terça-feira, 16 de janeiro de 2024

CRÔNICA: O PRIMEIRO DIA - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: O primeiro dia

               Viriato Corrêa

        A notícia de que eu ia entrar para a escola produziu rebuliço na criançada.

        Eram quinze ou dezoito os meninos que brincavam comigo: o Quincas, que já estava com os dentes quase todos mudados; a Chiquitita, sempre de pernas raladas pelas travessuras; o Ioiô, que fazia caretas horríveis virando as pálpebras pelo avesso; o Manduca, dando, com agilidade de um sagui, saltos como os artistas de circo; a Teteia, que subia às árvores como qualquer menino; o Pinguinho, o Chiquinho, a Rosa, o Maneco, o Vavá e vários outros, quase tudo gentinha miúda que ainda chupava o dedo.

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  Correram todos à minha casa para saber a verdade. Durante uma semana não se conversou outra coisa. O Chiquinho entusiasmou-se. Ia também dizer aos pais que queria entrar para a escola. O Vavá e o Maneco decidiram-se: entrariam também.

        A Teteia ficou desolada.

        — A gente assim não brinca mais, disse.

        — Como não? respondi. A aula é pela manhã, temos a tarde toda para brincar.

        Ela replicou:

        — Vá contando com isso. O Juquinha, desde que começou a aprender, não brincou mais conosco. Vocês ficam logo pensando que são gente grande.

        O Ioiô não dava palavra. Toquei-lhe no ombro:

        — E você? Não quer também entrar para a escola? Ele me olhou de esguelha e respondeu num tom gaiato:

        — Eu? Cruz! Não nasci para levar "bolo". A palmatória de lá trabalha na mão da gente... O Hilário me disse que "bolo" de palmatória dói muito mais do que "bolo" de chinela.

        Protestamos. A palmatória era para as crianças vadias e nós iríamos estudar.

        — Vocês querem ir, vão. Eu fico brincando, concluiu ele com uma careta.

        Chegou, finalmente, o dia da reabertura das aulas.

        Fui a primeira pessoa que acordou lá em casa. A manhã ainda não tinha acabado de clarear e eu já andava pelos quartos, como barata tonta, de camisolão, perturbando o sono alheio.

        Naquele dia tudo se juntava para me dar contentamento ao coração. Minha mãe caprichava em satisfazer a todos os meus desejos de criança. Além das calcinhas de menino, ela me fizera uma camisa igualzinha às camisas de meu pai, com punhos, abertura e colarinho. Havia ainda uns sapatos novos, um gorro azul com borla de seda e uma blusa à marinheira.

        E, mal me acabaram de vestir, pus-me a passear pela calçada de minha casa, cheio de mim como um pavãozinho que expõe o esplendor de suas penas bonitas.

        O Chiquinho e o Vavá combinaram passar pela minha porta para irmos juntos à casa do Maneco. Mas, era tanta a minha ansiedade em chegar à escola, que eu é que os fui buscar.

        E fiz tudo isso correndo, o coração aos pulos, numa alegria tão risonha que minha mãe, de contente, encheu os olhos d’água.

        A escola ficava no fim da rua, num casebre de palha com biqueiras de telha, caiado por fora. Dentro — unicamente um grande salão, com casas de maribondos no teto, o chão batido, sem tijolo.

        De mobiliário, apenas os bancos e as mesas estreitas dos alunos, a grande mesa do professor e o quadro-negro arrimado ao cavalete.

        A minha decepção começou logo que entrei.

        Eu tinha visto aquela sala num dia de festa, ressoando pelas vibrações de cantos, com bandeirinhas tremulantes, ramos e flores sobre a mesa. Agora ela se me apresentava tal qual era: as paredes nuas, cor de barro, sem coisa alguma que me alegrasse a vista.

        Durante minutos fiquei zonzo, como a duvidar de que aquela fosse a casa que eu tanto desejara.

        E os meus olhinhos inquietos percorriam os cantos da sala, à procura de qualquer coisa que me consolasse. Nada. As paredes sem caiação, a mobília polida de preto — tudo grave, sombrio e feio, como se a intenção ali fosse entristecer a gente.

        Olhei o Chiquinho, olhei o Maneco, olhei o Vavá. Tinham o mesmo ar tímido e encolhido que me afligia a alma.

        Procurei um rosto alegre naqueles rostos. Nenhum. Os meninos pareciam condenados: olhos baixos, voz assustada e dolorosa expressão de terror na fisionomia.

        Tentei encarar o professor e um frio esquisito me correu da cabeça aos pés. O que eu via era uma criatura incrível, de cara amarrada, intratável e feroz.

        Os nossos olhos cruzaram-se. Senti uma vontade louca de fugir dali. Pareceu-me estar diante de um carrasco.

        O Vavá veio sentar-se ao meu lado, como se tivesse medo de ficar sozinho no banco, por trás do meu. O velho João Ricardo ergueu-se subitamente, agarrou-o pela orelha e levou-o de novo ao banco.

        O movimento foi tão brutal que o Pedrinho, que estava perto, se espantou, e, com o cotovelo, derramou o tinteiro. O Adão riu. O professor vibrou-lhe a régua na cabeça.

        E, daí por diante, não se sentou mais. Pôs-se a passear pela sala, de mãos para trás, vigiando-nos através dos óculos pretos, com o ar terrível de quem está com vontade de encontrar um pretexto para castigos.

        O Hilário cochichou com o Jovino. O professor bateu com a régua na cabeça dos dois.

        O Donato levantou os olhos do livro, acompanhando o voo de um maribondo. A régua cantou-lhe no alto da cabeça.

        À tarde quando os meus companheiros me vieram buscar para os brinquedos de costume, eu estava murcho, mole, fatigado e triste.

        A Chiquitita perguntou-me, curiosa:

        — Cazuza, você gostou?

        Eu quis enganar a mim próprio, escondendo a minha decepção, mas o Vavá, que ainda tinha as orelhas a arder, respondeu prontamente:

        — Gostou nada! Quem pode gostar daquilo?! É um inferno! O Ioiô fez uma careta e disse triunfante:

        — Eu tinha ou não tinha razão?! Eu sabia! Vanico me contou. Se escola é aquilo, eu juro que lá não entro.

        Escola, realmente, não podia ser aquilo. Escola não podia ser aquela coisa enfadonha, feia, triste, que metia medo às crianças. Não podia ter aquele aspecto de prisão, aquele rigor de cadeia.

        Escola devia ser um lugar agradável, cheio de atrativos, de encantos, de beleza, de alegria, de tudo que recreasse e satisfizesse o espírito.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Qual foi a reação da criançada ao saber que o narrador iria entrar para a escola?

      A criançada ficou agitada e correu à casa do narrador para descobrir se era verdade que ele ia entrar para a escola.

02 – Como o narrador descreve seus colegas de brincadeiras?

      Ele descreve seus colegas, como o Quincas, Chiquitita, Ioiô, Manduca, Tetéia, Pinguinho, Chiquinho, Rosa, Maneco, Vavá, entre outros, como uma "gentinha miúda que ainda chupava o dedo."

03 – Qual foi a reação de alguns dos amigos do narrador em relação à ideia de entrar para a escola?

      Chiquinho entusiasmou-se e decidiu entrar para a escola, enquanto Vavá e Maneco também tomaram a mesma decisão. No entanto, Tetéia ficou desolada e afirmou que não brincaria mais com eles.

04 – Por que o Ioiô não quer entrar para a escola?

      O Ioiô não quer entrar para a escola porque teme levar "bolo" (punição) com a palmatória, e acredita que a palmatória da escola dói mais do que a chinela.

05 – Como o narrador descreve o dia da reabertura das aulas e sua preparação para ir à escola?

      O narrador descreve o dia como cheio de contentamento e destaca a atenção especial de sua mãe, que providenciou roupas novas, incluindo uma camisa igual à do pai, sapatos novos, um gorro azul com borla de seda e uma blusa à marinheira.

06 – Qual foi a decepção do narrador ao entrar na escola pela primeira vez?

      A decepção do narrador ao entrar na escola foi causada pela aparência séria, sombria e sem graça da sala de aula, que contrastava com suas expectativas anteriores de um ambiente alegre e festivo.

07 – Como o narrador e seus colegas reagem ao ambiente e ao professor da escola?

      O narrador e seus colegas ficam desanimados e assustados ao perceberem a seriedade do ambiente da escola, com paredes nuas, mobiliário simples e um professor ameaçador. Alguns colegas sofrem punições logo no início, o que contribui para a decepção geral em relação à escola.

 

CRÔNICA: AS CALCINHAS - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: As calcinhas

              Viriato Corrêa

        Não me lembro qual a minha idade quando ficou decidido que, no ano seguinte, eu entraria para a escola.

      Mas eu devia ser muito e muito pequeno. Tão pequenino que não pronunciava direito as palavras e ainda chupava o dedo e vestia roupinhas de menina.

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    Mas não imaginem que eu fosse um menino excepcional, desses meninos-prodígios, ajuizados e sisudos, que não riem, não brincam e não saltam, dando à gente a impressão de que já nasceram velhos.

        Pelo contrário. Eu era uma criança alegre, traquinas e estouvada, que vivia correndo pelo quintal e fazendo estripulias pela casa.

        Dois motivos é que me deram vontade de estudar.

        O primeiro deles — as calças. Desde que me entendi, tive a preocupação de ser homem e nunca me pude ajeitar nos vestidinhos rendados de menina. Sempre olhei com inveja os garotos mais taludos do que eu, não porque eles fossem maiores e gozassem regalias que os garotinhos não gozam, mas porque usavam calças.

        Minha mãe prometia frequentemente:

        — Quando você entrar para a escola deixará dos vestidinhos.

        E, por amor às calças, comecei a mostrar amor aos livros.

        O segundo motivo é que o primeiro contato que tive com uma escola foi através de uma festa. E ficou-me na cabeça a ideia de que a escola era um lugar de alegria.

        Eu conto a vocês.

        Havia outrora nos sertões do Norte uma festa que hoje não mais existe em parte nenhuma. Chamava-se "festa da palmatória".

        As escolas antigamente não tinham, às vezes, mobiliário que prestasse, material de ensino que servisse, professores que cuidassem das lições, mas... uma palmatória, rija, feita de boa madeira, não havia escola que não tivesse.

        No espírito das crianças à palmatória tomava a feição de um monstro. Punham-se-lhe em cima todos os nomes feios. Chamavam-lhe a "danada", a "tirana", a "malvada", a "bandida".

        A meninada vingava-se dela no fim do ano, fazendo-lhe uma festa gaiata, com algazarra e cantoria.

        Era isso a 7 de dezembro, justamente no dia em que se encerravam as aulas. Festa de infinita singeleza e de infinita ingenuidade, como costumavam ser as festas infantis.

        A escola amanhecia enfeitada com ramos e palmas verdes. Flores, muitas flores na mesa e na cadeira do professor. A palmatória, amarrada com laços de fita, pendia dum prego, na parede.

        Os meninos, mais bem vestidos que nos outros dias, iam cedinho para a porta da escola, brincar.

        Quando o professor apontava ao longe, cessava o brinquedo. Faziam-se alas. Ele entrava comovido, ia para junto da mesa e encerrava as aulas com um discurso.

        O discurso era, palavrinha por palavrinha, quase sempre o mesmo de todos os anos. Sempre conselhos: começava desejando que os alunos fossem felizes durante as férias e terminava lembrando-lhes que não se esquecessem das lições aprendidas e de nenhum dos deveres de moral e disciplina.

        Em seguida, o professor abençoava os estudantes um por um e retirava-se.

        A escola ficava entregue à pequenada. O aluno mais velho tirava à palmatória do prego, amarrava-a num cabo de vassoura e empunhava-o como se empunha um estandarte.

        As crianças formavam, então, duas a duas, e saíam em passeata pelas ruas da povoação ou da vila, gritando e pulando. No começo — uma ladainha triste, cantada em coro, a chorar a morte da palmatória. Depois, as emboladas, os desafios, as cantigas alegres do sertão.

        Levaram-me, naquele ano, à porta da escola para assistir à festa.

        Recordo-me bem de tudo. Era um dia bonito, muito azul, muito luminoso e muito fresco. Havia chovido na véspera e as árvores, bem lavadas e verdes, pareciam criaturas que mudam de roupa depois do banho. Pássaros cantavam alegremente nas árvores, como se também eles começassem as férias.

        O discurso do professor, as flores e as palmas verdes, a alegria da meninada, a passeata, assanharam-me o sangue. Voltei para casa contentíssimo. Fiquei tendo da escola a ideia de que era um lugar agradável, que dava prazer à gente.

        E daí por diante não falei mais noutra coisa. Todo livro que eu apanhava, abria-o com solenidade e punha-me a recitar em voz alta o que me vinha à cabeça fingindo que o estava lendo.

        Meu pai e minha mãe achavam uma infinita graça naquilo. E decidiram que, ao recomeçarem as aulas, em janeiro, eu teria finalmente as minhas calcinhas de menino e um lugar nos bancos da escola.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Por que o narrador expressa sua vontade de estudar no primeiro parágrafo da crônica?

      O narrador expressa sua vontade de estudar no primeiro parágrafo da crônica devido ao desejo de deixar de vestir roupas de menina e usar calças, motivado pelo anseio de ser reconhecido como um menino.

02 – Quais são os dois motivos que levaram o narrador a ter vontade de estudar?

      Os dois motivos que levaram o narrador a ter vontade de estudar foram o desejo de deixar de usar vestidinhos de menina em favor das calças e a impressão positiva que teve da escola ao presenciar a "festa da palmatória".

03 – O que representava a "festa da palmatória" nas escolas antigas mencionadas na crônica?

      A "festa da palmatória" representava o encerramento do ano escolar, onde os alunos celebravam de maneira alegre e festiva, homenageando a palmatória que, apesar de temida, era vista como um elemento simbólico na escola.

04 – Como o professor encerrava as aulas durante a "festa da palmatória"?

      Durante a "festa da palmatória", o professor encerrava as aulas com um discurso, desejando felicidades nas férias aos alunos e relembrando a importância das lições aprendidas, bem como dos deveres de moral e disciplina.

05 – Qual foi a impressão que a "festa da palmatória" deixou no narrador em relação à escola?

      A "festa da palmatória" deixou no narrador a impressão de que a escola era um lugar agradável e prazeroso, contribuindo para despertar nele o desejo de estudar.

06 – O que o narrador fazia ao pegar um livro durante sua infância?

      Quando o narrador pegava um livro durante sua infância, ele abria-o com solenidade e recitava em voz alta o que lhe vinha à cabeça, fingindo que estava lendo, demonstrando seu interesse e entusiasmo pela ideia de estudar.

07 – Qual foi a decisão tomada pelos pais do narrador em relação à sua educação ao final da crônica?

      Ao final da crônica, os pais do narrador decidiram que, ao recomeçarem as aulas em janeiro, ele finalmente teria suas calcinhas de menino e um lugar nos bancos da escola, atendendo ao desejo manifestado pelo narrador ao longo do texto.

 

CRÔNICA: PINGUINHO - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: Pinguinho

               Viriato Corrêa

        No lugarejo em que nasci dava-se uma singularidade que eu não sei se ocorria em outra parte do mundo: o dia mais alegre era aquele em que morria alguma pessoa.

        Explica-se. No povoado, quando alguém estava para morrer, mandava-se avisar à gente da redondeza. E, logo que o doente fechava os olhos, a sua casa se enchia. Vinham, não só os vizinhos ali de perto, como os de cinco, sete e mesmo de dez léguas distantes.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEipwPTWJ8KFncKk3kzavf2MY1AcJ3G11mb66zoFXcMAM03nni926Scw9LmQcLCzMKWHqG1HRnvMIB2YwnZcXou35HjLXMy419vYeX358yYFMtkLUPzpTnIfFXU86sSW-OLQod4A8_PjN4t_n60NDwjZH_5dXCDGK4wRzQRUdn2YaiO2cSI_RlwQF_CQlNc/s320/POVOADUUU.jpg


        O trabalho paralisava. Os lavradores não iam às roças; os vaqueiros não iam ao campo; a escola não se abria e até as casas de negócios fechavam as portas.

        E o lugarejo, dorminhoco e triste dos dias comuns da vida, agitava-se, vivamente, nos raros dias de morte.

        A todo o instante chegavam bandos de homens e mulheres, ora em cavalos que alegravam os ares com relinchos, ora em carros de bois que vinham chiando pelos caminhos.

        A povoação transformava-se num formigueiro ruidoso de crianças. No sertão, quando uma família sai de casa para ir à de um defunto, sai completa, os grandes, a filharada e até mesmo os cachorros.

        Os grandes ficam na sala e no terreiro do morto, a prestar as homenagens do costume; a meninada, essa vem para fora, para a sombra das árvores, brincar em liberdade.

        No meu tempo, quando morria alguém no povoado, para nós, os pequeninos, o dia inteiro era de traquinada, de algazarra e de alegria. Os taludos juntavam-se lá com os taludos; nós, pequeninos, brincávamos com os pequeninos.

        Talvez fôssemos mais de trinta, mais de quarenta. Mas nenhum, nenhum tão afoito e tão disposto a brincar como o Pinguinho.

        O Pinguinho devia ser o mais velho de todos nós, mas, tão franzino e tão frágil, que parecia o mais novo. Magro, pescoço comprido, ombros estreitos, ossinhos de fora.

        Uma tossezinha seca. Mãos sempre geladas, testa sempre quente.

        Mas, o que nele havia de belo, de vivo e de brilhante, eram os olhos, dois grandes olhos negros e febris, como que iluminados por um eterno desejo de viver.

        Como não podia correr porque cansava e não podia gritar porque tossia, o Pinguinho animava a brincadeira. Se a cabra-cega ia aborrecendo, fazia-nos mudar para a boca-de-forno; se a boca-de-forno já não despertava entusiasmo, lembrava a gangorra, o remporeá, o anel, ou qualquer outro brinquedo.

        Foi ele que, uma vez (na manhã da morte do Chico da Lúcia), se apresentou entre nós com quatro rodas de ferro, encontradas atrás da casa da máquina de descaroçar algodão.

        Não sei onde se foi buscar um caixão de bacalhau, não sei onde se arranjaram martelo e pregos. Em pouco, estava armado um carro.

        E o carro encheu-nos o grande dia. Dois garotinhos dentro, outros dois empurrando e a pequenada a revezar-se dirigida pelo Pinguinho que, por ser doentio e dono das rodas, não empurrava nunca e era empurrado sempre.

        A morte parecia-nos um bem que Deus mandava às crianças da terra para que elas brincassem em liberdade.

        Vivíamos a desejá-la através dos nossos sonhos como se deseja um brinquedo através dos vidros de uma vitrina.

        Quando o enterro saía e a meninada de fora partia com os pais, as nossas almas ficavam mais tristes do que as casas em que o luto havia entrado. Para nós, que nada sabíamos da morte, nada mais tinha havido do que um maravilhoso dia de brinquedo, que terminava inesperadamente.

        E as nossas cabecinhas inconscientes punham-se então a fazer cálculos, desejando outro dia como aquele. Quando haveria de novo tanta criança, tanta alegria e tanta liberdade? Quando morreria outra criatura?

        Quem mais acertava nos cálculos era a Chiquitita. Bastava dizer que um doente morreria em breve, para que o doente não durasse um mês.

        Vivíamos sonhando com os dias de luto que traziam grandes dias de folguedos.

        O Maneco repetia constantemente com a boca cheia de língua:

        — Se eu fosse Deus Nosso Senhor, três vezes por semana tinha que haver um defunto.

        De uma feita, a Tetéia nos encheu de inveja. Garantiu-nos que em breve a brincadeira seria no seu quintal. Tinha em casa três pessoas para morrer: a tia velha, a avó e o padrasto de sua mãe.

        Para nosso entendimento aquilo era uma fortuna. Nós que nada sabíamos da vida, só víamos na morte motivo de brinquedo.

        Um dia, quando brincávamos a cabra-cega, o Pinguinho, ao amarrar a venda nos olhos da Rosa, sentiu uma dor no peito, uma sufocação e quis gritar. Mas, em vez de grito, o que lhe saiu da boca foi uma golfada de sangue.

        Carregamo-lo nos braços para casa.

        À noite, o pobrezinho ardia em febre. Não comeu mais, não saiu mais do fundo da rede. De quando em quando — golfadas de sangue. E emagrecendo, emagrecendo — ficou pele e osso.

        Não lhe saíamos de perto. Quando podíamos enganar a vigilância de nossos pais, íamos para junto dele, consolar-lhe os sofrimentos.

        Numa manhã, linda manhã em que as andorinhas brincavam no céu como garotinhos travessos, ele morreu.

        O povoado encheu-se. Foi criança, criança, como eu nunca vi tanta na minha vida.

        Não podia haver dia melhor para se brincar. Mas (surpresa para toda a gente!) nenhum de nós brincou. Nenhum de nós saiu, sequer, para o terreiro.

        Ficamos todos em derredor do cadáver, sossegadinhos, tristes, silenciosos. Quando queríamos falar uns aos outros, era baixinho, aos cochichos, como se temêssemos perturbar a majestade da dor que nos afligia.

        Tínhamos, pela primeira vez, compreendido a morte. Era a primeira vez que ela nos tocava de perto.

        E, dali por diante, quando alguém morria no povoado, nunca mais enchemos de alaridos os terreiros e os quintais.

        Nunca mais fizemos de um dia de luto um dia de festa.

        Dali por diante, a morte ficou sendo para nós uma coisa séria, muito séria e muito triste.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Qual era a peculiaridade do lugarejo em que o narrador nasceu em relação aos dias de morte?

      No lugarejo, o dia mais alegre era aquele em que morria alguma pessoa.

02 – Quando alguém estava prestes a morrer no povoado, o que acontecia na comunidade?

      A comunidade era avisada, e as atividades cotidianas paravam. As pessoas da redondeza se dirigiam à casa do doente, e o lugar ficava agitado e movimentado.

03 – Como as crianças do povoado reagiam quando alguém morria?

      As crianças viam o dia de morte como uma oportunidade de brincadeira e liberdade. Elas se reuniam para divertir-se enquanto os adultos prestavam homenagens ao falecido.

04 – Como o Pinguinho se destacava entre as crianças durante os dias de morte?

      O Pinguinho, apesar de franzino e doentio, era o mais afoito e disposto a brincar. Ele animava as brincadeiras, sugerindo novos jogos e trazendo elementos como um carro improvisado.

05 – Como as crianças enxergavam a morte durante as brincadeiras nos dias de luto?

      As crianças viam a morte como um bem que Deus mandava para que pudessem brincar em liberdade. Elas ansiavam por dias de luto, associando-os a grandes momentos de folguedos.

06 – O que mudou na percepção das crianças em relação à morte após a experiência com o Pinguinho?

      Após a morte do Pinguinho, as crianças passaram a compreender a morte de uma maneira mais séria e triste. O evento marcou uma mudança significativa na percepção delas em relação aos dias de luto.

07 – Como a morte do Pinguinho influenciou o comportamento das crianças em relação aos dias de morte no povoado?

      A morte do Pinguinho trouxe uma compreensão mais profunda e triste da morte para as crianças. A partir desse momento, elas deixaram de transformar os dias de luto em dias de festa, passando a encarar a morte de maneira mais séria.

 

CRÔNICA: A PARTIDA - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: A partida

              Viriato Corrêa

        Quem me deu a notícia foi o Ninico da Totonha, no dia em que lhe pedi o sabiá da mata que ele, pela manhã, apanhara no alçapão.

        — Este não pode ser. Mas eu lhe dou outro na véspera de sua partida para a vila.

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        — Que vila? perguntei.

        Ninico arregalou os olhos, espantado.

        — Você não vai para a vila, Cazuza?

        — Não sei disso.

        Seus olhos surpreenderam-se mais.

        — Então não sabe que a sua família vai mudar-se para a vila?! Não se fala noutra coisa.

        Lembrei-me da frase de minha mãe no dia da sabatina de tabuada: "Depois ele aprenderá na vila".

        Pareceu-me ter ouvido qualquer coisa sobre a mudança, mas, preocupado com os brinquedos, não prestei atenção nenhuma às conversas.

        Quando voltei para casa, minha mãe, no avarandado, amamentava o meu irmãozinho de mês e meio. Falei-lhe imediatamente:

        — O Ninico acabou de me dizer que nós vamos de mudança para a vila. É verdade?

        — É verdade.

        — Quando?

        — Breve.

        — Por que é que a gente vai para a vila? insisti.

        Mamãe não respondeu e, como eu de novo fizesse a pergunta, disse, evidentemente a disfarçar:

        — Porque precisas aprender e a escola da vila é melhor do que a daqui.

        E mudou de conversa.

        Nunca pude saber, ao certo, o motivo que levara minha família a deixar o povoado em que meu pai nascera e vira nascer os seus primeiros filhos. Mas não foi somente porque a escola da vila fosse melhor que a da povoação.

        Ao que percebi nesta frase, naquela, naquela outra, a causa da mudança foram os negócios comerciais de meu pai. Os negócios iam mal.

        Vovô Lucrécio, pai de minha mãe, morador da vila, já velho e cansado de trabalhar, oferecera a meu pai a sua casa de negócios.

        Para que a nossa casa no povoado não passasse a mãos estranhas, tio Olavo se mudaria para ela e ficaria gerindo os nossos pequenos bens.

        Mais de uma vez surpreendi minha gente de olhos molhados e vermelhos. Todos se doíam de deixar aquele cantinho de terra, até mesmo minha mãe, que ia para o seu cantinho natal.

        Eu não me doía de nada. À proporção que os dias passavam mais contente ia ficando.

        O que me contavam da vila enchia-me a cabeça de curiosidade. Havia muitas casas de telha, casas de sobrado, igreja, festas, muita gente e uma grande escola com duas ou três centenas de crianças.

        As visitas de despedidas começaram um mês antes de partirmos.

        Abalávamos a família inteira para a casa de um ou de outro parente, de um ou de outro amigo, e lá ficávamos de manhã à noite, trocando palavras de carinho.

        Passei uma tarde inteirinha em casa de Chiquitita; outra tarde em casa do Maneco; almocei com o Ioiô, jantei com o Manduca, com o Quincas, com a Rosa.

        Na Pedra Branca, passei dia e meio. Fui depois do almoço, dormi e só voltei no dia seguinte, ao anoitecer.

        Tia Mariquinhas permitiu que os meninos da minha roda fossem lá brincar comigo. Fartamo-nos de comer frutas, de trepar nas árvores e nos balanços, de andar nas águas do riacho, remando a jangadinha.

        Oito dias antes, os nossos trens começaram a ser enviados para a vila. A primeira igarité que seguiu, ia apinhadinha de baús, canastras e samburás.

        Não me ficou claramente gravado na memória o momento da partida. Três dias antes, amanheci, inesperadamente, ardendo em febre. Na véspera a febre voltou mais forte.

        E na manhã em que partimos, a febre era tanta que fui carregado até o porto nos braços do Jorge Carreiro. Não me recordo de quase nada.

        Lembro-me apenas de que abri os olhos cansados no momento em que a igarité ia largando.

        E vi uma aglomeração de gente na ribanceira do rio.

        Vi o lenço de Tia Mariquinhas, batendo...

        Vi, confusamente, outros lenços agitando-se...

        Vi o Vavá, o Manduca, o Chiquinho...

        Vi a Rosa chorando, a gritar pelo meu nome...

        E vi, quase à beira d’água, o velho Mirigido, de boca escancarada, muito vermelha, a gritar qualquer coisa aos remadores da igarité.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Por que Cazuza fica surpreso ao saber da mudança para a vila?

      Cazuza fica surpreso ao saber da mudança para a vila porque não tinha conhecimento dessa decisão da família.

02 – Qual é a justificativa inicial dada pela mãe de Cazuza para a mudança para a vila?

      Inicialmente, a mãe de Cazuza diz que a mudança é necessária porque a escola na vila é melhor e ele precisa aprender.

03 – Quais são as pistas dadas ao longo da crônica sobre o verdadeiro motivo da mudança da família de Cazuza para a vila?

      Há indícios de que o motivo da mudança é relacionado aos negócios comerciais do pai de Cazuza, que não estão indo bem.

04 – Como Cazuza reage à notícia da mudança?

      Cazuza inicialmente fica surpreso, mas ao longo do tempo ele se mostra cada vez mais contente com a ideia da mudança para a vila.

05 – Como são descritas as visitas de despedidas realizadas pela família de Cazuza antes da partida?

      As visitas de despedidas são descritas como momentos em que a família se desloca para casas de parentes e amigos, trocando palavras de carinho e compartilhando momentos especiais.

06 – O que acontece com Cazuza nos dias próximos à partida para a vila?

      Nos dias próximos à partida, Cazuza fica doente, com febre, e precisa ser carregado até o porto nos braços de Jorge Carreiro.

07 – Quais são as últimas imagens que Cazuza lembra no momento da partida?

      No momento da partida, Cazuza lembra-se de ver uma aglomeração de pessoas na ribanceira do rio, lenços sendo agitados, amigos chorando e o velho Mirigido gritando algo aos remadores da igarité.

 

CRÔNICA: A ESCOLA - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: A escola

              Viriato Corrêa

        — Andas tão sem gosto, meu filhinho! Já perdeste o entusiasmo? disse-me, uma vez, minha mãe, quando me vestia para a escola.

        Era verdade.

Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEidUIJsbhWtZe2Z69q5NsgVRQlcoeEHeMZnSmmPtawJiKfaRK4SomWSA_jHcSkWfeGTbFzbcxVRTCYeRVnLF-phgU_IIs9Mlr3zaPwJmJZ_axwixPAL7qbne80W5UUR0d-2VuSB4iP9G3xZ3YZnROtcBptES-A5ZhWmlptp-R4fSitZyc2sYcfySlcLdDw/s320/ESCOLINHA.jpg


        Eu andava sem entusiasmo e sem gosto. À hora das aulas, ficava a remanchar para não me vestir, queixando-me de uma coisa, de outra, de uma dor de cabeça, de uma dor de dente.

        Desde o primeiro dia, a escola perdera o encanto para mim.

        Nada, nada havia lá que me despertasse o interesse ou me tocasse o coração. Ao contrário: como que tudo fora feito para me meter medo.

        A sala feia, o ar de tristeza, o ar de prisão, a cara feroz do professor, os castigos pelas menores faltas e pelos menores descuidos tinham-me deixado um grande desgosto na alma.

        E a verdade é que, na escola, nada mudava para me apagar aquela impressão.

        O quadro era sempre o mesmo quadro triste.

        Entrávamos às oito da manhã. O professor quase sempre já lá estava, na grande mesa, junto à parede, de cara amarrada, como se ali estivesse para receber criminosos.

        Quem chegava ia tomar-lhe a bênção e vinha sentar-se no seu lugar. Um silêncio de afligir. Era a hora do exercício de escrita e ninguém podia falar. Durante trinta minutos, só se ouvia o leve rumor das penas riscando o papel.

        O velho João Ricardo punha-se a passear entre os bancos, de régua na mão, fingindo-se desatento, mas, de fato, estava a vigiar a sala através dos vidros escuros dos óculos. Se um menino cochichava com outro, se segurava mal a caneta, se se distraía a olhar os maribondos do teto, ele, imediatamente, lhe vibrava a régua nas mãos e na cabeça. Ninguém conhecia o mata-borrão. Para enxugar a escrita, ia-se à parede, escavava-se o barro com a ponta da caneta e espalhava-se o pó na letra úmida.

        As paredes furadas pareciam respiradouros de formigueiro. Cada buraco tinha o seu dono e, quando alguém, por engano ou brincadeira, usava o alheio, o protesto surgia infalivelmente. — Esse não, esse é meu!

        Após o exercício de escrita ia-se "estudar a lição". O "estudo" era gritado, berrado. Cantava-se a lição o mais alto que se podia, numa toada enfadonha.

        Um inferno aquela barulheira. Trinta, quarenta, cinquenta meninos gritando coisas diferentes, cada qual esforçando-se em berrar mais alto. E quando, já cansados, íamos diminuindo a voz, o professor reclamava energicamente, da sua cadeira:

        — Estudem!

        E a algazarra recrudescia.

        Aquela mesma coisa, semanas inteiras, meses inteiros.

        Nada, nada que despertasse o gosto pelo estudo.

        Ao contrário. Tudo era motivo para castigo: uma lição mal sabida, uma escrita mal feita, uma palavra errada, um cochicho, um ar distraído, até um sorriso.

        Por uma falta pequenina ficava-se de pé, no centro da sala ou à porta da rua. Se a falta era maior, punha-se a criança de joelhos no meio da sala.

        A escola inteira falava horrorizada de dois suplícios que eu ainda não tinha tido ocasião de presenciar.

        Um deles era ficar o aluno de joelhos sobre grãos de milho.

        O outro, a "orelha de burro". À cabeça do menino colocavam-se duas enormes orelhas de papelão e fazia-se o desgraçado passear pelas ruas, vaiado pelos companheiros.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Por que o narrador afirma que andava sem entusiasmo e sem gosto para ir à escola?

      O narrador afirma que perdeu o entusiasmo e o gosto pela escola devido à falta de interesse e ao ambiente desagradável que encontrava lá.

02 – Quais são alguns dos elementos que contribuíram para a aversão do narrador à escola?

      A sala feia, o ar de tristeza, a sensação de prisão, a expressão severa do professor e os castigos frequentes pelas menores faltas e descuidos contribuíram para a aversão do narrador à escola.

03 – Como o narrador descreve o ambiente da sala de aula?

      O narrador descreve a sala de aula como feia, com um ar de tristeza e prisão, destacando a aparência ameaçadora do professor e a atmosfera pouco acolhedora.

04 – Qual é a reação do professor em relação às faltas dos alunos durante a aula de escrita?

      O professor reage com rigor às faltas dos alunos durante a aula de escrita, utilizando uma régua para punir imediatamente aqueles que cochicham, seguram mal a caneta, se distraem ou cometem qualquer descuido.

05 – Como é o processo de "estudo da lição" na escola descrita na crônica?

      O "estudo da lição" é descrito como uma barulheira ensurdecedora, com os alunos gritando as lições o mais alto possível em uma toada enfadonha. Mesmo quando diminuíam a voz, o professor insistia para que continuassem estudando, intensificando o tumulto na sala.

06 – Quais são alguns dos motivos pelos quais os alunos são castigados na escola?

      Os alunos são castigados por uma série de motivos, incluindo lições mal sabidas, escrita mal feita, palavras erradas, cochichos, ar distraído e até mesmo sorrisos durante as aulas.

07 – Quais são os dois suplícios mencionados no final da crônica que causam horror aos alunos?

      Os dois suplícios mencionados são ficar de joelhos sobre grãos de milho e a "orelha de burro". No segundo, as crianças colocam duas enormes orelhas de papelão na cabeça e são vaiadas pelos colegas enquanto passeiam pelas ruas.

 

CRÔNICA: FIGURAS DO POVOADO - VIRIATO CORRÊA - COM GABARITO

 Crônica: Figuras do povoado

              Viriato Corrêa

        Tenho bem vivas na memória as crianças de minha idade e de meu tamanho que brincaram comigo no povoado. Mas são poucas as criaturas grandes que me ficaram na lembrança.

        Uma delas é o Jorge Carreiro. Alto como um gigante, forte como um novilho, possuía, no entanto, alma de criançola.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhXLdmsNBC5LUMPr9Qh0JvdX3jI1btkIDVMzHl4UkspakshlSP3RowEeu4EftU7uVmf2aiZLXt6F9k0DxwjF3kImjbAUkDh8DGKykdL61I5dfzuIy4ZLPE-htC8ZFIIvasJ2CWvKgpU18nddLHSn8NJa9HA92TSwiyD8CKcmzz67dpW07X2tM_dfVQxgLc/s1600/POVOADO.jpg


        Brincava conosco como se fosse também menino; carregava-nos aos ombros, escanchava-nos no cogote e fazia de cavalo para que lhe montássemos nas costas.

        Era nosso melhor amigo. Quando zoava, ao longe, a cantiga do seu carro de bois, havia, nas casas, uma algazarra estouvada de crianças. Corríamos todos para a estrada. Enquanto os outros carreiros não se cansavam de nos ralhar, o Jorge consentia que trepássemos no seu carro. Ele próprio nos apanhava no chão e nos ajeitava entre a carga.

        Era uma cena encantadora de ruído e de alegria, a entrada do carro do Jorge no povoado. Sobre rumas de cana, melancias, espigas de milho ou sacos de feijão, vinham dezenas de meninos gritando festivamente.

        Os bois que puxavam o carro tinham a alma do dono. Não houve bois mais mansos e mais pacientes no mundo. A natureza como que os fez de propósito para aturar as traquinadas da infância. Dávamos-lhes de comer, na mão, como se eles fossem carneiros; trepávamos-lhes nas pernas, nos chifres, no pescoço, sem que fizessem o menor movimento de irritação.

        Outra figura é a do professor João Ricardo. Homem velho, bigode branco, óculos escuros, pigarro de quem sofre de asma.

        Nunca lhe vi um sorriso no rosto. Vivia sempre zangado, com o ar de quem está a ralhar com o mundo, cara amarrada, rugas na testa.

        Para as criancinhas do meu tamanho, representava o papel de lobisomem. Tínhamos-lhe um medo louco. Se estávamos a brincar num terreiro e o percebíamos ao longe, ficávamos silenciosos e quem podia esconder-se — escondia-se; quem podia fugir — fugia.

        Só depois que ele passava e quando já não lhe víamos mais a sombra, é que o brinquedo recomeçava.

        O velho Mirigido é também outra criatura de quem nunca me esqueci.

        Não me lembro qual a sua ocupação no povoado, mas me parece que não tinha outro ofício senão o de meter medo às crianças.

        Era um pretalhão comprido, magro, cabeludo, tão velho que já vivia curvado para a frente, em forma de arco.

        Andava pelos caminhos de saco às costas, resmungando cantigas esquisitas que ninguém entendia.

        Nem um dente na boca, boca muito vermelha, que ele escancarava horrendamente quando queria assustar algum menino.

        Corria como verdade, entre as crianças, que o preto velho, na última sexta-feira de cada mês, virava bicho. O bicho, dizia-se, era a "cobra chifruda" — cobra estranha, fantástica, diferente das outras cobras, de cabeça de onça, chifres de veado, mais grossa que um tronco de árvore.

        E o pior de tudo é que era perna de criança o petisco que a cobra mais gostava de comer.

        O Mirigido enchia-nos a cabeça de pavor e o sono de pesadelos. Mais de uma vez acordei, aos gritos, sonhando que ele me estava roendo a canela.

        Para as mães, o preto velho tinha uma utilidade: ajudava-as a curar a doença dos filhinhos.

        Não havia remédio que mais repugnássemos do que o óleo de rícino e o quinino. Conseguir que os engolíssemos era a dificuldade das nossas mães.

        O Mirigido resolvia facilmente a dificuldade. Quando se queria aplicar quinino ou óleo de rícino a alguma criança, mandava-se chamar o preto-velho. Ele vinha pontualmente. E ia entrando no quarto a roncar como um bicho, de facão desembainhado, dizendo aterradoramente:

        — Que barulho é esse aí? Vou comer esse menino! Vou comer esse menino, agora mesmo!

        E batia com os pés no chão e dançava e se mexia desengonçadamente. Um verdadeiro demônio.

        — Vou virar a cobra chifruda! berrava. Vou virar a cobra chifruda!

        E, fingindo amolar o grande facão no braço, repetia com voz rouquenha:

        — Vou comer a perna desse menino! Vou chupar os ossinhos desse menino!

        Ficávamos geladinhos da cabeça aos pés.

        E de um trago, de um trago só, engolíamos o remédio.

Viriato Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.

Entendendo a crônica:

01 – Quem é Jorge Carreiro na crônica "Figuras do povoado" de Viriato Corrêa?

      Jorge Carreiro é um homem alto e forte, mas com alma de criança, que brincava com as crianças do povoado, carregando-as nos ombros e fazendo-as montar em seu carro de bois.

02 – Como as crianças do povoado reagiam à chegada do carro de Jorge Carreiro?

      Ao ouvirem a cantiga do carro de bois de Jorge Carreiro ao longe, as crianças corriam para a estrada, criando uma algazarra festiva. Ele permitia que as crianças subissem em seu carro, tornando a cena encantadora.

03 – Qual é a impressão que o professor João Ricardo causa nas crianças do povoado?

      O professor João Ricardo é visto como uma figura amedrontadora pelas crianças, sendo comparado a um lobisomem. Elas tinham medo dele e se escondiam quando o avistavam, só retomando suas brincadeiras depois que ele passava.

04 – Descreva a figura do velho Mirigido na crônica.

      O velho Mirigido é um homem preto, comprido, magro, cabeludo e muito velho, que anda pelos caminhos do povoado com um saco às costas. Ele resmunga cantigas estranhas, tem uma boca sem dentes e é associado à lenda de se transformar em uma cobra chifruda.

05 – Qual é a história associada ao Mirigido que causa medo nas crianças?

      Corre entre as crianças a história de que o Mirigido se transforma em uma cobra chifruda na última sexta-feira de cada mês. Dizem que essa cobra é diferente e fantástica, com cabeça de onça e chifres de veado, e que gosta de comer pernas de crianças.

06 – Como o Mirigido ajudava as mães a administrar remédios às crianças?

      O Mirigido ajudava as mães a fazer as crianças engolirem remédios desagradáveis, como óleo de rícino e quinino. Ele entrava no quarto ameaçando virar uma cobra chifruda e assustava as crianças, fazendo-as engolir o remédio de uma só vez.

07 – Qual era a reação das crianças diante das encenações assustadoras do Mirigido?

      As crianças ficavam geladas da cabeça aos pés diante das encenações aterrorizantes do Mirigido. Ele as assustava ameaçando comer suas pernas e chupar seus ossinhos, levando as crianças a engolirem rapidamente o remédio para evitar tal destino assustador.