Conto: Elefantes
Marcelo Coelho
Meu primeiro dia na escola foi bem
ruim. Hoje em dia as crianças não sabem direito como é o primeiro dia em que a
gente entra na escola. Elas começam muito pequenas, com três anos estão no
maternal. Comigo foi diferente. Eu já era meio grande. Tinha seis anos.
Imagine. Seis anos. Quer dizer que,
desde que eu nasci, até ter seis anos, eu ficava em casa. Sem fazer nada.
Brincava um pouco. Mas meus irmãos eram muito mais velhos, e criei o costume de
brincar sozinho. Era meio chato.
Até que chegou o dia de entrar na
escola. Minha mãe foi logo avisando.
– Olha, Marcelo. Lá na escola, não pode
ficar falando palavra feia. Bunda, cocô, xixi. Não usa essas palavras.
Tocaram a buzina. Era o ônibus da
escola.
Eu estava de uniforme. Calça curta
azul, camisa branca.
Eu tinha uma camisa branca que me dava
sorte. Era uma com uma pintinha no colarinho. Gostava daquela pintinha preta.
Mas no primeiro dia de aula justo essa camisa tinha ido lavar. Fui com outra.
Que não dava sorte.
Bom, daí a aula começou, teve o
recreio, eu não conhecia ninguém, tirei um sanduíche da lancheira, o lanche
sempre ficava com um gosto de plástico por causa da lancheira, mas eu não sabia
disso ainda, porque era a primeira vez que eu usava lancheira, então tocou o
sinal e fui de novo para a classe.
Até que deu certo no começo. A
professora explicou alguma coisa sobre os elefantes. Falou que eles tinham
dentes grandes, e que esses dentes eram muito valiosos.
Então ela perguntou:
– Alguém sabe qual o nome dos dentes do
elefante?
Ou melhor, ela falou assim:
– Alguém sabe para que servem os dentes
do elefante?
Vai ver que ela queria perguntar:
"Qual o material precioso que é tirado das presas do elefante?".
O fato é que eu sabia a resposta, e
gritei:
– O marfim!
A professora me olhou muito contente.
Os meus colegas também me olharam, mas não pareciam tão contentes.
Ela brincou:
– Puxa, você está afiado, hein?
Eu não respondi, mas fiquei inchado de
alegria, como se fosse um elefantezinho. Dentes afiados.
Tinha sido um bom começo.
Mas aí vieram os problemas.
Fui ficando com a maior vontade de
fazer xixi.
Segurei.
A professora continuava a falar sobre
os elefantes.
Assunto mais louco para um primeiro dia
de aula.
E a vontade de fazer xixi ia
aumentando.
Cruzar as pernas não adianta nessa
hora.
Olhei para um coleguinha no banco da
frente. Tive inveja dele. Ele estava ali, tranquilo. Sem nenhum aperto. Como é
que seria estar no lugar dele? Pedir para ser ele, pedir emprestado o corpo
dele por algum tempo? Como alguém pode ficar sem vontade de fazer xixi? Sem nem
pensar no problema?
Eu estava ficando meio desesperado. Eu
era meio tímido também. Levantei a mão. A professora perguntou o que eu queria.
– Posso ir no banheiro?
– Espere um pouco, tá?
Ela devia estar achando muito
importante aquela história toda sobre elefantes. Começou a explicar como os
elefantes bebiam água. Eles enchiam a tromba, seguravam bem, e daí- chuáá...
Levantei a mão de novo.
–
Preciso ir no banheiro, professora...
Ela nem respondeu. Fez só um gesto com
a mão. Para eu esperar mais.
Na certa, ela estava pensando que, no
primeiro dia de aula, é importante não facilitar. Não dar moleza. Devia
imaginar que todo mundo inventa que quer ir ao banheiro só para passear um
pouco e não ficar ali assistindo aula.
Professora mais chata.
Levantei a mão pela terceira vez.
Eu realmente não aguentava mais.
Só que a professora nem precisou responder.
Tinha tocado o sinal. Fim da aula.
Era só correr até o banheiro.
Levantei da carteira. A gente era
obrigado a sair em fila.
Faltava pouco.
Claro que não deu.
Fiz o maior xixi. Dentro da classe.
Logo eu, que nunca fui de fazer grandes
xixis. Mas aquele foi fenomenal. Parecia um elefante. Coisa de fazer barulho no
chão. Chuáá...
A professora chegou perto de mim.
– Você estava apertado? Por que não me
avisou?
Eu não soube o que responder. Mas
entendi algumas coisas.
A coisa mais óbvia é que, quando você
tem vontade de fazer xixi, vai e faz. Coisa mais chata é ficar pedindo para
alguém deixar a gente ir ao banheiro. Banheiro é assunto meu.
Outra coisa é que as pessoas, em geral,
não ligam para o que a gente está sentindo. Para mim a vontade de fazer xixi
era a coisa mais importante do mundo. Para a professora, a coisa mais
importante do mundo era ficar falando de elefantes.
É como se cada pessoa tivesse um filme
dentro da cabeça. E só prestasse atenção nesse filme. Filme dos elefantes,
filme do xixi.
Mais uma coisa. Quando a gente precisa
muito, a gente tem de gritar para valer. Eu devia ter gritado:
– Professora, tenho de fazer xixi.
Ou, se quisesse evitar a palavra feia:
– Professora, tenho absoluta urgência
de urinar.
Não
seria bonito, mas até que seria certo dizer:
– Vou dar uma mijada, pô.
Mas o pior é ficar levantando a mão e
dizendo baixinho:
– Professora, posso ir no banheiro?
Vai ver que eu estava falando tão baixo
que ela nem escutou.
As pessoas nunca escutam muito bem o
que a gente diz.
Uma última coisa.
Aquele xixi não teve importância
nenhuma. Eu fiquei envergonhado. Ainda mais no primeiro dia de aula. Só que,
alguns dias depois, o vexame tinha passado. Tudo ficou normal. Tive amigos e
inimigos na classe, fiz lição, respondi chamada, e nem a professora, nem meus
amigos, nem meus inimigos, ninguém se lembrou do meu xixi.
Sabe por quê? É porque já estava
passando outro filme na cabeça deles. Cada pessoa tem outras coisas em que
pensar: a briga que os pais estão tendo, o irmão mais velho que é chato, o
presente que vai ganhar de aniversário...
Só eu liguei de verdade para o caso do
xixi. As outras pessoas estão sempre tratando de assuntos mais sérios.
Elefantes, por exemplo.
COELHO, Marcelo.
Elefantes. In: SCLIAR, Moacyr. et al. Era uma vez um conto. São Paulo:
Companhia das Letrinhas, 2002. p. 21-25.
Entendendo o conto:
01 – Essa história é narrada na primeira pessoa.
a) Qual é a primeira palavra que indica isso?
O pronome pessoal “eu”.
b) Que experiência o personagem nos conta, logo no primeiro parágrafo?
No primeiro parágrafo o personagem nos conta sobre seu primeiro dia
na escola. Ele descreve como as crianças de hoje em dia geralmente começam
muito cedo na escola, no maternal, quando ainda têm três anos. No entanto, a
experiência dele foi diferente, pois ele já era um pouco mais velho, com seis
anos, e, até então, ficava em casa sem fazer muita coisa, brincando sozinho.
02 – Por que, segundo o
narrador, a professora não o deixou ir ao banheiro? Releia o texto e liste as
suposições do autor.
O narrador não dá
uma razão específica para o motivo da professora não o ter deixado ir ao
banheiro quando ele pediu. A narrativa não explora as razões por trás da
decisão da professora, deixando espaço para o leitor interpretar suas possíveis
suposições.
·
A professora estava mais interessada
em falar sobre elefantes e não prestou muita atenção ao pedido do narrador para
ir ao banheiro.
·
A professora pode ter pensado que o
narrador estava inventando uma desculpa para sair da aula.
·
A professora pode ter acreditado que
o pedido do narrador era uma tentativa de chamar a atenção ou causar uma
interrupção na aula.
03 – Qual é o tema principal
do conto?
É a experiência
do narrador em seu primeiro dia na escola, incluindo a admissão com o controle
de suas necessidades básicas e a percepção da falta de compreensão dos outros
em relação ao que é importante para ele.
04 – Como o narrador se sentiu
em relação ao seu primeiro dia de aula?
O narrador
descreveu seu primeiro dia de aula como sendo bem ruim.
05 – O que a mãe do narrador
avisou antes do primeiro dia de aula?
A mãe do narrador
avisou que, na escola, ele não poderia falar palavras feias, como “bunda”,
“cocô” e “xixi”.
06 – Qual foi a resposta que o
narrador deu à pergunta da professora sobre os dentes dos elefantes?
O narrador
respondeu corretamente que os dentes dos elefantes são chamados de “marfim”.
07 – O que o narrador sentiu
durante a aula, que o levou a querer ir ao banheiro?
O narrador ficou
com uma grande vontade de fazer xixi durante a aula.
08 – Como o narrador se sentiu
após o incidente do xixi na aula?
O narrador ficou
envergonhado no início, mas com o passar do tempo, percebeu que o vexame foi
esquecido pelas outras pessoas, e a situação voltou ao normal.