Lya Luft
Uma importante empresa
financeira me chamou para falar com alguns clientes. Não sobre finanças, pois
eu os arruinaria, mas sobre algum tema "humano" – no meio da crise
queriam mudar de assunto. Uma sugestão de tema que me deram foi: "O que
esperamos de nossos filhos no futuro". Como acredito que pensar é
transgredir, falei sobre "o que estamos deixando para nossos filhos".
Acabamos nos dando muito bem, a excelente plateia estava cheia de dúvidas, como
a palestrante.
O mundo avança em
vertiginosas transformações, e não é só nas finanças ou economia mundiais: ele
se transforma a todo momento em nossos usos e costumes, na vida, no trabalho,
nos governos, na família, nos modelos que nos são apresentados, em nossa
capacidade de fazer descobertas, no progresso e na decadência.
O que nos enche de
perplexidade, quando o assunto é filhos, é a parte de tudo isso que não
conseguimos controlar, que é maior do que a outra. Se há 100 anos a vida era
mais previsível – o pai mandava e o resto da família obedecia, o professor e o
médico tinham autoridade absoluta, os governantes eram nossos heróis e havia
trilhas fixas a ser seguidas ou seríamos considerados desviados –, hoje ser
diferente pode dar status.
Gosto de pensar na
perplexidade quanto ao legado que podemos deixar no que depende de nós. Que não
é nem aquele legado alardeado por nossos pais – a educação e o preparo – nem é
o valor em dinheiro ou bens, que se evaporam ao primeiro vendaval nas finanças
ou na política. A mim me interessam outros bens, outros valores, os valores
morais. O termo "morais" faz arquear sobrancelhas, cheira a
religiosidade ou a moralismo, a preconceito de fariseu. Mas não é disso que
falo: moralidade não é moralismo, e moral todos temos de ter. A gente gosta de
dizer que está dando valores aos filhos. Pergunto: que valores? Morais, ora,
decência, ética, trabalho, justiça social, por exemplo. É ótimo passar aos
filhos o senso de alguma justiça social, mas então a gente indaga: você paga a
sua empregada o mínimo que a lei exige ou o máximo que você pode? Penso que a
maioria de nós responderia não à segunda parte da pergunta. Então, acaba já
toda a conversa sobre justiça social, pois tudo ainda começa em casa e bem
antes da escola.
Não adianta falar em
ética, se vasculho bolsos e gavetas de meus filhos, se escuto atrás da porta ou
na extensão do telefone – a não ser que a ameaça das drogas justifique essa
atitude. Não adianta falar de justiça, se trato miseravelmente meus
funcionários. Não se pode falar em decência, se pulamos a cerca deslavadamente,
quem sabe até nos fanfarronando diante dos filhos homens: ah, o velho aqui
ainda pode! Nem se deve pensar em respeito, se desrespeitamos quem nos rodeia,
e isso vai dos empregados ao parceiro ou parceira, passando pelos filhos, é
claro. Se sou tirana, egoísta, bruta; se sou tola, fútil, metida a gatinha
gostosa; se vivo acima das minhas possibilidades e ensino isso aos meus filhos,
o efeito sobre a moral deles e sua visão da vida vai ser um desastre.
Temos então de ser
modelos? Suprema chatice. Não, não temos de ser modelos: nós somos aquele
primeiro modelo que crianças recebem e assimilam, e isso passa pelo ar, pelos
poros, pelas palavras, silêncios e posturas. Gosto da historinha verdadeira de
quando, esperando alguém no aeroporto, vi a meu lado uma jovem mãe com sua
filhinha de uns 5 anos, lindas e alegres. De repente, olhando para as pessoas
que chegavam atrás dos grandes vidros, a perfumada mãe disse à pequena:
"Olha ali o boca-aberta do seu pai".
Nessa frase, que ela
jamais imaginaria repetida num artigo de revista ou em palestras pelo país, a
moça definia seu ambiente familiar. Assim se definem ambientes na escola, no
trabalho, nos governos, no mundo. Em casa, para começar. O palavrório sobre o
que legaremos aos nossos filhos será vazio, se nossas atitudes forem egoístas,
burras, grosseiras ou maliciosas. O resto é conversa fiada para a qual, neste
tempo de graves assuntos, não temos tempo.
LUFT, Lya. Legado aos nossos filhos. Veja,
São Paulo, n. 2082, p. 24, 15 out. 2008.
Entendendo o texto:
01 – Com base na leitura, é CORRETO afirmar que a autora:
A) foi convidada a falar sobre tema relativo à área de atuação da
empresa.
B) fugiu ao tema sugerido com receio de causar problemas aos clientes da
empresa.
C) esclareceu plenamente as dúvidas da plateia que assistiu à palestra.
D)
alterou o tema sugerido visando a ajustá-lo ao enfoque pessoal que pretendia
dar.
02 – Sobre as vertiginosas transformações referidas pela autora no, é
CORRETO afirmar que, segundo o texto, elas:
A) decorrem do modelo econômico que vem sendo adotado.
B) levam inevitavelmente a um mundo melhor e mais harmônico.
C)
se processam tanto no âmbito individual e familiar como no social e coletivo.
D) se devem à ambição desmedida e egoísta do homem na busca do conforto
pessoal.
03 – Com base no texto, considere as afirmativas abaixo:
I – A vida há 100 anos era mais previsível e mais fácil de ser
controlada do que a atual.
II – No mundo atual, a sociedade pode assumir uma posição favorável com
relação aos que se desviam da norma.
III – A relação entre pais e filhos não
é tão boa como antes, o que
deixa perplexos os pais. Está CORRETO
o que se afirma em:
A)
I e II apenas.
B) I e III, apenas.
C) II e III, apenas.
D) I, II e III.
04 – “A mim me interessam outros bens, outros valores, os valores
morais.” Assinale a alternativa que NÃO apresenta um desses valores morais
referidos pela autora:
A)
Preparo intelectual.
B) Justiça social.
C) Decência.
D) Trabalho.
05 – Com base na leitura, é CORRETO afirmar que o comportamento dos pais:
A) se coaduna com o que falam aos filhos.
B)
contradiz o que falam aos filhos.
C) ratifica o que falam aos filhos.
D) consolida o que falam aos filhos.
06 – “Temos então de ser modelos? Suprema chatice. Não, não temos
de ser modelos: nós somos aquele primeiro modelo que crianças recebem e
assimilam [...].” A passagem acima revela que os pais:
A) podem delegar para outros agentes a enfadonha tarefa de educar
os filhos.
B) devem conversar muito com os filhos para lhes servir de modelo.
C)
constituem necessariamente o modelo inicial que forja os caracteres dos filhos.
D) precisam de uma educação formal específica que os habilite a
educar os filhos.
07 – Com base na leitura do texto, é CORRETO afirmar que a linguagem que de
fato determina o legado a ser passado aos nossos filhos é a linguagem:
A)
das ações, respaldadas por valores morais.
B) das palavras, consubstanciadas em lições morais.
C) dos ensinamentos religiosos, reiterados nas pregações morais.
D) das políticas públicas,
apoiadas em princípios morais.
08 – “Como acredito que pensar é transgredir, falei sobre "o que estamos
deixando para nossos filhos". Acabamos nos dando muito bem, a excelente
plateia estava cheia de dúvidas, como a palestrante.” Na passagem acima, o
conectivo como pode ser substituído, sem que haja alteração substancial de
sentido, respectivamente por:
A) Já que / em conformidade com.
B)
Visto que / tal qual.
C) Quanto mais / do mesmo modo que.
D) Uma vez que / segundo.
09 – “[...] havia trilhas fixas a ser seguidas [...].” Das alterações
processadas na passagem acima, assinale aquela que CONTRARIA a norma padrão da
língua, no que se refere à concordância verbal:
A) Deveriam existir trilhas fixas a ser seguidas.
B)
Parece que sempre houveram trilhas fixas a ser seguidas.
C) Creio que ainda vão faltar trilhas fixas a ser seguidas.
D) Espero que possam aparecer trilhas fixas a ser seguidas.