domingo, 22 de maio de 2022

ROMANCE: IRACEMA CAPÍTULO XV - JOSÉ DE ALENCAR - COM GABARITO

 Romance: Iracema Capítulo XV          

                 José de Alencar

        [...]

        Nasceu o dia e expirou.

        Já brilha na cabana de Araquém o fogo, companheiro da noite. Correm lentas e silenciosas no azul do céu, as estrelas, filhas da lua, que esperam a volta da mãe ausente.

        Martim se embala docemente; e como a alva rede que vai e vem, sua vontade oscila de um a outro pensamento. Lá o espera a virgem loura dos castos afetos; aqui lhe sorri a virgem morena dos ardentes amores.

        Iracema recosta-se langue ao punho da rede; seus olhos negros e fúlgidos, ternos olhos de sabiá, buscam o estrangeiro e lhe entram n'alma. O cristão sorri; a virgem palpita; como o saí, fascinado pela serpente, vai declinando o lascivo talhe, que se debruça enfim sobre o peito do guerreiro.

        Já o estrangeiro a preme ao seio; e o lábio ávido busca o lábio que o espera, para celebrar nesse ádito d'alma, o himeneu do amor.

        No recanto escuro o velho Pajé, imerso em funda contemplação e alheio às cousas deste mundo, soltou um gemido doloroso Pressentira o coração o que não viram os olhos? Ou foi algum funesto presságio para a raça de seus filhos, que assim ecoou n'alma de Araquém?

        Ninguém o soube.

        O cristão repetiu do seio a virgem indiana. Ele não deixará o rasto da desgraça na cabana hospedeira. Cerra os olhos para não ver; e enche sua alma com o nome e a veneração de seu Deus:

        — Cristo! . . . Cristo! . . .

        Volta a serenidade ao seio do guerreiro branco, mas todas as vezes que seu olhar pousa sobre a virgem tabajara, ele sente correr-lhe pelas veias uma onda de ardente chama. Assim quando a criança imprudente revolve o brasido de intenso fogo, saltam as faúlhas inflamadas que lhe queimam as faces.

        Fecha os olhos o cristão, mas na sombra de seu pensamento surge a imagem da virgem, talvez mais bela. Embalde chama o sono às pálpebras fatigadas; abrem-se, malgrado seu.

        Desce-lhe do céu ao atribulado pensamento uma inspiração.

        — Virgem formosa do sertão, esta é a última noite que teu hóspede dorme na cabana de Araquém, onde nunca viera, para teu bem e seu. Faze que seu sono seja alegre e feliz.

        — Manda; Iracema te obedece. Que pode ela para tua alegria?

        O cristão falou submisso, para que não o ouvisse o velho Pajé:

        — A virgem de Tupã guarda os sonhos da jurema que são doces e saborosos!

        Um triste sorriso pungiu os lábios de Iracema:

        — O estrangeiro vai viver para sempre à cintura da virgem branca; nunca mais seus olhos verão a filha de Araquém, e ele já quer que o sono feche suas pálpebras, e que o sonho o leve à terra de seus irmãos!

        — O sono é o descanso do guerreiro, disse Martim; e o sonho a alegria d'alma. O estrangeiro não quer levar consigo a tristeza da terra hospedeira, nem deixá-la no coração de Iracema!

        A virgem ficou imóvel.

        — Vai, e torna com o vinho de Tupã.

        Quando Iracema foi de volta, já o Pajé não estava na cabana; tirou a virgem do seio o vaso que ali trazia oculto sob a carioba de algodão entretecida de penas. Martim lho arrebatou das mãos, e libou as gotas do verde e amargo licor.

        Agora podia viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo, que ali viçava entre sorrisos, como o fruto na corola da flor. Podia amá-la, e sugar desse amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da virgem.

        O gozo era vida, pois o sentia mais forte e intenso; o mal era sonho e ilusão, que da virgem não possuía senão a imagem.

        Iracema afastara-se opressa e suspirosa.

        Abriram-se os braços do guerreiro adormecido e seus lábios; o nome da virgem ressoou docemente.

        A juruti, que divaga pela floresta, ouve o terno arrulho do companheiro; bate as asas, e voa a conchegar-se ao tépido ninho. Assim a virgem do sertão, aninhou-se nos braços do guerreiro.

        Quando veio a manhã, ainda achou Iracema ali debruçada, qual borboleta que dormiu no seio do formoso cacto. Em seu lindo semblante acendia o pejo vivos rubores; e como entre os arrebóis da manhã cintila o primeiro raio do sol, em suas faces incendidas rutilava o primeiro sorriso da esposa, aurora de fruído amor.

        A jandaia fugira ao romper d'alva e para não tornar mais à cabana.

        Vendo Martim a virgem unida ao seu coração, cuidou que o sonho continuava; cerrou os olhos para torná-los a abrir.

        A pocema dos guerreiros, troando pelo vale, o arrancou ao doce engano; sentiu que já não sonhava, mas vivia. Sua mão cruel abafou nos lábios da virgem o beijo que ali se espanejava.

        — Os beijos de Iracema são doces no sonho; o guerreiro branco encheu deles sua alma. Na vida, os lábios da virgem de Tupã amargam e doem como o espinho da jurema.

        A filha de Araquém escondeu no coração a sua ventura. Ficou tímida e inquieta, como a ave que pressente a borrasca no horizonte. Afastou-se rápida, e partiu.

        As águas do rio banharam o corpo casto da recente esposa.

        Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras.

        [...].

ALENCAR, José de. Iracema. Porto Alegre: L&PM, 2002.

Fonte: Livro – Viva Português 2° – Ensino médio – Língua portuguesa – 1ª edição 1ª impressão – São Paulo – 2011. Ed. Ática. p. 41-4.

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Arrebóis: os tons avermelhados do céu no amanhecer e no entardecer.

·        Borrasca: temporal com chuvas e ventos intensos.

·        Carioba: espécie de camisa de algodão.

·        Corola: conjunto de pétalas da flor.

·        Entretecida: entrelaçada, intercalada.

·        Espanejar: desabrochar.

·        Fluído: gozado, desfrutado.

·        Jandaia: designação comum a várias aves semelhantes, como papagaios e periquitos.

·        Juruti: designação comum a várias aves semelhantes, como pombas e rolinhas.

·        Libar: beber, sorver; beber mais por prazer do que por necessidade.

·        Pejo: pudor, vergonha.

·        Pocema: grito de guerra.

·        Pungir: começar a apontar, começar a aflorar.

·        Rubor: a cor vermelha nas faces provocada por vergonha.

·        Rutilar: fazer brilhar, resplandecer.

·        Troar: retumbar, trovejar.

·        Viçar: desenvolver-se com força.

02 – Releia:

        “— A virgem de Tupã guarda os sonhos da jurema que são doces e saborosos!

        Um triste sorriso pungiu os lábios de Iracema:

        — O estrangeiro vai viver para sempre à cintura da virgem branca; nunca mais seus olhos verão a filha de Araquém, e ele já quer que o sono feche suas pálpebras, e que o sonho o leve à terra de seus irmãos!”. O que Iracema imaginava que Martim desejava sonhar sob o efeito da bebida da jurema?

      Iracema imaginava que os sonhos de Martim seriam ligados a sua terra (Portugal) e a tudo que deixara por lá.

03 – Diante do desejo de Martim de provar a jurema, um sorriso triste aponta nos lábios da índia. Qual pode ter sido a razão da tristeza de Iracema?

      Ela possivelmente imaginou que, com a proximidade da partida, Martim preferisse ficar mais tempo com ela a sonhar com a mulher branca que deixara em Portugal.

04 – As diversas comparações e metáforas presentes ao longo do romance Iracema são responsáveis pela criação do tom poético da obra, como em:

        “— O sono é o descanso do guerreiro, disse Martim; e o sonho a alegria d'alma. O estrangeiro não quer levar consigo a tristeza da terra hospedeira, nem deixá-la no coração de Iracema!

        Observe a oposição representada pelos termos destacados e complete a frase a seguir no caderno. O elemento, nesse contexto, que poderia corresponder à tristeza da terra hospedeira, aquilo que um sonho bom deveria substituir, é .............

·        A saudade da própria terra, Portugal, que Martim deixou há bastante tempo.

·        A saudade da noiva, que o espera em sua terra de origem.

·        A impossibilidade de ter Iracema, de amá-la.

·        As tristezas e as decepções vividas no Brasil.

·        A melancolia observada em todos os índios da tribo em que estava.

05 – Releia:

        “Agora podia viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo, que ali viçava entre sorrisos, como o fruto na corola da flor. Podia amá-la, e sugar desse amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da virgem.”. Se o amor de Martim pela índia era impossível, por que, nesse momento, ele acredita poder “viver com Iracema, e colher em seus lábios o beijo”?

      Porque o efeito da jurema lhe dava a possibilidade de viver em sonho algo que não poderia ser vivido na realidade.

06 – Complete as frases no caderno. No contexto do trecho: “Podia amá-la, e sugar desse amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio da virgem”, mel e perfume significam a sensação agradável sentida naquele estado de sonho. A frase “sem deixar veneno no seio da virgem”, portanto, pode significar .........

·        Não permitir que Iracema bebesse o licor de Tupã, bebida destinada apenas aos guerreiros.

·        Viver as delícias do contato com Iracema apenas em sonho, sem de fato consumar o amor, protegendo, assim, a virgindade da índia.

·        Não permitir que Iracema tomasse contato com seus sonhos, seus desejos.

·        Não deixar que, durante seus sonhos, a jurema vertesse sobre o corpo de Iracema.

·        Proteger Iracema de qualquer agressão que pudesse vir dos índios de sua tribo.

07 – A certeza de Martim de que havia estado com Iracema apenas em sonho pode ser comprovada pelo seguinte trecho:

a)   “[...] e colher em seus lábios o beijo, que ali viçava entre sorrisos, como o fruto na corola da flor.”

b)   “O gozo era vida, pois o sentia mais forte e intenso [...]”.

c)   “[...] o mal era sonho e ilusão, que da virgem não possuía senão a imagem”.

08 – É possível, no trecho lido, verificar uma integração entre as ações e descrições das personagens e os elementos da paisagem. Releia:

        “Quando veio a manhã, ainda achou Iracema ali debruçada, qual borboleta que dormiu no seio do formoso cacto. Em seu lindo semblante acendia o pejo vivos rubores; e como entre os arrebóis da manhã cintila o primeiro raio do sol, em suas faces incendidas rutilava o primeiro sorriso da esposa, aurora de fruído amor.”

a)   A manhã que surge ainda encontra a índia junto de Martim. Em seu rosto brilha um sorriso, “o primeiro sorriso da esposa”. A que elemento da paisagem é comparado o sorriso de Iracema?

Ao primeiro raio do sol que cintila entre os arrebóis da manhã.

b)   O que essa comparação revela sobre esse momento da vida de Iracema?

A comparação enfatiza a nova condição de Iracema, que nasce para uma nova vida. Ela não é mais a virgem de Tupã, ela traz agora o “primeiro sorriso da esposa”.

 

 

 

ROMANCE: CAPITÃES DE AREIA - REFORMATÓRIO - FRAGMENTO - JORGE AMADO -COM GABARITO

 Romance: Capitães de Areia – Reformatório - Fragmento

                Jorge Amado

        [...]

        No refeitório, enquanto bebiam o café aguado e mastigavam o bolachão duro, seu vizinho de mesa fala:

        – Tu é o chefe dos Capitães da Areia? – sua voz é baixíssima.

        – Sou, sim.

        – Vi teu retrato no jornal... Tu é um macho! Mas te acabaram – olha o rosto magro de Bala.

        Mastiga o bolachão. Continua:

        – Tu vai ficar aqui?

        – Vou arribar...

        – Eu também. Tenho um plano... Quando eu bater asa, posso ir pra teu grupo?

        – Pode.

        – Onde fica o buraco?

        Pedro Bala olha com desconfiança:

        – Tu encontra a gente no Campo Grande toda tarde

        – Pensa que vou dizer?

        O bedel Campos bate as mãos. Todos se levantam. Dirigem-se para as diversas oficinas ou para os terrenos cultivados.

        Pelo meio da tarde Pedro Bala vê o Sem-Pernas que passa na estrada. Vê também um bedel que o tange.

        Castigos... Castigos... É a palavra que Pedro Bala mais ouve no reformatório. Por qualquer coisa são espancados, por um nada são castigados. O ódio se acumula dentro de todos eles.

        No extremo do canavial passa um bilhete a Sem-Pernas. No outro dia encontra a corda entre as moitas de cana. Com certeza a puseram durante a noite. É um rolo de corda fina e resistente. Está novinha. No meio dela o punhal que Pedro mete nas calças. A dificuldade é levar o rolo para o dormitório. Fugir durante o dia é impossível, com a vigilância dos bedéis. Não pode levar o rolo entre a roupa, que notariam.

        De repente surge uma briga. Jeremias se joga sobre o bedel Fausto com o facão na mão. Outros meninos se atiram também, mas vem um grupo de bedéis armados de chicotes. Estão sujeitando Jeremias.

        Pedro mete o rolo de corda debaixo do paletó, abre para o dormitório. Um bedel vem descendo a escada com um revólver na mão. Pedro se esconde atrás de uma porta.

        O bedel vem rápido, passa.

        Empurra a corda para baixo do colchão, volta para o canavial. Jeremias foi levado para a cafua. Os bedéis agora juntam os meninos. Ranulfo e Campos foram em perseguição de Agostinho, que pulou a cerca na confusão da briga. O bedel Fausto, com um talho no ombro, foi para a enfermaria. O diretor está entre eles, os olhos fuzilando de raiva. Um bedel conta os meninos. Pergunta a Pedro Bala:

        – Onde estava metido?

        – Saí pra não me meter no barulho.

        O bedel o olha desconfiado, mas passa.

        Voltam Ranulfo e Campos com Agostinho. O fujão é surrado na vista de todos. Depois o diretor diz:

        – Metam-no na cafua.

        – Já está Jeremias – fala Ranulfo.

        – Ficam os dois. Assim podem conversar...

        Pedro Bala se arrepia. Como irão ficar dois na pequenez da cafua?

        Nesta noite a vigilância é grande, ele não tenta nada. Os meninos rangem os dentes de raiva.

        Duas noites depois, quando o bedel Fausto já tinha se recolhido há muito ao seu quarto de tabiques e quando todos dormiam, Pedro Bala se levantou, tirou a corda de sob o colchão. Sua cama ficava junto a uma janela. Abriu. Amarrou a corda num dos armadores de rede que existiam na parede. Deixou que a corda caísse pela janela.

        Era curta. Faltava ainda muito. Recolheu. Procurava fazer o menor barulho possível, mas assim mesmo um dos seus vizinhos de cama acordou:

        – Tu vai bater asa?

        Aquele não tinha boa fama. Costumava delatar. Por isso mesmo fora colocado ao lado de Pedro Bala. Bala puxou o punhal, mostrou a ele.

        – Olha, xereta, trata de dormir. Se tu piar, eu te abro a garganta, palavra de Pedro Bala. E se tu disser alguma coisa depois que eu sair... Tu já viu falar nos Capitães da Areia?

        – Já.

        – Pois eles me vinga.

        Põe o punhal ao alcance da mão. Recolhe completamente a corda, amarra o lençol na ponta com um daqueles nós que o Querido-de-Deus lhe ensinou. Ameaça mais uma vez o menino, joga a corda, passa o corpo pela janela, começa a descida. Ainda no meio ouve os gritos denunciadores do delator.

        [...].

AMADO, Jorge. Capitães de Areia. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009.

Fonte: Livro – Viva Português 2° – Ensino médio – Língua portuguesa – 1ª edição 1ª impressão – São Paulo – 2011. Ed. Ática. p. 16-8.

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Arribar: partir sem dizer para onde.

·        Cafua: quarto escuro onde se prendiam os alunos castigados.

·        Tabique: parede fina, geralmente de madeira.

·        Tanger: acelerar de algum modo a marcha de uma pessoa ou de um animal.

02 – Descreva o espaço onde acontecem os fatos narrados.

      Trata-se de um reformatório onde há um refeitório, oficinas, campos de cultivo, dormitório e uma cafua. Sabemos que o dormitório não fica no térreo, pois Pedro precisa de corda e lençol para alcançar o chão.

03 – O comportamento de Pedro Bala durante o diálogo no refeitório e no momento da briga revela algumas de suas características. Quais?

      Pedro Bala é bastante esperto, tem senso de oportunidade, mas também é bastante desconfiado.

04 – O trecho foi interrompido num momento decisivo da narrativa. Que momento é esse? Que perguntas nos fazemos nesse momento?

      O momento em que Pedro Bala tenta uma fuga. Perguntamo-nos se ele vai conseguir, se os gritos do companheiro de quarto despertarão os bedéis a tempo de conseguirem impedir a fuga do garoto.

05 – Levante uma hipótese de desfecho para o capítulo.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Se deixa escorregar pela corda, salta ao chão. O pulo é grande, mas ela já salta correndo. Pula a cerca, após evitar os cachorros policiais que estão soltos. Desaba pela estrada. Tem alguns minutos de vantagem. O tempo dos bedéis se vestirem e saírem em sua perseguição e soltarem os cachorros também. Pedro Bala prede o punhal nos dentes, tira a roupa. Assim os cachorros não o conhecerão pelo faro. E nu, na madrugada fria, inicia a carreira para o sol, para a liberdade.

ROMANCE: O BARÃO NAS ÁRVORES - ÍTALO CALVINO - COM GABARITO

 Romance: O barão nas árvores

                 Ítalo Calvino

        […]

        Porém, João do Mato tinha suas preferências, não era possível dar-lhe um livro qualquer, caso contrário voltava no dia seguinte para Cosme o trocar. Meu irmão estava na idade em que se começa a tomar gosto pelas leituras mais densas, mas era obrigado a ir devagar, desde quando João do Mato devolveu-lhe as Aventuras de Telêmaco advertindo-o de que, se lhe desse outra vez um livro tão chato, ele serraria a árvore em que estivesse.

        A esta altura, Cosme gostaria de separar os livros que desejava ler por conta própria, com toda calma, daqueles que conseguia só para emprestar ao bandido. Que nada: pelo menos uma espiada devia dar também nestes, pois João do Mato tornava-se cada vez mais exigente e desconfiado, e antes de pegar um livro queria que ele lhe contasse um pouco da trama, e ai dele se errasse. Meu irmão tentou passar-lhe romances de amor: o bandido aparecia furioso perguntando se o confundira com alguma mulherzinha. Não dava para adivinhar qual era a preferência dele.

        Em resumo, com João do Mato sempre nos calcanhares, as leituras de Cosme, de distração nas horas vagas, passaram a ocupação principal, objetivo do dia inteiro. E, à força de manejar volumes, de julgá-los e compará-los, de ter de conhecer sempre outros e novos, entre leituras para João do Mato e a crescente necessidade de leituras suas, Cosme foi arrastado a tamanha paixão pelas letras e por todo saber humano que não lhe bastavam as horas do amanhecer ao pôr do sol para aquilo que gostaria de ler, e continuava também no escuro à luz de lanterna.

        Finalmente, descobriu os romances de Richardson. Agradaram a João do Mato. Terminado um, logo queria outro. Orbeque conseguiu-lhe uma pilha de volumes. O bandido tinha o que ler por um mês. Cosme, reencontrada a paz, lançou-se sobre as vidas de Plutarco.

        João do Mato, entretanto, estendido em seu catre, os hirsutos cabelos vermelhos cheios de folhas secas na testa enrugada, os olhos verdes que se avermelhavam com o esforço, lia sem parar, mexendo a mandíbula num soletrar furioso, mantendo no alto um dedo úmido de saliva pronto para virar a página. Ao descobrir Richardson, foi tomado por uma predisposição que já vinha incubando: um desejo de jornadas rotineiras domésticas, de parentes, de sentimentos familiares, de virtude, de aversão pelos maus e pelos viciados. Tudo aquilo que o circundava já não lhe interessava, enchia-o de desgosto. Não saía mais do esconderijo a não ser para ir atrás de Cosme e trocar de livro, especialmente se fosse um romance com mais de um volume e tivesse ficado no meio da história. Vivia assim, isolado, sem perceber a tempestade de ressentimentos que gerava contra ele inclusive entre moradores do bosque, antigamente cúmplices fiéis mas que agora já se tinham cansados de aturar um bandido inativo, que atraía todos os policiais.

        Tempos atrás, tinham estreitado fileiras com ele todos aqueles que, nas redondezas, possuíam contas aa ajustar com a justiça, às vezes pouca coisa, pequenos roubos de rotina, como os daqueles vagabundos que consertavam panelas, ou delitos para valer, como os dos seus companheiros bandidos. Para cada furto ou rapina aquela gente se valia da autoridade e experiência dele, utilizando como escudo seu nome, que corria de boca em boca e deixava o deles na sombra. E mesmo quem não participava dos golpes desfrutava de algum modo dos resultados, pois o bosque enchia-se de objetos roubados e de contrabando, que era preciso desfazer ou revender, e todos aqueles que zangavam por ali encontravam um jeito de traficar com tudo aquilo. E ainda: quem roubava por conta própria, sem avisar João do Mato, servia-se desse nome terrível para assustar as vítimas e obter o máximo. As pessoas viviam aterrorizadas, viam em cada malfeitor um João do Mato ou alguém do seu bando e apressavam-se a desatar os cordões da bolsa.

        Esses bons tempos duraram muito; João do Mato descobrira que podia viver de rendas, e pouco a pouco se acomodara. Achava que tudo continuava como antes, mas, ao contrário, os ânimos haviam mudado e seu nome já não inspirava nenhuma consideração.

        Agora, a quem era útil João do Mato? Ficava escondido com os olhos vermelhos de tanto ler romances, não aplicava mais golpes, no bosque ninguém mais podia cuidar dos próprios negócios, vinham policiais todos os dias para procurá-lo e qualquer desgraçado que tivesse um ar minimamente suspeito era levado. Se acrescentar a tentação que significava a recompensa pela cabeça dele, ficava claro que os dias de João do Mato estavam contados.

        Dois outros bandidos, dois jovens que tinham sido protegidos por ele e não conseguiam resignar-se a perder aquele grande chefe, quiseram dar-lhe a chance de reabilitar-se. Chamavam-se Hugão e Bonitão e haviam integrado o bando dos ladrões de fruta. Agora, adolescentes, tinham se tornado bandidos de respeito.

        Assim, foram procurar João do Mato na caverna. Estava lá, deitado na palha.

        — Sim, quem é? — perguntou sem tirar os olhos do papel.

        — Queríamos propor uma coisa, João do Mato.

        — Hum… O quê? — E lia.

        — Sabe onde é a casa de Constâncio, o fiscal da alfândega?

        — Sim… sim… Hein? O quê? Quem é o fiscal da alfândega?

        Bonitão e Hugão trocaram um olhar contrariado. Se não lhe tirassem aquele maldito livro do alcance da vista, o bandido não entenderia nem uma palavra.

        — Fecha o livro um pouco, João do Mato. Ouve o que temos a dizer.

        João do Mato agarrou o livro com ambas as mãos, levantou-se de joelhos, deu um jeito para apertá-lo contra o peito, mantendo-o aberto no ponto em que chegara, mas a vontade de continuar a ler era tanta que, sempre tendo-o bem próximo, ergueu-se até poder enfiar o nariz dentro dele.

        Bonitão teve uma ideia. Por perto havia uma teia de aranha com sua dona. Bonitão levantou com as mãos ágeis a teia com a aranha dentro e jogou-a em cima de João do Mato, entre livro e nariz. O desgraçado do João do Mato andava tão mole a ponto de ter medo de aranha. Sentiu no nariz aquela mistura de patas de aranha e filamentos pegajosos, e, antes de entender o que era, soltou um grito de susto, deixou cair o livro e começou a abanar as mãos na frente do rosto, os olhos arregalados e a boca cheia de saliva.

        Hugão deu um pulo e conseguiu pegar o livro antes que João do Mato pusesse um pé em cima dele.

        — Me dá esse livro de volta! — disse João do Mato, tentando livrar-se da aranha e da teia com uma das mãos, e com a outra arrancar o livro das mãos de Hugão.

        — Não, ouve antes! — disse Hugão escondendo o livro nas costas.

        — Estava lendo Clarisse. Me dá de volta! Estava no ponto culminante…

        — Escute. Nós vamos levar hoje de noite um carregamento de lenha na casa do fiscal. No saco, em vez de lenha, vai você. De madrugada, sai do saco…

        — Eu quero terminar Clarisse! — Conseguira livrar as mãos das últimas gosmas da teia e tentava lutar contra os dois jovens.

        — Ouça… Quando for de madrugada, você sai do saco, armado com duas pistolas, arranca do fiscal tudo o que foi arrecadado na semana, que ele guarda no cofre que está na cabeceira da cama…

        — Deixem ao menos eu terminar o capítulo… Sejam gentis…

        Os dois jovens pensavam no tempo em que, ao primeiro que tentasse contrariá-lo, João do Mato apontava duas pistolas na barriga. Amarga nostalgia.

        — Você pega os sacos de dinheiro, está bem? — insistiram, tristemente —, entrega tudo para nós, que devolveremos o livro e você poderá ler quanto quiser. Está bem assim? Topa?

        — Não. Não está bem. Não vou!

        — Então não vai… É assim, é… Então olhe! — E Hugão pegou uma página do final do livro (“Não!”, berrou João do Mato), arrancou-a (“Não! Para!”), fez uma bolinha, jogou-a no fogo.

        — Aaah! Cachorro! Não pode fazer isso! Vou ficar sem saber como acaba! — E corria atrás de Hugão para arrancar-lhe o livro.

        — Agora você vai à casa do fiscal?

        — Não, não vou!

        Hugão arrancou mais duas páginas.

        — Pare com isso! Ainda não cheguei aí! Você não pode queimá-las!

        Hugão já tinha mandado as duas para o fogo.

        — Porco! Clarisse! Não!

        — Então, vai?

        — Eu…

        Hugão arrancou mais três páginas e atirou-as no fogo! João do Mato sentou-se com o rosto entre as mãos.

        — Vou — rendeu-se. — Mas vocês me prometem que vão esperar com o livro fora da casa do fiscal.

        O bandido foi fechado num saco, com um feixe de lenha na cabeça. Atrás vinha Hugão com o livro. Às vezes, quando João do Mato com um arrastar de pés ou com um grunhido dentro do saco mostrava estar a ponto de arrepender-se, Hugão o fazia ouvir o rumor de uma página arrancada e João do Mato logo ficava bonzinho.

        Deste jeito o levaram, vestidos de lenhadores, até a casa do fiscal e o deixaram lá. Foram esconder-se por perto, atrás de uma oliveira, esperando a hora em que, executado o trabalho, devia alcançá-los.

        Mas João do Mato estava com muita pressa, saiu antes de acabar de escurecer, ainda havia muita gente pela casa.

        — Mãos ao alto! — Porém, já não era aquele de antes, era como se olhasse de fora, sentia-se meio ridículo.

        — Mãos ao alto, eu disse… Todos nesta sala, encostados na parede… — Mas que nada: nem ele acreditava mais naquilo, dizia por dizer. — Estão todos aqui? — Nem notara que uma menina tinha fugido.

        De qualquer modo, era coisa para não se perder um minuto. Ao contrário, a cena rendeu, o fiscal bancava o tonto, não encontrava a chave, João do Mato percebia que já não o levavam a sério, e no fundo estava contente que fosse assim.

        Finalmente, saiu com os braços cheios de bolsas com moedas. Correu quase às cegas para a oliveira combinada.

        — Aqui está tudo o que havia! Devolvam Clarisse!

        Quatro, sete, dez braços se lançaram sobre ele, imobilizaram-no das costas até as canelas. Tinha sido preso por um grupo de guardas e amarrado como um presunto.

        — Você há de ver Clarisse quadradinha! — e o levaram para o cárcere.

        A prisão era uma pequena torre à beira-mar. Um bosque de pinheiros crescia ao lado. Do alto de uma das velhas árvores, Cosme chegava quase à altura da cela de João do Mato e via o seu rosto atrás das grades.

        Ao bandido não interessava nada dos interrogatórios e do processo; de um jeito ou de outro, terminaria na forca; mas sua preocupação eram aqueles dias vazios ali na cadeia, sem poder ler, e aquele romance deixado pelo meio. Cosme conseguiu outra cópia de Clarisse e levou-a até o pinheiro.

        — Aonde você tinha chegado?

        — Ao ponto em que Clarisse foge da casa de má fama!

        Cosme folheou um pouco e logo:

        — Ah, sim, aqui está. Portanto… — E começou a ler em voz alta, virado para a janela de grades, à qual se agarravam as mãos de João do Mato.

        O processo foi demorado; o bandido resistia ao cerco da corda; para fazê-lo confessar cada um de seus inúmeros crimes eram necessários dias e dias. Todos os dias, antes e depois dos interrogatórios ficava escutando Cosme, que continuava a leitura. Terminada Clarisse, sentindo-o um tanto triste, Cosme achou que Richardson, para quem está preso, talvez fosse meio deprimente; e preferiu começar a ler para ele um romance de Fielding, cujo enredo movimentado lhe compensaria um pouco da liberdade perdida. Eram os dias do processo, e João do Mato só tinha cabeça para os casos de Jonathan Wild.

        Antes que o romance fosse concluído, chegou o dia da execução. Na carroça, acompanhado por um frade, João do Mato fez sua última viagem como ser vivo. Os enforcamentos em Penúmbria eram feitos num alto carvalho no meio da praça. Ao redor, o povo fazia um círculo.

        Já com a corda no pescoço, João do Mato ouviu um assovio entre os galhos. Ergueu o rosto. Descobriu Cosme com o livro fechado.

        — Conta como termina — pediu o condenado.

        — Lamento dizer, João — respondeu Cosme —, Jonas acaba pendurado pela garganta.

        — Obrigado. O mesmo aconteça comigo! Adeus! — E ele mesmo deu um pontapé na escada, enforcando-se.

        Quando o corpo parou de se debater, a multidão foi embora. Cosme permaneceu até a noite, apoiado no ramo do qual pendia o enforcado. Todas as vezes que um corvo se aproximava para bicar os olhos ou o nariz do cadáver, Cosme o expulsava agitando o gorro.

CALVINO, Ítalo. O barão nas árvores. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991. p. 108-114.

Fonte: Livro – Viva Português 2° – Ensino médio – Língua portuguesa – 1ª edição 1ª impressão – São Paulo – 2011. Ed. Ática. p. 10-6.

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Catre: cama dobrável de lona; cama de ­aspecto rude, tosco.

·        Hirsuto: eriçado, duro.

·        Incubar: preparar, elaborar.

·        Filamento: fio muito fino.

·        Tentilhão: pássaro encontrado na Europa, na Ásia e na África.

·        Torrente: curso de água rápido e impetuoso, geralmente produzido por chuvas abundante.

02 – Antes de levantarmos hipóteses de interpretação para o fragmento do romance “O barão nas árvores”, vamos recuperar algumas informações do texto.

a)   Quais são as personagens principais? Caracterize-as brevemente.

Cosme, jovem que vive nas árvores, e João do Mato, um bandido.

b)   Em que espaços ocorrem as principais ações do texto?

Na estrada, no esconderijo de João do Mato, na casa do fiscal, na prisão, em árvores.

c)   Quanto tempo você imagina que tenha durado o episódio narrado?

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Imagina-se que o desenrolar dos fatos não pode ter levado menos de um mês.

d)   Quem conta a história? Copie o(s) trecho(s) do texto que comprova(m) sua resposta.

O irmão de Cosme. “Meu irmão estava na idade em que começa [...]” ou “Meu irmão tentou passar-lhe romances de amor [...]”.

e)   Quais são os principais problemas enfrentados pelas personagens centrais ao longo do episódio lido?

Para Cosme, há o problema de o bandido lhe exigir cada vez mais livros – e livros de seu agrado. Para João do Mato, o principal problema é que dois outros bandidos, seus antigos protegidos, forçam-no a voltar ao crime; no assalto, o bandido é capturado e condenado à forca.

03 – O encontro entre Cosme e João do Mato se desenvolve em torno de um elemento comum: ambos estão envolvidos na paixão pela leitura. A partir desse momento, a quantidade de livros que leem é imensa, mas a experiência leitora deles é bastante diferente. Aponte algumas diferenças.

      João do Mato devora livros que prendessem sua atenção, narrativas envolventes, sem complexidade. Já Cosme lia não só os livros que pudessem agradar a João do Mato, mas também os que satisfaziam sua própria necessidade leitora, que começava a se tornar mais densa. Para João do Mato, a leitura era um passatempo, para Cosme tornou-se quase um ofício.

04 – A leitura se torna a ocupação principal de Cosme. Mas, também para o bandido ler passa a ser muito importante. Em que momentos da narrativa essa importância fica evidente para o leitor?

      No momento em que João do Mato deixa de atuar como bandido para ficar em seu esconderijo lendo e passa a sair dele apenas para buscar mais sugestões de livros com Cosme. Também no momento em que Hugão e Bonitão tentam conversar com João do Mato sobre a realização de um assalto e ele só os escuta quando os bandidos lhe arrancam o livro das mãos.

05 – Releia os seguintes trechos e complete a frase no caderno:

        “Ao bandido não interessava nada dos interrogatórios e do processo; de um jeito ou de outro, terminaria na forca; mas sua preocupação eram aqueles dias vazios ali na cadeia, sem poder ler, e aquele romance deixado pelo meio. [...]”.

        “— Conta como termina — pediu o condenado.

         — Lamento dizer, João — respondeu Cosme —, Jonas acaba pendurado pela garganta.

         — Obrigado. O mesmo aconteça comigo! Adeus! — E ele mesmo deu um pontapé na escada, enforcando-se.”.

        Pela leitura dos dois trechos, é possível perceber o nível de envolvimento que João do Mato chegou a ter com a leitura, a qual ...

a)   Passou a ocupar todos os espaços de sua existência, a ponto de ele confundir-se com uma das personagens.

b)   Enfraqueceu sua relação com Cosme, porém, tornou-o mais humano, devolvendo-lhe a dignidade perdida.

06 – Nessa narrativa, o espaço onde acontecem os fatos é sempre importante para a construção da trama, mas vamos nos concentrar nos cenários onde as personagens liam: as árvores de Cosme e a caverna de João do Mato. Tente relacionar a caverna à experiência leitora de João do Mato e as árvores à experiência leitora de Cosme.

      A caverna é um lugar fechado, lugar onde a pessoa se isola do mundo, voltando-se apenas para si. Nesse espaço de isolamento, João do Mato tem a possibilidade de substituir sua existência, suas próprias aventuras por aventuras vividas pelas personagens.

      Estar sobre as árvores é uma forma de distanciamento, mas não de alienação, uma vez que a pessoa por cima consegue enxergar tudo o que se passa sem estar necessariamente envolvida nos acontecimentos. E é dessa forma que Cosme vive sua experiência leitora: ele faz escolhas, analisa, compara, faz com que a leitura possa atender a suas necessidades e às necessidades de quem precisar, mas sem se deixar dominar por ela.

OBRA POÉTICA: MARÍLIA DE DIRCEU - LIRA XXXIV - TOMÁS ANTÔNIO GONZAGA - ARCADISMO - COM GABARITO

 Obra poética: Marília de Dirceu – Lira XXXIV

                      Tomás Antônio Gonzaga

Minha bela Marília, tudo passa;

A sorte deste mundo é mal segura;

Se vem depois dos males a ventura,

Vem depois dos prazeres a desgraça.

          Estão os mesmos deuses

Sujeitos ao poder do ímpio Fado:

Apolo já fugiu do céu brilhante,

          Já foi pastor de gado.

 

A devorante mão da negra Morte

Acaba de roubar o bem que temos;

Até na triste campa não podemos

Zombar do braço da inconstante sorte:

          Qual fica no sepulcro,

Que seus avós ergueram, descansado;

Qual no campo, e lhe arranca os frios ossos

          Ferro do torto arado.

 

Ah! enquanto os Destinos impiedosos

Não voltam contra nós a face irada,

Façamos, sim, façamos, doce amada,

Os nossos breves dias mais ditosos.

          Um coração que, frouxo,

A grata posse de seu bem difere,

A si, Marília, a si próprio rouba,

          E a si próprio fere.

 

Ornemos nossas testas com as flores,

E façamos de feno um brando leito;

Prendamo-nos, Marília, em laço estreito,

Gozemos do prazer de sãos Amores.

          Sobre as nossas cabeças,

Sem que o possam deter, o tempo corre;

E para nós o tempo que se passa

          Também, Marília, morre.

 

Com os anos, Marília, o gosto falta,

E se entorpece o corpo já cansado:

Triste, o velho cordeiro está deitado,

E o leve filho, sempre alegre, salta.

          A mesma formosura

É dote que só goza a mocidade:

Rugam-se as faces, o cabelo alveja,

          Mal chega a longa idade.

 

Que havemos de esperar, Marília bela?

Que vão passando os florescentes dias?

As glórias que vêm tarde, já vêm frias,

E pode, enfim, mudar-se a nossa estrela.

          Ah! Não, minha Marília,

Aproveite-se o tempo, antes que faça

O estrago de roubar ao corpo as forças,

          E ao semblante a graça!

GONZAGA, Tomás Antônio. In: MACHADO, Duda (Org.), op. cit., p. 56-7.

Fonte: Livro – Viva Português 1° – Ensino médio – Língua portuguesa – 2ª edição 1ª impressão – São Paulo – 2014. p. 297-9.

Entendendo a obra poética:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Apolo: deus grego da luz, da juventude e da música.

·        Campa: túmulo, sepultura.

·        Diferir: adiar.

·        Ditoso: feliz, venturoso.

·        Ímpio: impiedoso.

·        Fado: destino, sorte.

·        Ventura: felicidade, boa sorte.

02 – Qual é, em síntese, a proposta que o eu lírico faz a Marília?

      O eu lírico propõe a Marília aproveitar da maneira mais doce e agradável o tempo, ou que propõe aproveitarem o prazer do amor enquanto ainda há tempo.

03 – Quais são os argumentos do eu lírico para convencer a amada de sua proposta?

      Segundo o eu lírico, tudo passa, a sorte de um dia pode dar lugar às desventuras do outro, aquilo que se tem não existirá sempre e, além disso, as pessoas envelhecem, perdem a beleza e a disposição. Portanto, o tempo presente precisa ser aproveitado.

04 – O poeta encontrou diversos meios de traduzir a mesma ideia. Note que o poema é composto de elementos concretos, que ilustram um conceito abstrato, tornando-o mais compreensível. Copie as tabelas abaixo em seu caderno e relacione os versos às ideias sugerias por eles.

a)   “Estão os mesmos deuses / Sujeitos ao poder do ímpio Fado: / Apolo já fugiu do céu brilhante, / Já foi pastor de gado.” IV.

b)   “Até na triste campa não podemos / Zombar do braço da inconstante sorte:” II.

c)   “Um coração que, frouxo, / A grata posse de seu bem difere, / A si, Marília, a si próprio rouba, / E a si próprio fere.” III.

d)   “Triste, o velho cordeiro está deitado, / E o leve filho, sempre alegre, salta.”. I.

I – Com o passar do tempo, as pessoas perdem a alegria e o vigor comuns nos mais jovens.

II – Nem mesmo diante da morte devemos rir ou desdenhar de quanto pode o destino.

III – Faz mal a si mesma a pessoa que alia as suas chances, não sabe aproveitar as oportunidades que tem.

IV – Até a sorte dos deuses muda, como aconteceu com o próprio Apolo.

05 – Você concorda com as ideias expressas no poema? Por que? Elabore argumentos para explicar sua resposta.

      Resposta pessoal do aluno.

06 – Tomás Antônio Gonzaga trata liricamente a ideia de que o tempo passa, a sorte muda e a coisa certa a fazer é viver o prazer e o amor do momento, sem espera. Entretanto, por acreditarem que se deve desfrutar totalmente a vida, a cada instante presente, muitas pessoas acabam tomando decisões sem pensar nas consequências. Tente se lembrar de algum caso que ilustre o lado pernicioso de viver apenas o presente. Se quiser, conte o caso para os colegas.

      Resposta pessoal do aluno.