Conto: A terra dos meninos pelados –
Fragmento.
Graciliano Ramos
Havia um menino diferente dos outros
meninos. Tinha o olho direito preto, o esquerdo azul e a cabeça pelada. Os
vizinhos mangavam dele e gritavam:
— Ó pelado!
Tanto gritaram que ele se acostumou,
achou o apelido certo, deu para se assinar a carvão, nas paredes: Dr. Raimundo
Pelado. Era de bom gênio e não se zangava; mas os garotos dos arredores fugiam
ao vê-lo, escondiam-se por detrás das árvores da rua, mudavam a voz e
perguntavam que fim tinham levado os cabelos dele. Raimundo entristecia e
fechava o olho direito. Quando o aperreavam demais, aborrecia-se, fechava o
olho esquerdo. E a cara ficava toda escura.
Não tendo com quem entender-se, Raimundo
Pelado falava só, e os outros pensavam que ele estava malucando.
Estava nada! Conversava sozinho e
desenhava na calçada coisas maravilhosas do país de Tatipirun, onde não há
cabelos e as pessoas têm um olho preto e outro azul.
Um dia em que ele preparava, com areia
molhada, a serra de Taquaritu e o rio das Sete Cabeças, ouviu os gritos dos
meninos escondidos por detrás das árvores e sentiu um baque no coração.
— Quem raspou a cabeça dele? perguntou
o moleque do tabuleiro.
—
Como botaram os olhos de duas criaturas numa cara? berrou o italianinho da
esquina.
— Era melhor que me deixassem quieto,
disse Raimundo baixinho. Encolheu-se e fechou o olho direito. Em seguida, foi
fechando o olho esquerdo, não enxergou mais a rua. As vozes dos moleques
desapareceram, só se ouvia a cantiga das cigarras. Afinal as cigarras se
calaram.
Raimundo levantou-se, entrou em casa,
atravessou o quintal e ganhou o morro. Aí começaram a surgir as coisas
estranhas que há na terra de Tatipirun, coisas que ele tinha adivinhado, mas
nunca tinha visto. Sentiu uma grande surpresa ao notar que Tatipirun ficava ali
perto de casa. Foi andando na ladeira, mas não precisava subir: enquanto
caminhava, o monte ia baixando, baixando, aplanava-se como uma folha de papel.
E o caminho, cheio de curvas, estirava-se como uma linha. Depois que ele
passava, a ladeira tornava a empinar-se e a estrada se enchia de voltas
novamente.
— Querem ver que isto por aqui já é a
serra de Taquaritu? pensou Raimundo.
— Como é que você sabe? roncou um
automóvel perto dele.
O pequeno voltou-se assustado e quis
desviar-se, mas não teve tempo. O automóvel estava ali em cima, pega não pega.
Era um carro esquisito: em vez de faróis, tinha dois olhos grandes, um azul,
outro preto.
— Estou frito, suspirou o viajante
esmorecendo.
Mas o automóvel piscou o olho preto e
animou-o com um riso grosso de buzina:
— Deixe de besteira, seu Raimundo. Em
Tatipirun nós não atropelamos ninguém.
Levantou as rodas da frente, armou um
salto, passou por cima da cabeça do menino, foi cair cinquenta metros adiante e
continuou a rodar fonfonando. Uma laranjeira que estava no meio da estrada
afastou-se para deixar a passagem livre e disse toda amável:
— Faz favor.
— Não se incomode, agradeceu o pequeno.
A senhora é muito educada.
— Tudo aqui é assim, respondeu a
laranjeira.
— Está se vendo. A propósito, por que é
que a senhora não tem espinhos?
— Em Tatipirun ninguém usa espinhos,
bradou a laranjeira ofendida. Como se faz semelhante pergunta a uma planta decente?
— É que sou de fora, gemeu Raimundo
envergonhado. Nunca andei por estas bandas. A senhora me desculpe. Na minha
terra os indivíduos de sua família têm espinhos.
— Aqui era assim antigamente, explicou
a árvore. Agora os costumes são outros. Hoje em dia, o único sujeito que ainda
conserva esses instrumentos perfurantes é o espinheiro-bravo, um tipo selvagem,
de maus bofes. Conhece-o?
— Eu não senhora. Não conheço ninguém
por esta zona.
— É bom não conhecer. Aceita uma
laranja?
— Se a senhora quiser dar, eu aceito.
A árvore baixou um ramo e entregou ao
pirralho uma laranja madura e grande.
— Muito agradecido, dona Laranjeira. A
senhora é uma pessoa direita. Adeus! Tem a bondade de me ensinar o caminho?
— É esse mesmo. Vá seguindo sempre.
Todos os caminhos são certos.
— Eu queria ver se encontrava os
meninos pelados.
— Encontra. Vá seguindo. Andam por aí.
— Uns que têm um olho azul e outro
preto?
— Sem dúvida. Toda gente tem um olho
azul e outro preto.
— Pois até logo, dona Laranjeira. Passe
bem.
— Divirta-se. [...]
Raimundo deixou a serra de Taquaritu e
chegou à beira do rio das Sete Cabeças, onde se reuniam os meninos pelados, bem
uns quinhentos, alvos e escuros, grandes e pequenos, muito diferentes uns dos
outros. Mas todos eram absolutamente calvos, tinham um olho preto e outro azul.
O
viajante rondou por ali uns minutos, receoso de puxar conversa, pensando nos
garotos que zombavam dele na rua. Foi-se chegando e sentou-se numa pedra, que
se endireitou para recebe-lo. Um rapazinho aproximou-se, examinando-lhe,
admirado, a roupa e os sapatos. Todos ali estavam descalços e cobertos de panos
brancos, azuis, amarelos, verdes, roxos, cor das nuvens do céu e cor do fundo
do mar, inteiramente iguais às teias que as aranhas vermelhas fabricavam.
— Eu queria saber se isto aqui é o país
de Tatipirun, começou Raimundo.
— Naturalmente, respondeu o outro.
Donde vem você?
Raimundo inventou um nome para a cidade
dele que ficou importante:
— Venho de Cambacará. Muito longe.
— Já ouvimos falar, declarou o rapaz.
Fica além da serra, não é isto?
— É isso mesmo. Uma terra de gente
feia, cabeluda, com olhos de uma cor só. Fiz boa viagem e tive algumas
aventuras.
[...]
Raimundo deixa o rapazinho para trás,
prossegue seu caminho e, em seguida, encontra com um tronco, que lhe diz:
— Espera aí. Um instante. Quero
apresentá-lo à aranha vermelha, amiga velha que me visita sempre. Está aqui,
vizinha. Este rapaz é nosso hóspede.
A aranha vermelha balançou-se no fio,
espiando o menino por todos os lados. O fio se estirou até que o bichinho
alcançou o chão. Raimundo fez um cumprimento:
— Boa tarde, dona Aranha. Como vai a
senhora?
— Assim, assim, respondeu a visitante.
Perdoe a curiosidade. Por que é que você põe esses troços em cima do corpo?
— Que troços? A roupa? Pois eu havia de
andar nu, dona Aranha? A senhora não está vendo que é impossível?
— Não é isso, filho de Deus. Esses
arreios que você usa são medonhos. Tenho ali umas túnicas no galho onde moro.
Muito bonitas. Escolha uma.
Raimundo chegou-se à árvore próxima e
examinou desconfiado uns vestidos feitos daquele tecido que as aranhas
vermelhas preparam. Apalpou a fazenda, tentou rasgá-la, chegou-a ao rosto para
ver se era transparente. Não era.
— Eu nem sei se poderei vestir isto,
começou hesitando. Não acredito.
— Que é que você não acredita?
perguntou a proprietária da alfaiataria.
— A senhora me desculpa, cochichou
Raimundo. Não acredito que a gente possa vestir roupa de teia de aranha.
— Que teia de aranha! rosnou o tronco.
Isso é seda e da boa. Aceite o presente da moça.
— Então muito obrigado, gaguejou o
pirralho. Vou experimentar.
Escolheu uma túnica azul, escondeu-se
no mato e, passados minutos, tornou a mostrar-se vestido como os habitantes de
Tatipirun. Descalçou-se e sentiu nos pés a frescura e a maciez da relva. Lá em
cima os discos enormes das vitrolas giravam; as cigarras chiavam músicas em
cima deles, músicas como ninguém ouviu; sombras redondas espalhavam-se no chão.
— Este lugar é ótimo, suspirou
Raimundo. Mas acho que preciso voltar. Preciso estudar a minha lição de
geografia.
Nisto ouviu uma algazarra e viu através
dos ramos a população de Tatipirun correndo para ele:
— Cadê o menino que veio de Cambacará?
Eram milhares de criaturas miúdas, de cinco a dez anos, todas cobertas de teias
de aranha, descalças, um olho preto e outro azul, as cabeças peladas nuas.
Não havia pessoas grandes,
naturalmente.
[...]
RAMOS, Graciliano.
Alexandre e outros heróis. São Paulo: Record, 1991.
Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 8º
ano – Ensino Fundamental – IBEP 5ª edição – São Paulo, 2018, p. 133-7.
Entendendo o conto:
01 – Como eram fisicamente as pessoas e seres de Tatipirun?
A maioria dos habitantes se assemelhava ao menino,
pois tinha a cabeça pelada e um olho preto e outro azul. Até mesmo o automóvel
tinha, no lugar dos faróis, dois olhos parecidos com os do menino e a
laranjeira não tinha espinhos.
02 – Identifique e copie o trecho em que Raimundo passa de seu lugar de
origem para a terra de Tatipirun.
“Raimundo
levantou-se, entrou em casa, atravessou o quintal e ganhou o morro. Aí
começaram a surgir as coisas estranhas que há na terra de Tatipirun, coisas que
ele tinha adivinhado, mas nunca tinha visto.”
03 – Ao chegar àquele novo mundo, Raimundo conhece várias personagens.
Como elas agem com o menino? Transcreva um trecho do texto que possa ter como
tema uma atitude de gentileza.
Elas eram dóceis, compreensivas e gentis, ofereciam
a ele todo tipo de assistência que contribuísse para o seu bem-estar. Um
exemplo disso está no seguinte trecho:
“[...] Uma
laranjeira que estava no meio da estrada afastou-se para deixar a passagem
livre e disse toda amável:
— Faz favor.
— Não se incomode, agradeceu o pequeno.
A senhora é muito educada.”
04 – Releia o que diz a aranha a respeito das roupas de Raimundo:
“[...] Esses arreios que você usa são medonhos. [...]”.
a)
O que a aranha quis dizer com essa frase?
Que as roupas eram desagradáveis, não eram nada confortáveis;
impediam os movimentos do menino e não o deixavam à vontade.
b)
O que a frase revela sobre a maneira como
viviam os habitantes da terra visitada pelo menino?
Revela que os habitantes de Tatipirun viviam mais confortavelmente e
com maior liberdade e harmonia do que os do lugar de origem de Raimundo.
c)
Raimundo gostou do estilo de vida daquele
lugar? Como você chegou a essa resposta?
Sim, ele manifestou várias vezes seu encantamento enquanto ia
conversando com os habitantes que encontrava. Exemplo possível: “Este lugar é
ótimo, suspirou Raimundo.”
05 – Releia o diálogo a
seguir, retirado do texto:
“[...] Uma laranjeira que estava no
meio da estrada afastou-se para deixar a passagem livre e disse toda amável:
— Faz favor.
— Não se incomode, agradeceu o pequeno.
A senhora é muito educada.
— Tudo aqui é assim, respondeu a
laranjeira.
— Está se vendo. A propósito, por que é
que a senhora não tem espinhos?
— Em Tatipirun ninguém usa espinhos,
bradou a laranjeira ofendida. Como se faz semelhante pergunta a uma planta
decente?”
·
Releia a última frase do diálogo e
identifique o trecho em que há emprego de linguagem metafórica. Em seguida,
explique a metáfora.
A linguagem metafórica é usada no trecho “ninguém usa espinhos”. A
metáfora se dá pela comparação entre o espinho, que é algo que machuca, fere, e
as atitudes agressivas dos meninos de onde Raimundo morava. Em Tatipirun as
pessoas não eram indelicadas umas com as outras, não havia troca de ofensas.
06 – Quais eram as reações
dos meninos da rua onde Raimundo morava diante da aparência do garoto? Em sua
opinião, por que isso ocorria?
A aparência de
Raimundo gerava discriminação, gozarão e maus-tratos por parte dos outros
meninos. Provavelmente, isso acontecia porque eles não aceitavam o fato de
Raimundo ser diferente deles.
07 – E em Tatipirun? De que
modo a aparência de Raimundo era encarada pelos habitantes desse lugar?
Em Tatipirun, a
aparência de Raimundo era o motivo de sua identificação com os habitantes do
lugar, já que os meninos de lá tinham as mesmas características e ele se sentia
acolhido por todos.
08 – Identifique no texto
quais personagens estão relacionadas aos universos indicados a seguir:
a)
Ao mundos dos humanos.
Os outros meninos.
b)
Ao universo dos objetos materiais (inanimados
que se tornaram animados na história).
O automóvel.
c)
Ao mundo animal.
A aranha.
d)
Ao mundo vegetal.
A laranjeira e o tronco.
09 – De que forma os
elementos mágicos estão presentes na terra dos meninos pelados?
Seres do mundo
animal e vegetal e objetos inanimados que adquirem características humanas
(agem e conversam com o menino); automóvel, aranha, laranjeira, ladeira; havia
discos e vitrolas que giravam no ar, músicas estranhas, túnicas feitas de teia
de aranha, cigarras chiando músicas que nunca ninguém ouviu, sombras redondas
espalhadas no chão.
10 – Localize no texto e
copie um trecho que você considere belo e poético, que lhe chame a atenção pela
maneira como o autor seleciona e combina as palavras. Explique por que escolheu
esse trecho.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: “Descalçou-se
e sentiu nos pés a frescura e a maciez da relva. Lá em cima os discos enormes
das vitrolas giravam; as cigarras chiavam músicas em cima deles, músicas como
ninguém ouviu; sombras redondas espalhavam-se no chão.”.