CONTO: A liga dos cabeças vermelhas
Arthur Conan Doyle
Um dia de outono do ano passado, ao
fazer uma visita a meu amigo Mr. Sherlock Holmes, encontrei-o entretido numa
conversa com um cavalheiro de certa idade, muito gordo, rosto vermelho e uma
cabeleira cor de fogo. Pedindo desculpas pela intromissão, já me retirava
quando Holmes me puxou abruptamente para a sala e fechou a porta atrás de mim.
— Não poderia ter chegado em melhor
hora, meu caro Watson — disse cordialmente.
— Receei que estivesse ocupado.
— De fato, estou. E muito.
— Nesse caso, posso esperar na outra
sala.
— De maneira alguma. Sr. Wilson, este
cavalheiro tem sido meu assistente e colaborador em muitos dos meus casos mais
bem-sucedidos, não tenho dúvidas de que me será de grande valia também no seu.
O gordo cavalheiro soergueu-se
ligeiramente e fez-me um cumprimento de cabeça, lançando-me uma olhadela
inquisitiva com seus olhinhos empapuçados.
— Acomode-se no canapé — disse-me
Holmes, voltando a refestelar-se em sua poltrona e unindo as pontas dos dedos,
como era seu costume quando imerso em reflexão. — Sei, meu caro Watson, que
você partilha do meu gosto por tudo que é extravagante, que escapa das
convenções e da pasmaceira do dia a dia. Mostrou seu gosto por essas coisas com
o entusiasmo com que se dispôs a relatar, e, se me permite dizê-lo, a embelezar
um pouco, tantas de minhas pequenas aventuras.
— Seus casos realmente foram do maior
interesse para mim.
— Talvez lembre que comecei outro dia, pouco
antes de enfrentarmos aquele problema muito simples apresentado por Miss Mary
Sutherland, que, se quisermos encontrar efeitos estranhos e combinações
extraordinárias, devemos procurar na própria vida, que vai sempre muito mais longe
do que qualquer esforço da imaginação.
— Uma posição que tomei a liberdade de pôr
em dúvida.
— De fato, doutor, mas terá de
concordar comigo, pois do contrário continuarei a impingindo fato sobre fato,
até que sua razão desabe sob o peso deles e reconheça que estou certo. Pois
bem, Mr. Jabez Wilson, aqui, teve a bondade de recorrer a mim esta manhã e
iniciar uma narrativa que promete ser das mais singulares que ouço nos últimos tempos.
Você já me ouviu observar que as coisas mais estranhas e insólitas estão muitas
vezes associadas não aos maiores, mas aos menores crimes, e às vezes mesmo a
casos em que há margem para se duvidar de algum crime propriamente dito foi
cometido. Pelo que ouvi até agora não me é possível dizer se o presente caso configura
ou não um crime, mas o curso dos acontecimentos está sem dúvida entre os mais incomuns
de que já tive notícia. Talvez pudesse fazer a grande gentileza, Mr. Wilson, de
recomeçar sua narrativa. Peço-o não apenas porque meu amigo, o Dr. Watson, não ouviu
o início, mas também porque a natureza peculiar da história deixa-me ansioso
por não ouvir dos seus lábios todos os detalhes possíveis. Em regra, depois de
ouvir uma ligeira indicação do curso dos eventos, sou capaz de me orientar com
base nos milhares de outros casos semelhantes que me acorrem à memória. Na
presente situação, porém, sou obrigado a admitir, em sã consciência, que os
fatos parecem inauditos.
O corpulento cliente estufou o peito,
revelando uma ponta de orgulho, e puxou do bolso interno do paletó um jornal
sujo e amassado. Enquanto ele passava os olhos pela coluna de anúncios, a
cabeça espichava e o jornal alisado sobre os joelhos, dei-lhe uma boa espiada,
esforçando-me por detectar, ao estilo de meu companheiro, os indícios que seu
traje ou sua aparência poderiam conter.
Mas minha inspeção não me revelou
grande coisa. Nosso visitante tinha todas as características do comerciante
britânico banal e mediano; era gordo, presunçoso e bronco. Usava calças bem
largas de lã cinza quadriculada, uma sobrecasaca preta cuja limpeza deixava a
desejar, desabotoada, e um colete pardacento sobre o qual brilhava uma grossa
corrente Albert de latão de que pendia, como um berloque, uma peça de metal
quadrada e furada. Em cima de uma cadeira, a seu lado, via-se um desbotado
sobretudo marrom, a gola de veludo amassada. No conjunto, por mais que eu
olhasse, nada havia de notável no homem, exceto seu cabelo de um ruivo
chamejante e uma expressão de extrema consternação e contrariedade estampada no
rosto.
O olhar arguto de Sherlock Holmes
percebeu rapidamente do que eu me ocupava, e, sacudiu a cabeça com um sorriso ao
notar meu exame atento, comentou: — Além das evidências de que ele trabalhou
como operário em alguma época, cheira rapé, é maçom, esteve na China e tem
escrito muito ultimamente, não consigo deduzir mais nada.
Mr. Jabez Wilson teve um sobressalto na
sua cadeira; seu dedo indicador estava no jornal, mas os olhos no meu
companheiro.
— Céus! Como ficou sabendo de tudo
isso, Mr. Holmes? — perguntou. — Como soube, por exemplo, que fui trabalhador
braçal? É a mais perfeita verdade, comecei como carpinteiro de navio.
— Suas mãos, meu caro senhor. A direita
é bem maior que a esquerda. Trabalhou com ela e os músculos são mais desenvolvidos.
— Mas e o rapé. E a maçonaria?
— Não insultarei sua inteligência
dizendo-lhe como adivinhei isso, especialmente porque, e na verdade contrariando
as severas regras de sua ordem, o senhor usa um alfinete de gravata com arco e
compasso.
— Ah! Claro, esqueci-me disso. Mas, e a
escrita?
— Que outra coisa poderia indicar esse
seu punho direito com uns doze centímetros tão lustrosos e a manga esquerda
puída perto do cotovelo, onde a esfrega na mesa?
— Bem, e a China?
— O peixe que tem tatuado logo acima do
pulso direito só poderia ter sido feito na China. Fiz um pequeno estudo das
tatuagens e cheguei mesmo a contribuir para a literatura sobre o assunto. Essa
habilidade de pintar escamas de peixe de um cor-de-rosa delicado é inteiramente
peculiar à China. Quando, além disso, vejo uma moeda chinesa pendurada na
corrente do seu relógio, a questão se torna ainda mais simples.
Mr. Jabez Wilson deu uma gargalhada.
— Vejam só! A princípio pensei que o
senhor havia feito algo de extraordinário, mas vejo que, afinal, não foi nada
de mais.
— Começo a achar, Watson — disse Holmes
—, que cometo um erro ao explicar. Omne ignotum pro magnifico, você sabe, e
minha reputação, já modesta, ficará arruinada se eu continuar sendo tão franco.
[...]
DOYLE, Arthur Conan.
A liga dos cabeças vermelhas. As aventuras de Sherlock Holmes. Tradução de
Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro Zahar, 2010.
Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 7º
ano – Ensino Fundamental – IBEP 4ª edição São Paulo 2015 p. 177-180.
Entendendo o texto:
01 – Quais são as personagens que aparecem no texto?
Sherlock Holmes, Watson e Jabez Wilson.
02 – Transcreva um trecho do texto que nos permite imaginar que Sherlock
Holmes é um detetive.
“Sr. Wilson, este
cavalheiro tem sido meu assistente e colaborador em muitos dos meus casos mais bem-sucedidos,
não tenho dúvidas de que me será de grande valia também no seu.” Ou “Pois bem,
Mr. Jabez Wilson, aqui, teve a bondade de recorrer a mim esta manhã e iniciar
uma narrativa que promete ser das mais singulares que ouço nos últimos tempos.
Você já me ouviu observar que as coisas mais estranhas e insólitas estão muitas
vezes associadas não aos maiores, mas aos menores crimes, e às vezes mesmo a
casos em que há margem para se duvidar de algum crime propriamente dito foi
cometido.”
03 – Releia o trecho a
seguir:
“O
olhar arguto de Sherlock Holmes percebeu rapidamente do que eu me ocupava, e,
sacudiu a cabeça com um sorriso ao notar meu exame atento, comentou: — Além das
evidências de que ele trabalhou como operário em alguma época, cheira rapé, é
maçom, esteve na China e tem escrito muito ultimamente, não consigo deduzir
mais nada.”. Qual era a possível intenção de Sherlock Holmes ao fazer uma
análise minuciosa da figura de seu cliente, Jabez Wilson?
Sherlock quis
provar a Wilson que era um bom investigador e, portanto, capaz de desvendar o
crime que ele havia lhe contado. Além disso, quis mostrar a Watson que
conseguia, sem esforço de imaginação, encontrar evidências sobre a história de
vida de seu cliente.
04 – Identifique cada
detalhe que Sherlock observou para descobrir os aspectos da vida de seu
cliente. Em seguida, indique o que cada detalhe lhe revelou.
As
mãos: a direita era mais desenvolvida que a esquerda, o que lhe permitiu
concluir que o cliente trabalhara em serviço pesado utilizando as mãos. Ser maçom: o cliente usava um prendedor
de gravata com esquadro e compasso, símbolos da maçonaria. Escrever muito nos últimos tempos: o homem apresentava uma marca
lustrosa no punho direito da camisa e outra, puída, no cotovelo esquerdo,
demonstrando que se apoiava em uma escrivaninha. Ter estado na China: a tatuagem de peixe no punho, com as escamas
coloridas de rosa próprias daquela região, e a confirmação com o uso de moeda
chinesa pendurada à corrente. Cheirar
rapé: O cheiro que ele exalava.
05 – Além de excelente
observador, Sherlock possui outras características que o ajudam a tirar suas
conclusões. Quais são elas?
Além de
observador, Sherlock é uma pessoa vivida, que tem experiências: já escreveu um
tratado sobre as tatuagens chinesas, conhece os símbolos da ordem da maçonaria,
etc. Seus conhecimentos lhe permitem estabelecer relações e tirar conclusões.
Ele também domina o método dedutivo, essencial para relacionar os detalhes que
observa ao repertório que acumulou.
06 – A expressão latina “Omne ignotum pro magnifico” pode ser
traduzida da seguinte forma: “tudo que é ignorado é tido como magnífico”.
Baseando-se nessa informação, responda: Por que Sherlock afirma que sua
reputação ficará arruinada se ele continuar sendo tão franco?
Sherlock sabe que, se continuar mostrando
para as pessoas como chega às suas conclusões, elas perceberão que seu método
não é sobrenatural, mas simples, pois trabalha com a lógica e as evidências.
07 – Releia o primeiro
parágrafo do texto e responda: Que marcas textuais nos permitem afirmar que o
narrador da história e uma personagem que participa da trama?
O uso do verbo e
dos pronomes pessoais na primeira pessoa do singular: “encontrei-o”, “já me
retirava quando Holmes me puxou abruptamente para a sala e fechou a porta atrás
de mim”.
08 – Que personagem nos
conta a história? Identifique-a e copie o trecho do texto em que o detetive
demonstra ter consciência de que essa personagem é a divulgadora de suas
aventuras.
Watson é o
narrador das histórias de Sherlock. “— Sei, meu caro Watson, que você partilha
do meu gosto por tudo que é extravagante, que escapa das convenções e da
pasmaceira do dia a dia. Mostrou seu gosto por essas coisas com o entusiasmo
com que se dispôs a relatar, e, se me permite dizê-lo, a embelezar um pouco,
tantas de minhas pequenas aventuras.”
09 – Em sua opinião, qual
pode ser a intenção de um escritor ao optar pelo foco narrativo em 1ª pessoa?
Se o foco narrativo está em 1ª pessoa, o
leitor lê os fatos narrados como verdadeiros, pois eles foram testemunhados por
uma personagem que os vivenciou. Nesse caso, portanto, o modo de ver os fatos
restringe-se à visão de uma personagem, que pode ou não contar a verdade dos
fatos ao leitor.
10 – Leia estes trechos do
texto:
I – “Um dia, no outono do ano passado, ao fazer uma [...]”.
II – “De fato, estou. [...]”.
III – “[...] Peço-o não apenas [...]”.
IV – “Bem, e a China?”.
V – “Suas mãos, meu caro senhor”.
Quando lemos esses trechos
isoladamente, sem nos esquecermos de que foram retirados de um texto, quais
deles não podem ser compreendidos? Por quê?
O primeiro e o
terceiro enunciados, pois não apresentam uma ideia completa, não têm sentido
completo.
11 – Agora, leia estes
outros enunciados:
I – “Vejam só!”.
II – “Mas e a escrita?”.
a)
Eles apresentam sentido completo?
Sim, ambos têm sentido completo.
b)
Observe sua estrutura e indique em que se
diferenciam.
O enunciado I possui verbo e o II, não.