LITERATURA - A PATA DA GAZELA
JOSÉ DE ALENCAR
[...]
Estava parada
na rua da Quitanda, próximo à da Assembleia, uma linda vitória,
puxada por soberbos cavalos do Cabo.
Dentro do
carro havia duas moças; uma delas, alta e esbelta, tinha uma presença
encantadora; a outra, de pequena estatura, muito delicada de talhe, era talvez
mais linda que sua companheira.
Estavam ambas
elegantemente vestidas, e conversavam a respeito das compras que já tinham
realizado ou das que ainda pretendiam fazer
- Daqui aonde
vamos? Perguntou a mais baixa, vestida de roxo-claro.
- Ao
escritório de papai: talvez ele queira vir conosco. Na volta passaremos pela
Rua do Ouvidor, respondeu a mais esbelta, cujo talhe era desenhado por um
roupão cinzento.
O vestido roxo
debruçou-se de modo a olhar para fora, no sentido contrário àquele em que
seguia o carro, enquanto o roupão, recostando-se nas almofadas, consultava uma
carteirinha de lembranças, onde naturalmente escrevera a nota de suas
encomendas.
- O lacaio ficou-se de uma vez! Disse o vestido roxo com
um movimento de impaciência.
- É verdade!
Respondeu distraidamente a companheira.
Estas
palavras confirmavam o que aliás indicava o simples aspecto da carruagem: as
senhoras estavam à espera do lacaio, mandado a algum ponto próximo. A
impaciência da moça de vestido roxo era partilhada pelos fogosos cavalos, que
dificilmente conseguia sofrear um cocheiro agaloado.
Depois de
alguns momentos de espera, sobressaltou-se o roupão cinzento, e conchegando-se
mais às almofadas, como para ocultar-se no fundo da carruagem, murmurou:
- Laura! ...
Laura! ...
E como sua
amiga não a ouvisse, puxou-lhe pela manga.
- O que é, Amélia?
- Não vês?
Aquele moço que está ali defronte nos olhando.
- Que tem
isto? Disse Laura sorrindo.
- Não gosto!
Replicou Amélia com um movimento de contrariedade. Há quanto tempo está ali e
sem tirar os olhos de mim?
- Volta-lhe
as costas!
- Vamos para
diante
- Como
quiseres.
Avisado o
cocheiro, avançou alguns passos, de modo a tirar ao curioso a vista do interior
do carro; mas o mancebo não desanimou por isso,
e passando de uma a outra porta, tomou posição conveniente para contemplar a
moça com admiração franca e apaixonada.
Simples no
traje, e pouco favorecido a respeito de beleza; os dotes naturais que excitavam
nesse moço alguma atenção eram uma vasta fronte meditativa e os grandes olhos
pardos, cheios do brilho profundo e fosforescente que naquele momento
derramavam pelo semblante de Amélia.
[...]
Notando
Amélia a insistência do mancebo, ficou vivamente contrariada. Aquele olhar profundo,
que parecia despedir os fogos surdos de uma labareda oculta, incutia nela um
desassossego íntimo. Agitava-se impaciente, como uma criatura no meio de um
sono inquieto ou mesmo de um ligeiro pesadelo.
Até que abriu
o chapeuzinho de sol, para interceptar a contemplação apaixonada de que era
objeto. Nesta ocasião, Laura, que frequentemente se debruçava para ver quando
vinha o lacaio, retraiu o corpo com vivacidade:
- Enfim; aí
vem!
-
felizmente! Disse Amélia.
O lacaio aproximava-se a passos medidos;
trazia na mão um embrulho de papel azul, que o atrito dos dedos e a oscilação
dos objetos envoltos desfizera, obrigando o portador a apertá-lo de vez em
quando.
Julgando ao
cabo de alguns instantes que o lacaio já tocava o estribo da carruagem, Amélia,
tomando um tom imperativo, disse para o cocheiro:
- Vamos!
Vamos!
Ao aceno que
lhe fez o cocheiro, o lacaio correu, chegando a tempo de apanhar o carro, que
partia ao trote largo da fogosa parelha. Deitar o embrulho na caixa da vitória, rodear em dois saltos e galgar o estribo da almofada
foi para o criado, habituado a essa manobra, negócio de um instante. Não
percebera ele, porém, que, abrindo-se o papel com a corrida, um dos objetos nele
contidos escorregara e, justamente na ocasião de deitar o embrulho na caixa do
carro, caíra na calçada.
Laura, que se
inclinara com vivo interesse para tomar o embrulho das mãos do lacaio, tivera
um pressentimento do acidente, ao ver o papel desenrolado. Fechando-o
rapidamente e escondendo-o por baixo do assento da vitória, ela debruçou-se
ainda uma vez para verificar se com efeito alguma coisa havia caído. Ao mesmo
tempo acompanhava o movimento com estas palavras de contrariedade:
- Como ele manda isto! Por mais que se lhe
recomende!
Laura nada
viu, porque já a vitória rodava ligeiramente sobre os paralelepípedos.
Nesse
momento, porém, dobrando a Rua da Assembleia, se aproximara um moço elegante
não só no traje do melhor gosto, como na graça de sua pessoa: era sem dúvida um
dos príncipes da moda, um dos leões da Rua do Ouvidor; mas desse podemos
assegurar pelo seu parecer distinto que não tinha usurpado o título.
O mancebo
viu casualmente o lacaio quando passara por ele correndo, e percebeu que um
objeto caíra do embrulho. Naturalmente não se dignaria abaixar para apanhá-lo,
nem mesmo deitar-lhe um olhar, se não visse aparecer ao lado da vitória o rosto
de uma senhora, que o aspecto da carruagem indicava pertencer à melhor
sociedade.
Então
apressou-se, para ter ocasião de fazer uma fineza, e pretexto de conhecer a
senhora, que lhe parecera bonita. Os leões são apaixonadíssimos de tais
encontros; acham-lhes um sainete que destrói a
monotonia das relações habituais.
Quando o
moço ergueu-se com o objeto na mão, já o carro dobrava a Rua Sete de Setembro.
Ficou ele um momento indeciso, olhando em torno, como se esperasse alguma
informação a respeito da pessoa a quem pertencia o carro. Sem dúvida a senhora
era conhecida em alguma loja de fazendas; talvez tivesse aí feito compras.
Não obtendo,
porém, informações, nem colhendo resultado da pergunta que fizera a um caixeiro
próximo, resolveu-se a meter o objeto no bolso e seguir seu caminho.
[...]
ALENCAR, José de. A pata da gazela. Disponível em:
Acesso em: 12 mar. 2015.
1 – O fragmento do romance lido é uma história policial, de
aventura, de amor ou de terror?
É uma
história de amor.
2 – Qual é o foco narrativo desse romance?
O
romance é narrado em terceira pessoa.
3 – No texto, o narrador apresenta uma minuciosa descrição
das personagens. Que elementos do texto nos permitem perceber de que classe
social as moças fazem parte?
A
descrição da carruagem; a forma como as moças estavam elegantemente vestidas; a
conversa delas sobre as compras que já tinham realizado e as que ainda
pretendiam fazer; o criado que esperavam. Tudo isso configura personagens de
classe social abastada.
4 – Nesse romance, as roupas das personagens são tão
importantes na caracterização delas que o narrador substitui o nome das moças
pelo traje que elas portam selecione dois exemplos do texto que ilustram essa
afirmação e copie-os em seu caderno.
“O vestido
roxo debruçou-se de modo a olhar para fora [...]”; “[...] o roupão,
recostando-se nas almofadas, consultava uma carteirinha de lembranças [...]”.
5 – Leia o trecho a seguir, referente ao comportamento de
Amélia, e responda à questão:
Notando Amélia
a insistência do mancebo, ficou vivamente contrariada. Aquele olhar profundo,
que parecia despedir os fogos surdos de uma labareda oculta, incutia nela um
desassossego íntimo. [...]
- O que o
trecho pode revelar a respeito das características da personagem?
O trecho revela o comportamento de uma moça recatada,
reservada.
6 – Que atitudes Amélia tomou para se proteger e se esquivar
do olhar do rapaz que a admirava?
Avisou
o cocheiro para avançar alguns passos, de modo a tirar o interior do carro da
vista do rapaz, abriu o chapeuzinho de sol, para impedir a contemplação
apaixonada de que era objeto.
7 – Pelo fragmento lido, é possível identificar a
situação-problema que se constrói e que será responsável pelo desenvolvimento da
história. Copie no caderno as alternativas que apresentam os acontecimentos
fundamentais que desencadearam essa situação.
Alternativas: a, c, d, e.
a)
O lacaio apressado não percebe que deixa cair, na rua, um objeto do
embrulho que carregava.
b) O cocheiro leva a vitória mais à
frente para tirá-la do foco do olhar do moço apaixonado.
c)
Um jovem interessado apanha o objeto perdido e busca informações
sobre sua possível proprietária.
d)
Lauro, desconfiada de que algo foi deixado para trás pelo lacaio,
olha pela janela da vitória em direção à rua.
e)
O rapaz bem-vestido, não obtendo informações sobre a dona do objeto
perdido, guarda-o no bolso.
8 – Que objeto você imagina ter caído do embrulho?
Resposta pessoal.
9 – Que ideias e sentimentos você imagina que o jovem
bem-vestido terá com relação ao objeto encontrado?
Resposta pessoal.
10 – Ao ver o objeto encontrado, o rapaz tirará algumas
conclusões sobre a sua proprietária. O que você acha que ele pensará sobre ela?
Por quê?
Resposta pessoal.