Conto: O gigante
(Fragmento)
Carlos
Heitor Cony
Se dava vexame nos números, até certo
ponto alegrava o pai com as redações. Havia um quadro na parede da sala que o
acompanhava desde os tempos de moleque em São Cristóvão, desde os tempos do tal
Absalão: um menino levando um feixe de lenha para uma casa à beira de um rio, a
fumaça saindo de uma chaminé, um quadro campestre de autor francês.
A pedido dele, fiz umas cinco ou seis
composições sobre aquilo, variando o nome do menino e do lugar, ora o menino
era órfão explorado pela madrasta cruel, ora o menino estava perdido na
floresta e encontrava uma casa na qual pediria abrigo, eu me virava como podia.
Ele corrigia aqui e ali, riscava
frases, colocava enormes interrogações nos trechos em que ficara faltando
alguma coisa, mas sempre deixava escrito a lápis azul um “muito bem”, um
“bravo”.
Deu-me certa vez um tema livre:
“Escreva sobre o que quiser. Cuidado com as concordâncias. Não se esqueça de
que os advérbios atraem os pronomes”.
Passei a tarde em cima de um caderno de
folhas muito brancas. A tinta que ele me destinara era vermelha, marca
Sardinha, como sempre. A pena era nova.
Eu não tinha um tema, olhava o papel
branco, nunca esqueci essa página em branco, sabia que seria gostoso escrever
alguma coisa nela. Não sabia o quê. Pensei em repetir a dose e recontar a
história do menino com o feixe de lenha, a casinha à beira do rio, a chaminé
deitando fumaça. Era um tema íntimo, recorrente, no qual me sentia à vontade.
De repente, tive vontade de escrever
sobre um gigante que vinha todas as noites e me trazia bombons e balas. Um
gigante que fazia coisas terríveis que me amedrontavam mas que eu gostava dele
porque, no final de tudo, ele sempre tirava de um alforje de couro um
brinquedo, e me mandava brincar. Um gigante que morava longe, onde moram o
vento e as coisas do mundo, que apesar de morar tão longe nunca deixava de
chegar, em horas estranhas, mas sempre chegando, porque sabia que eu precisava
dele.
O pai corrigiu fartamente, riscou com
traços vermelhos uma concordância abominável, substituiu um “medonho” por
“terrível” e achou razoável a composição. Disse que eu precisava ler o Zé de
Alencar, depois o Machado, mais tarde o Eça.
Pensou um pouco, desconfiou que nem Machado
nem Eça seriam apropriados a um seminarista, falou em Vieira, em Bernardes,
tinha uma edição de A nova floresta, falou, falou, falou – e não compreendeu.
Quase memória, quase
romance. São Paulo, Cia. das Letras, 1996.
Fonte: Português –
Linguagem & Participação, 5ª Série – MESQUITA, Roberto Melo/Martos, Cloder
Rivas – Ed. Saraiva, 1999, p. 234-6.
Entendendo o conto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Vexame: atitude desagradável, papelão.
·
Campestre: do campo.
·
Íntimo: próprio da pessoa, interior.
·
Recorrente: que acontece muitas vezes.
·
Alforje: espécie de bolsa de couro.
·
Fartamente: com fartura, abundantemente.
·
Abominável:
detestável.
02 – Quem são as personagens
do texto?
São: pai e filho.
03 – Qual o foco narrativo
utilizado no texto Procure um trecho que justifique sua resposta.
O texto é narrado
em primeira pessoa. “A pedido dele, fiz umas cinco ou seis composições sobre
aquilo...”; “Passei a tarde em cima de um caderno de folhas muito brancas”.
04 – Ao escrever várias
vezes sobre a mesma gravura, o menino revela algumas qualidades. Quais são
elas?
Ele era criativo
e esforçado.
05 – Por que o menino
demorou a escrever sobre o tema livre?
Resposta pessoal
do aluno.
06 – Como era a história que
o menino escreveu?
Era a história de
um gigante que vinha todas as noites e que trazia ao menino bombons e balas.
07 – Quem era na verdade o
gigante?
Era o pai do
menino.
08 – O que faz o pai diante do
texto do filho?
O pai corrigiu fartamente a linguagem e
achou razoável a composição, embora não tenha entendido o texto.
09 – O que o pai não
compreendeu?
O pai não
compreendeu que o gigante era ele próprio e que o filho precisava dele.
Muito bom, muito obrigada <3
ResponderExcluirVc é prof
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