quarta-feira, 24 de junho de 2020

POEMA: BASTA PENSAR EM SENTIR - FERNANDO PESSOA - COM GABARITO

Poema: Basta Pensar em Sentir

                                                             Fernando Pessoa

Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar de andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.
Viver é não conseguir.

Fernando pessoa. Poesias Inéditas (1930-1935). Lisboa: Ática. 1955. (imp. 1990). p. 73.

Entendendo o poema:

01 – O poema é um gênero textual do discurso literário. Quais são as características de linguagem que possibilitam a identificação de um poema?

      Organização em versos e estrofes; linguagem figurada; presença facultativa de rimas; maior grau de subjetividade e expressividade.

02 – Qual é a quantidade de estrofes? E de versos?

      Apenas uma estrofe, com nove versos.

03 – Há ocorrência de rimas em todos os versos?

      Sim.

04 – Como se caracterizam as rimas, quanto à classe gramatical e as terminações?

      As palavras que rimam são verbos da primeira e da terceira conjugação, isto é, terminados em –ar, e –ir.

05 – Observe a relação de sentido entre os versos: “Meu coração faz sorrir / Meu coração a chorar”. Há entre os versos uma oposição semântica, isto é, uma oposição de sentidos. Quais são as palavras que enfatizam essa oposição?

      A oposição de sentidos faz-se entre as palavras sorrir e chorar.

06 – Há outros versos e/ou expressões no poema que transmitem essa mesma ideia de oposição?

      Sim, também apresentam sentidos opostos as palavras ficar/ir e chegar/partir.

07 – Qual a figura de linguagem que consiste na utilização de palavras, expressões ou frases que se opõem quanto ao sentido?

      A figura de linguagem é “antítese”.

08 – Agora, observe os seguintes versos:

“Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar de andar,
Depois de ficar e ir.”

        O poeta refere-se ao coração, atribuindo-lhe características humanas: “fazer sorrir”, “chorar”, “parar de andar”, “ficar” e “ir”. Trata-se de uma linguagem metafórica, figurada, mas há uma figura de linguagem específica para nomear a atribuição de aspectos humanos ao que não é humano. Qual é a figura?

      A figura é personificação ou prosopopeia.

09 – O último verso do poema ilustra a ocorrência de metáfora, figura de linguagem que evidencia duas características semânticas comuns entre dois conceitos ou ideias: “Viver é não conseguir”. Releia o poema e a conclusão contida no último verso. Procure interpretar qual é o sentido da vida para o enunciador. Agora, assinale a alternativa que melhor sintetiza a ideia apresentada no poema:

a)   A vida é bela, mesmo com todas as contradições.

b)   Não há um sentido definido para a vida.

c)   A vida é busca constante entre contradições.

d)   Viver é fácil, mesmo em caminhos difíceis.

 


POEMA: CARTÃO DE NATAL - JOÃO CABRAL DE MELO NETO - COM GABARITO

Poema:  Cartão de Natal

               João Cabral de Melo Neto

Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens 
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno, 
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de voo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:

Que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas 
suas molas, 
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem 
o sim comer o não.

                                        Texto extraído do livro "João Cabral de Melo Neto - Obra Completa", Editora Nova Aguilar, 1994.

Entendendo o poema:

01 – No poema, João Cabral:

a)   Critica o egoísmo, e manifesta o desejo de que na passagem do Natal as pessoas se tornem generosas e façam o sim comer o não.

b)   Demonstra a sua aversão às festividades natalinas, pois nestes dias a aventura parece em ponto de voo, mas depois a rotina segue como sempre.

c)   Critica a atração núbil para o dente daqueles que transformam o Natal em uma apologia ao consumo e se esquecem do seu caráter religioso.

d)   Observa com otimismo que o Natal é um momento de renovação em que os homens se transformam para melhor e fazem o ferro comer a ferrugem.

e)   Manifesta a esperança de que o Natal traga, de fato, uma transformação, e que, ao contrário de outros natais, seja possível começar novo caderno.

02 – É CORRETO perceber no poema uma equivalência entre:

a)   Ferrugem e aventura.

b)   Dente e entusiasmo.

c)   Caderno e vida.

d)   Sementes e pão do dia.

e)   Ferro e atração núbil.

03 – “Pois que reinaugurando essa criança...”. O segmento grifado acima pode ser substituído, no contexto, por:

a)   Mesmo que estejam.

b)   Apesar de estarem.

c)   Ainda que estejam.

d)   Como estão.

e)   Mas estão.

04 – “... que desta vez não perca esse caderno...”. Com a frase acima, o poeta:

a)   Alude a uma impossibilidade.

b)   Exprime um desejo.

c)   Demonstra estar confuso.

d)   Revela sua hesitação.

e)   Manifesta desconfiança.

 

 


CRÔNICA: A ARTE DE SER AVÓ - RACHEL DE QUEIROZ - COM GABARITO

Crônica: A arte de ser avó

          Rachel de Queiroz

        Quarenta anos, quarenta e cinco. Você sente, obscuramente, nos seus ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda envelhecer, é claro. A velhice tem suas alegrias, as sua compensações – todos dizem isso, embora você pessoalmente, ainda não as tenha descoberto – mas acredita.

        Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade.

        Não de amores nem de paixão; a doçura da meia-idade não lhe exige essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos cheios de problemas, que hoje são seus filhos, que têm sogro e sogra, cônjuge, emprego, apartamento e prestações, você não encontra de modo algum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres – não são mais aqueles que você recorda.

        E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis – nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino que se lhe é “devolvido”. E o espantoso é que todos lhe reconhecem o seu direito sobre ele, ou pelo menos o seu direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo ou decepção, se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele amor que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.

        Sim, tenho a certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado pelos arroubos juvenis.

        Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados, pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos. Se o Doutor Fausto fosse avô, trocaria calmamente dez Margaridas por um neto…

        No entanto! Nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela, em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do neto. Não importa que ela hipocritamente, ensine a criança a lhe dar beijos e a lhe chamar de “vovozinha” e lhe conte que de noite, às vezes, ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais. No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições respectivas, a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes ao da esposa e da amante nos triângulos conjugais. A mãe tem todas as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele, dá-lhe banho, veste-o, embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.

        Já a avó não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não programadas. Leva a passear, “não ralha nunca”. Deixa lambuzar de pirulito. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das horas de ressentimento, o último recurso dos momentos de opressão, a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite passada em sua casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura. Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar a sopa e comer croquetes, tomar café, mexer na louça, fazer trem com as cadeiras na sala, destruir revistas, derramar água no gato, acender e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser – e até fingir que está discando o telefone. Riscar a parede com lápis dizendo que foi sem querer – e ser acreditado!

        Fazer má-criação aos gritos e em vez de apanhar ir para os braços do avô, e lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação moderna…

        Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais requintados prazeres da alma. Porém não estarão muito acima da alegria de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós com seus filhotes magricelas ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!

        E quando você vai embalar o neto e ele, tonto de sono, abre um olho, lhe reconhece, sorri e diz “Vó”, seu coração estala de felicidade, como pão ao forno.

        E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em que a mãe castiga, e ele olha para você, sabendo que, se você não ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade.

        Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menino – involuntariamente! – bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado, mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os olhos arregalados, o beicinho pronto para o choro; e depois o sorriso malandro e aliviado porque “ninguém” se zangou, o culpado foi a bola mesma, não foi, vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é relíquia: não tem dinheiro que pague.

Rachel de Queiroz, do livro “O homem e o tempo: 74 crônicas escolhidas”. 1976.

Entendendo a crônica:

01 – O título de um texto é sempre primeiro a levantar expectativas quanto ao seu conteúdo. A partir dele fazemos uma série de suposições iniciais que depois podem ser modificados ou confirmadas. Que emoções e ideias foram despertadas pela leitura dessa crônica? Comente.

      Que arte de ser avó é emocionante, pois se reconhece o direito de amar com extravagância.

02 – O narrador do texto é em:

a)   1ª pessoa (participa da história).

b)   3ª pessoa (observa a história de fora e conta).

c)   3ª pessoa (e, às vezes, permite certas intromissões narrado em 1ª pessoa).

03 – Em que trecho da crônica observa-se um humor sutil e a emoção de ser avó?

      “E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente grátis – nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um estranho, é um menino que se lhe é “devolvido”.

04 – Existe uma relação entre a situação vivida pela personagem da crônica e a de nosso dia-a-dia? Justifique.

      Sim. A arte de ser avó é presente de Deus. Difícil explicar, pura emoção.

05 – A crônica lida predomina a ação ou a reflexão? Comente.

      A reflexão de que se cumpre o seu papel biológico de preservação da espécie (família) que continuará a vida através do neto.

06 – A crônica é um gênero discursivo que mescla a tipologia narrativa com trechos refletivos e, em alguns casos, argumentativos. O que predomina nessa crônica?

      Predomina a argumentação, a descrição e também a narração.

 

 


CRÔNICA: VOU-ME EMBORA DESTA CASA! MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

Crônica: Vou-me embora desta casa!

              Moacyr Scliar

        Existe alguma coisa pior do que ter quatro anos e brigar com o pai?

        (Existe: é ser pai e brigar com o filho de quatro anos. Mas isto a criança só descobre depois de muitos anos.

        Para um garoto de quatro anos, brigar com o pai, ou com a mãe, significa romper com o mundo. Uma ruptura aliás frequente, porque há poucas coisas que um guri goste mais de fazer do que brigar. Ele briga porque quer comer e porque não quer comer; porque quer se vestir ou porque não quer se vestir; e porque não quer tomar banho, não quer dormir, não quer juntar as coisas que deixou espalhadas pelo chão. E porque quer uma lancha com pilhas, e uma bicicleta, e uma nave espacial – de verdade. Todas estas coisas geram bate-boca, ao final do qual o garoto diz, ultrajado:

        -- Ah, é? Pois então...

        Pois então o quê? Um país pode ameaçar outro com mísseis, ou com marines, ou com bloqueio; um adulto diz que vai quebrar a cara do inimigo; mas, um garoto, pode ameaçar com quê? Com o único trunfo que eles têm:

        -- Eu vou-me embora desta casa!

        Ao que, invariavelmente, os pais respondem: vai, vai de uma vez. Ué, mas não seria o caso deles suplicarem, não meu filho, não vai, não abandona teus velhos pais? Meio incrédulo, o guri repete:

        -- Olha que eu vou, hein?

        Vai, é a dura resposta. E aí o menino não tem outro jeito: para salvar sua honra (e como têm honra, os garotos de quatro anos!) ele tem de partir. Começa arrumando a mala: numa sacola de plástico, ele coloca os objetos mais necessários: um revólver de plástico, os homenzinhos do Playmobil (aos quatros anos, o Kit de sobrevivência e notavelmente restrito).

        Enquanto isto, os pais estão jantando, ou vendo TV, aparentemente indiferentes ao grande passo que vai ser dado. O que só reforça a disposição do filho pródigo em potencial: esses aí não me merecem, eu vou-me embora mesmo.

        Mas, para onde? para onde, José? Manuel Bandeira podia ir para Pasárgada, onde era amigo do rei; aos quatro anos, contudo, a relação com a realeza é muito remota. O guri abre a porta da rua (essas coisas são mais dramáticas em casa do que em apartamentos); olha para fora; está escuro, está frio, chove. Ele hesita; está agora em território de ninguém, tão diminuto quanto o é a sua independência. Ir ou não ir? Nem Hamlet viveu dilema tão cruel. Lá de dentro vem um grito:

        -- Fecha essa porta que está frio!

        Esta é a linha dura (pai ou mãe). Mas sempre há um mediador – pai ou mãe – que negocia um recuo honroso:

        -- Está bem, vem para dentro. Vamos esquecer tudo!

        O garoto resiste, com toda a bravura que ainda lhe resta. Por fim, ele volta, mas sob condições: quando o pai for ao Centro, ele trará um trem elétrico, desde que não seja muito caro, naturalmente. A paz enfim alcançada, o garoto volta para dentro. Até a próxima briga. Quando, então:

        -- Eu vou-me embora desta casa!

Moacyr Scliar.

Entendendo a crônica:

01 – “Existe alguma coisa pior do que ter quatro anos e brigar com o pai?...”. Neste trecho, encontramos o adjetivo grifado flexionado no grau:

a)   Comparativo de superioridade.

b)   Comparativo de inferioridade.

c)   Comparativo de igualdade.

d)   Superlativo relativo de superioridade.

e)   Superlativo relativo de inferioridade.

02 – Identifique a única causa NÃO enumerada, no terceira parágrafo, que leva um garoto de quatro anos a brigar com o pai ou a mãe:

a)   Não querer juntar as coisas que deixou espalhadas pelo chão.

b)   Não querer dormir.

c)   Querer tomar banho toda hora.

d)   Querer comer.

e)   Querer uma nave espacial de verdade.

03 – Identifique a fala que não representa uma ameaça, mas sim uma ordem:

a)   “— Ah é? Pois então...”

b)   “— Eu vou-me embora desta casa!”

c)   “— Olha que eu vou, hein?”

d)   “— Já estou quase indo!”

e)   “— Fecha essa porta que está frio!”

04 – Que tema é abordado na crônica?

      Os conflitos existentes dentro do âmbito familiar, mas especificamente na relação entre pais e filho, quando este ainda é criança.

05 – Numere os fatos na ordem dos acontecimentos, em seguida, marque a sequência correta.

(5) Um dos pais interrompe a partida, sugerindo a reconciliação entre o filho e eles.

(2) Os pais demonstram-se insensíveis à ameaça feita pelo filho, inclusive “apoiando-o” em sua decisão de partir.

(1) O garoto de quatro anos briga com os pais e ofendido ameaça ir embora de casa.

(3) Ferido em seus brios, o menino arruma sua restrita mala para, finalmente, concretizar sua ameaça.

(4) No momento de sair de casa, o filho pródigo sente-se indeciso se enfrenta ou não as dificuldades da rua.

a)   4 – 1 – 2 – 3 – 5.

b)   5 – 2 – 1 – 3 – 4.

c)   3 – 1 – 5 – 2 – 4.

d)   2 – 1 – 5 – 3 – 4.

e)   1 – 3 – 4 – 2 – 5.

 


CRÔNICA: O PINTINHO - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

Crônica: O pintinho

               Carlos Drummond de Andrade

     Foi talvez de um filme de Walt Disney que nasceu a moda de enfeitar com pintinhos vivos as mesas de aniversário infantil. Era uma excelente ideia, no mundo ideal do desenho animado; conduzida para o mundo concreto dos apartamentos, também alcançou êxito absoluto. Muitos garotos e garotas jamais tinham visto um pinto de verdade, e queriam comê-lo, assim como estava, imaginando ser uma espécie de doce mecânico, mais saboroso. Houve que contê-los e ensinar-lhes noções urgentes de biologia. As senhoras e moças deliciaram-se com a surpresa e gula dos meninos, e foram unânimes em achar os pintos uns amorecos. Mas estes, encurralados num centro de mesa, entre flores que não lhes diziam nada ao paladar, e atarantados por aquele rumor festivo e suspeito, deviam sentir-se absolutamente desgraçados.

        Como a celebração do aniversário terminasse, e ninguém sabia o que fazer com os pintos, pareceu à dona da casa que seria gentil e cômodo oferecer um a cada criança, transferindo assim às mães o problema do destino a dar-lhes. O único inconveniente da solução era que havia mais guris do que pintos, e não foi simples convencer aos não contemplados que aquilo era brincadeira para guris ainda bobinhos, e que mocinhas e rapazinhos de nível mental superior não se preocupam com essas frioleiras.

        Os pintos, em consequência, espalharam-se pela cidade, cada qual com seu infortúnio e seu proprietário exultante. O interesse das primeiras horas continuava a revestir-se de feição ameaçadora para a integridade física dos recém-nascidos (se é que pinto produzido em incubadora realmente nasce). Um deles foi parar num apartamento refrigerado, e posto a um canto da copa, sobre uma caixinha de papelão forrada de flanela. Semeou-se em redor o farelinho malcheiroso que o gerente do armazém recomendara como alimento insubstituível para pintos tenros, e que (o pai leu na enciclopédia) devia ser, teoricamente, farinha de baleia. A ideia da baleia alimentando o pinto encheu o garotinho de assombro, e pela primeira vez o mundo lhe apareceu como um sistema.

        O pinto sentia um frio horroroso, mas desprezava a flanela, e a todo instante se descobria, tentando fugir. Procurava algo que ele mesmo não sabia se era calor da galinha ou da criadeira. À falta de experiência, dirigiu seus passinhos na direção das saias que circulavam pela copa. As saias nada podiam fazer por ele, senão recolocá-lo em seu ninho, mas o pinto procurava sempre, e piava.

        O garoto queria carregá-lo, inventava comidas que talvez interessassem àquele paladar em formação. Não, senhor — explicou-lhe a mãe:

        — Não se pode pegar, não se pode brincar, não se pode dar nada, a não ser farelo e água.

        — Nem carinho?

        — Meu amor, carinho de gente é perigoso para bicho pequeno.

        Mas o pinto, mesmo sem saber, estava querendo era um palmo sujo de terra, com insetos e plantas comestíveis, o raio de sol batendo na poça d’água caída do céu, e companhia à sua altura e feição, e, numa casa assim tão bonita e confortável, esses bens não existiam. E piava.

        A situação começou a preocupar a dona da casa, que telefonou à amiga doadora do pinto: que fazer com ele?

        — Querida, procure criá-lo com paciência, e no fim de três meses bote na panela, antes que vire galo. É o jeito.

        Não virou galo, nem caiu na panela. No fim de três dias, piando sempre e sentindo frio, o pinto morreu. Foi sua primeira e única manifestação de vida, propriamente dita.

        O menino queria guardá-lo consigo, supondo que, inanimado, o pinto se transformara em brinquedo, manuseável. Foi chamado para dentro, e quando voltou o corpinho havia desaparecido na lixeira.

                                                   Carlos Drummond de Andrade, no livro “Fala, amendoeira”. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Entendendo a crônica:

01 – Muitos dos meninos convidados para a festa de aniversário retratada pelo narrador nunca tinham visto um pintinho de verdade.

a)   Segundo o narrador, qual era o desejo desses meninos em relação aos pintinhos?

Eles queriam comê-los, assim como estava, imaginando ser uma espécie de doce mecânico, mais saboroso.

b)   A pessoa responsável pela festa teve como preocupação principal o sucesso da festa, mas não planejou o destino que seria dado aos pintinhos. Como ela resolveu esse problema ao final da festa.

Distribui no final da festa para alguns convidados, porque não tinha para todos.

02 – A crônica conta uma história que poderia acontecer no dia-a-dia, uma moda que, no desenrolar da história, se tornaria um grande problema. Assinale a opção que apresenta o tema/assunto destacado nessa crônica.

a)   A alegria das crianças que puderam compartilhar a vida urbana com a vida rural.

b)   O problema da sociedade quando um objeto (ou animal, neste caso) é usado por causa de uma simples moda e depois esquecido pelo próprio consumidor.

c)   O final trágico do pintinho, mas a satisfação da criança por ter convivido com esse animal em sua casa.

03 – Que crítica podemos perceber nessa crônica?

      Ela critica um problema da sociedade, quando um objeto (ou animal, neste caso) é usado por causa de uma simples moda e depois esquecido pelo próprio consumidor.

04 – O narrador refere-se inicialmente a uma nova decoração das mesas em festa de aniversário infantil.

a)   Na festa que ele relata, o aniversariante é destacado como figura principal?

Não.

b)   Qual é o destaque da festa?

O pintinho.

05 – A pessoa responsável pela festa teve como preocupação principal o sucesso da festa.

a)   Ela planejou o destino que seria dado aos pintinhos?

Não.

b)   Como ela resolveu esse problema?

Não tinha o que fazer com os pintinhos e a dona da festa resolveu dar para os convidados.

06 – A partir do terceiro parágrafo do texto o narrador conta o que aconteceu com os pintinhos depois da festa.

a)   Como foi a adaptação desse pintinho ao novo ambiente?

Muito difícil, o apartamento era refrigerado, e o colocaram num canto da copa, sobre uma caixinha de papelão forrada de flanela.

b)   Na sua opinião os outros pintinhos passaram por uma situação muito diferente da vivida por esse pintinho?

Resposta pessoal do aluno.

07 – O narrador imagina que o pintinho, mesmo sem saber, procurava algo no apartamento em que estava.

a)   O que o pintinho procurava?

Procurava algo que ele mesmo não sabia se era calor da galinha ou da criadeira.

b)   Na verdade, a ave sentia falta de quê?

Ele estava querendo era um palmo sujo de terra, com insetos e plantas comestíveis, o raio de sol batendo na poça d’água caída do céu, e companhia à sua altura e feição.


CRÔNICA: EMBARAÇO NO MERCADINHO - KATIA REGINA PESSOA - COM GABARITO

Crônica: Embaraço no mercadinho


           
  KATIA REGINA PESSOA

-- Pode me ajudar?

-- O que deseja?

-- É puro?

-- É puro como água mineral saída da Fonte São Lourenço.

-- Você usaria?

-- Sim. De olhos fechados.

-- Vou levar um vidro.

No caixa...

-- Deu erro no cartão.

-- Por favor, tente de novo.

-- Senha errada.

-- 234547

-- Sena inválida.

-- 432547.

-- Cartão bloqueado.

-- Tente esse.

A fila se constrói.

-- Não passou.

-- Quanto é mesmo?

A fila aumenta. Clientes resmungam.

-- São trintas reais.

As moedas rolam pelo chão. A fila triplica. Os clientes resmungam mais ainda. Alguns ajudam a pegar as moedas.

-- Só um minuto, por favor. Não posso ir para casa sem isso.

Bolsa aberta moedas recolhidas. Fila em caracol. Criança chorando. Muita reclamação.

-- Eu vou tirando da bolsa e você conta

As moedas brotavam e sobre o balcão trinta reais redondo. A fila em caracol olhava torto.

Após colocar o produto na sacola, saiu chegou ao estacionamento. Plaft: o vidro se estatelou chão. A sacola plástica conseguiu conter o “sangue” melado e o cheiro de abelha se mostrou pôr inteiro.

      Katia Regina Pessoa.

Entendendo a crônica:

01 – Identifique, no trecho do texto abaixo, as três personagens e o narrador.

-- Pode me ajudar? (Personagem 1).

-- O que deseja? (Personagem 2).

-- É puro?

-- É puro como água mineral saída da Fonte São Lourenço.

-- Você usaria?

-- Sim. De olhos fechados.

-- Vou levar um vidro.

No caixa... (Narrador).

-- Deu erro no cartão. (Personagem 3).

02 – Observe:

        A fila se constrói – A fila aumenta –

        A fila triplica – Fila em caracol –

        A fila em caracol olhava torto.

        Fila é, por exemplo, uma maneira de organizar as pessoas (uma atrás da outa) para que aguardem a vez de serem atendidas. Essa disposição de pessoas, de acordo com o texto, acontece, mas vai gradativamente se:

a)   Desmanchando.

b)   Avolumando.

c)   Esvaziando.

d)   Desorganizando.

03 – Com base no texto, localize a causa para os trechos abaixo:

Consequência          --           Causa

-- A fila se constrói.  Falha no cartão.

-- A fila triplica.         As moedas rolam pelo chão.

-- A fila em caracol

    olhava torto.         As moedas brotavam no balcão.

04 – As causas possuem uma mesma origem? E as consequências? Com base nos fatos que se sucedem na narrativa, explique como isso se dá.

      A origem da causa é a demora para pagar pelo produto o que, consequentemente, faz a fila crescer, se avolumar e a irritar os clientes.

05 – A história apresenta vários indícios de conflitos. O primeiro deles inicia-se a partir da frase:

a)   “Pode me ajudar?”

b)   “Vou levar um vidro.”

c)   “Deu erro no cartão.”

d)   “Você usaria?”

06 – Qual foi a solução do problema?

      O problema foi solucionado, depois de um tempo, após o produto ser pago com trinta reais em moedas.

07 – Busque no texto, um exemplo das seguintes figuras de linguagem:

a)   Uma Metáfora.

“A sacola plástica conseguiu conter o ‘sangue’ melado [...]”.

b)   Uma Comparação.

“É puro como água mineral saída da Fonte São Lourenço”.

c)   Uma prosopopeia ou personificação.

“A fila em caracol olhava torto”.