prova do contrário o fato de Adão andar nu. Adão andava nu por duas razões, uma capital e outra provincial. A primeira é que não havia alfaiates, não havia sequer casimiras; a segunda é que, ainda havendo-os, Adão andava baldo ao naipe. Digo que esta razão é provincial, porque as nossas províncias estão nas circunstâncias do primeiro homem.

        Quando a fatal curiosidade de Eva fez-lhes perder o paraíso, cessou, com essa degradação, a vantagem de uma temperatura igual e agradável. Nasceu o calor e o inverno; vieram as neves, os tufões, as secas, todo o cortejo de males, distribuídos pelos doze meses do ano.

        Não posso dizer positivamente em que ano nasceu a crônica; mas há toda a probabilidade de crer que foi coetânea das primeiras duas vizinhas. Essas vizinhas, entre o jantar e a merenda, sentaram-se à porta, para debicar os sucessos do dia. Provavelmente começaram a lastimar-se do calor. Uma dia que não pudera comer ao jantar, outra que tinha a camisa mais ensopando que as ervas que comera. Passar das ervas às plantações do morador fronteiro, e logo às tropelias amatórias do dito morador, e ao resto, era a coisa mais fácil, natural e possível do mundo. Eis a origem da crônica.

        Que eu, sabedor ou conjeturador de tão alta prosápia, queira repetir o meio de que lançaram mãos as duas avós do cronista, é realmente cometer uma trivialidade; e contudo, leitor, seria difícil falar desta quinzena sem dar à canícula o lugar de honra que lhe compete. Seria; mas eu dispensarei esse meio quase tão velho como o mundo, para somente dizer que a verdade mais incontestável que achei debaixo do sol é que ninguém se deve queixar, porque cada pessoa é sempre mais feliz do que outra.

        Não afirmo sem prova.

        Fui há dias a um cemitério, a um enterro, logo de manhã, num dia ardente como todos os diabos e suas respectivas habitações. Em volta de mim ouvia o estribilho geral: que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!

        Íamos em carros! Apeamo-nos à porta do cemitério e caminhamos um longo pedaço. O sol das onze horas batia de chapa em todos nós; mas sem tirarmos os chapéus, abríamos os de sol e seguíamos a suar até o lugar onde devia verificar-se o enterramento. Naquele lugar esbarramos com seis ou oito homens ocupados em abrir covas: estavam de cabeça descoberta, a erguer e fazer cair a enxada. Nós enterramos o morto, voltamos nos carros, c dar às nossas casas ou repartições. E eles? Lá os achamos, lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar com a enxada. Se o sol nos fazia mal, que não faria àqueles pobres-diabos, durante todas as horas quentes do dia?

SANTOS, Joaquim Ferreira dos (Org.). As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 27.

Fonte: Língua Portuguesa – Ensino Médio – 2° ano. Caderno 4 – 1ª edição – 1ª impressão – Maxiprint Editora – São Paulo, 2018. p. 40-2.

Entendendo a crônica:

01 – O eu da crônica afirma que há uma forma correta para se começar uma crônica: por meio de uma trivialidade. Em seguida, ele cita alguns exemplos que confirmam o seu ponto de vista. Analise o que foi dito e os exemplos apontados e explique o que ele quis dizer.

      Ao afirmar que uma crônica nasce da trivialidade, o eu cronista afirma que esse gênero nasce a partir de temas simples, de situações cotidianas, corriqueiras, como uma conversa sobre o clima, por exemplo, que é o que ele cita.

02 – Apesar de ser um texto escrito com uma linguagem mais aprimorada, própria da época e do estilo do autor, há a intenção, por parte do eu do cronista, de estabelecer uma aproximação com o leitor. Como isso acontece? Explique.

      De fato, trata-se de um texto escrito por um autor que perpassou o século XIX e o início do século XX, com uma escrita rebuscada e um vocabulário mais erudito. Entretanto, há a tentativa de aproximação com o leitor, especialmente por meio dos vocativos estabelecidos ao longo do texto, com o intuito de colocar esse leitor no meio das discussões, como por exemplo quando se observa o seguinte trecho: “Mas, leitor amigo”.

03 – Na tentativa de estabelecer a origem da crônica, o eu do cronista passa por algumas épocas distintas, apontando o calor como o assunto central para o nascimento desse gênero. Aponte as personagens destacadas, ao longo do texto, que confirmam essa ideia, apresentando a associação feita entre as personagens e o calor.

      Primeiro, o eu do cronista cita Adão e Eva, alegando que, quando Eva nos fez perder o paraíso, veio o calor e tudo mais que norteia o nosso cotidiano, como tufões, seca, etc. Depois, foi a vez das duas primeiras vizinhas que, ao iniciarem uma conversa trivial, após uma refeição, certamente, falaram do calor. Por fim, o eu do cronista vai a um cemitério, onde todos reclamam do calor, menos os coveiros responsáveis por abrir e por fechar as covas, debaixo de chuva ou de sol, e que não reclamam do sol escaldante naquele dia.

04 – Justifique o uso da pontuação destacada nos exemplos a seguir:

a)   “[...] fazem-se algumas conjeturas acerca do sol e da lua, outras sobre a febre amarela, manda-se um suspiro a Petrópolis, e ‘La glace est rompue’ [...]” (reticências dentro dos colchetes e aspas simples)

As reticências dentro dos colchetes indicam que alguma informação foi suprimida antes e depois do trecho citado. As aspas simples indicam uma expressão em língua estrangeira e, ainda, um trecho dentro de outro trecho citado.

b)   “Mas, leitor amigo, esse meio é mais velho ainda do que as crônicas, que apenas datam de Esdras.” (Vírgulas)

As duas primeiras vírgulas estão isolando um vocativo, uma expressão de chamamento. A última vírgula isola uma oração subordinada adjetiva explicativa.

c)   “[...] que calor! Que sol! É de rachar passarinho! É de fazer um homem doido!” (Pontos de exclamação)

Todos os pontos de exclamação, no trecho transcrito, indicam a expressão enfática de um sentimento, de uma sensação, no caso, o incômodo diante do calor excessivo.

d)   “E eles?” (Ponto de interrogação)

O ponto de interrogação foi usado para indicar uma pergunta direta.

05 – Por fim, observe que todos os excertos apresentados no exercício 4 figuram entre aspas. Explique o porquê dessa condição.

      Todos os trechos foram colocados entre aspas, pois foram retirados do texto “O nascimento da crônica”. Trata-se, portanto, de uma citação textual.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário