Crônica: O primeiro dia
Viriato Corrêa
A notícia de que eu ia entrar para a
escola produziu rebuliço na criançada.
Eram quinze ou dezoito os meninos que
brincavam comigo: o Quincas, que já estava com os dentes quase todos mudados; a
Chiquitita, sempre de pernas raladas pelas travessuras; o Ioiô, que fazia
caretas horríveis virando as pálpebras pelo avesso; o Manduca, dando, com
agilidade de um sagui, saltos como os artistas de circo; a Teteia, que subia às
árvores como qualquer menino; o Pinguinho, o Chiquinho, a Rosa, o Maneco, o
Vavá e vários outros, quase tudo gentinha miúda que ainda chupava o dedo.
Correram todos à minha casa para saber
a verdade. Durante uma semana não se conversou outra coisa. O Chiquinho
entusiasmou-se. Ia também dizer aos pais que queria entrar para a escola. O
Vavá e o Maneco decidiram-se: entrariam também.
A Teteia ficou desolada.
— A gente assim não brinca mais, disse.
— Como não? respondi. A aula é pela
manhã, temos a tarde toda para brincar.
Ela replicou:
— Vá contando com isso. O Juquinha,
desde que começou a aprender, não brincou mais conosco. Vocês ficam logo
pensando que são gente grande.
O Ioiô não dava palavra. Toquei-lhe no
ombro:
— E você? Não quer também entrar para a
escola? Ele me olhou de esguelha e respondeu num tom gaiato:
— Eu? Cruz! Não nasci para levar
"bolo". A palmatória de lá trabalha na mão da gente... O Hilário me
disse que "bolo" de palmatória dói muito mais do que "bolo"
de chinela.
Protestamos. A palmatória era para as
crianças vadias e nós iríamos estudar.
— Vocês querem ir, vão. Eu fico
brincando, concluiu ele com uma careta.
Chegou, finalmente, o dia da reabertura
das aulas.
Fui a primeira pessoa que acordou lá em
casa. A manhã ainda não tinha acabado de clarear e eu já andava pelos quartos,
como barata tonta, de camisolão, perturbando o sono alheio.
Naquele dia tudo se juntava para me dar
contentamento ao coração. Minha mãe caprichava em satisfazer a todos os meus
desejos de criança. Além das calcinhas de menino, ela me fizera uma camisa
igualzinha às camisas de meu pai, com punhos, abertura e colarinho. Havia ainda
uns sapatos novos, um gorro azul com borla de seda e uma blusa à marinheira.
E, mal me acabaram de vestir, pus-me a
passear pela calçada de minha casa, cheio de mim como um pavãozinho que expõe o
esplendor de suas penas bonitas.
O Chiquinho e o Vavá combinaram passar
pela minha porta para irmos juntos à casa do Maneco. Mas, era tanta a minha
ansiedade em chegar à escola, que eu é que os fui buscar.
E fiz tudo isso correndo, o coração aos
pulos, numa alegria tão risonha que minha mãe, de contente, encheu os olhos d’água.
A escola ficava no fim da rua, num
casebre de palha com biqueiras de telha, caiado por fora. Dentro — unicamente
um grande salão, com casas de maribondos no teto, o chão batido, sem tijolo.
De mobiliário, apenas os bancos e as
mesas estreitas dos alunos, a grande mesa do professor e o quadro-negro
arrimado ao cavalete.
A minha decepção começou logo que
entrei.
Eu tinha visto aquela sala num dia de
festa, ressoando pelas vibrações de cantos, com bandeirinhas tremulantes, ramos
e flores sobre a mesa. Agora ela se me apresentava tal qual era: as paredes
nuas, cor de barro, sem coisa alguma que me alegrasse a vista.
Durante minutos fiquei zonzo, como a
duvidar de que aquela fosse a casa que eu tanto desejara.
E os meus olhinhos inquietos percorriam
os cantos da sala, à procura de qualquer coisa que me consolasse. Nada. As
paredes sem caiação, a mobília polida de preto — tudo grave, sombrio e feio,
como se a intenção ali fosse entristecer a gente.
Olhei o Chiquinho, olhei o Maneco,
olhei o Vavá. Tinham o mesmo ar tímido e encolhido que me afligia a alma.
Procurei um rosto alegre naqueles
rostos. Nenhum. Os meninos pareciam condenados: olhos baixos, voz assustada e
dolorosa expressão de terror na fisionomia.
Tentei encarar o professor e um frio
esquisito me correu da cabeça aos pés. O que eu via era uma criatura incrível,
de cara amarrada, intratável e feroz.
Os nossos olhos cruzaram-se. Senti uma
vontade louca de fugir dali. Pareceu-me estar diante de um carrasco.
O Vavá veio sentar-se ao meu lado, como
se tivesse medo de ficar sozinho no banco, por trás do meu. O velho João
Ricardo ergueu-se subitamente, agarrou-o pela orelha e levou-o de novo ao
banco.
O movimento foi tão brutal que o
Pedrinho, que estava perto, se espantou, e, com o cotovelo, derramou o
tinteiro. O Adão riu. O professor vibrou-lhe a régua na cabeça.
E, daí por diante, não se sentou mais.
Pôs-se a passear pela sala, de mãos para trás, vigiando-nos através dos óculos
pretos, com o ar terrível de quem está com vontade de encontrar um pretexto
para castigos.
O Hilário cochichou com o Jovino. O
professor bateu com a régua na cabeça dos dois.
O Donato levantou os olhos do livro,
acompanhando o voo de um maribondo. A régua cantou-lhe no alto da cabeça.
À tarde quando os meus companheiros me
vieram buscar para os brinquedos de costume, eu estava murcho, mole, fatigado e
triste.
A Chiquitita perguntou-me, curiosa:
— Cazuza, você gostou?
Eu quis enganar a mim próprio,
escondendo a minha decepção, mas o Vavá, que ainda tinha as orelhas a arder,
respondeu prontamente:
— Gostou nada! Quem pode gostar
daquilo?! É um inferno! O Ioiô fez uma careta e disse triunfante:
— Eu tinha ou não tinha razão?! Eu
sabia! Vanico me contou. Se escola é aquilo, eu juro que lá não entro.
Escola, realmente, não podia ser
aquilo. Escola não podia ser aquela coisa enfadonha, feia, triste, que metia
medo às crianças. Não podia ter aquele aspecto de prisão, aquele rigor de
cadeia.
Escola devia ser um lugar agradável,
cheio de atrativos, de encantos, de beleza, de alegria, de tudo que recreasse e
satisfizesse o espírito.
Viriato
Corrêa. Cazuza. 27. ed. São Paulo: Nacional, 1997. p. 16-7.
Entendendo a crônica:
01 – Qual foi a reação da criançada
ao saber que o narrador iria entrar para a escola?
A criançada ficou
agitada e correu à casa do narrador para descobrir se era verdade que ele ia
entrar para a escola.
02 – Como o narrador descreve
seus colegas de brincadeiras?
Ele descreve seus
colegas, como o Quincas, Chiquitita, Ioiô, Manduca, Tetéia, Pinguinho,
Chiquinho, Rosa, Maneco, Vavá, entre outros, como uma "gentinha miúda que
ainda chupava o dedo."
03 – Qual foi a reação de
alguns dos amigos do narrador em relação à ideia de entrar para a escola?
Chiquinho
entusiasmou-se e decidiu entrar para a escola, enquanto Vavá e Maneco também
tomaram a mesma decisão. No entanto, Tetéia ficou desolada e afirmou que não
brincaria mais com eles.
04 – Por que o Ioiô não quer
entrar para a escola?
O Ioiô não quer
entrar para a escola porque teme levar "bolo" (punição) com a
palmatória, e acredita que a palmatória da escola dói mais do que a chinela.
05 – Como o narrador descreve
o dia da reabertura das aulas e sua preparação para ir à escola?
O narrador
descreve o dia como cheio de contentamento e destaca a atenção especial de sua
mãe, que providenciou roupas novas, incluindo uma camisa igual à do pai,
sapatos novos, um gorro azul com borla de seda e uma blusa à marinheira.
06 – Qual foi a decepção do
narrador ao entrar na escola pela primeira vez?
A decepção do narrador ao entrar na
escola foi causada pela aparência séria, sombria e sem graça da sala de aula,
que contrastava com suas expectativas anteriores de um ambiente alegre e
festivo.
07 – Como o narrador e seus
colegas reagem ao ambiente e ao professor da escola?
O narrador e seus colegas ficam
desanimados e assustados ao perceberem a seriedade do ambiente da escola, com
paredes nuas, mobiliário simples e um professor ameaçador. Alguns colegas
sofrem punições logo no início, o que contribui para a decepção geral em
relação à escola.