Crônica: Um sonho de simplicidade
Rubem Braga Então, de repente, no meio dessa
desarrumação feroz da vida urbana, dá na gente um sonho de simplicidade. Será
um sonho vão? Detenho-me um instante, entre duas providencias a tomar, para me
fazer essa pergunta. Por que fumar tantos cigarros? Eles não me dão prazer
algum; apenas me fazem falta. São uma necessidade que inventei. Por que beber
uísque, por que procurar a voz de mulher na penumbra ou amigos no bar para
dizer coisas vãs, brilhar um pouco, saber intrigas?
Uma vez, entrando numa loja para
comprar uma gravata, tive de repente um ataque de pudor, me surpreendendo
assim, a escolher um pano colorido para amarrar ao pescoço.
A vida poderia ser mais simples.
Precisamos de uma casa, comida, uma simples mulher, que mais? Que se possa
andar limpo e não ter fome, nem sede, nem frio. Para que beber tanta coisa
gelada? Antes eu tomava água fresca da talha, e a água era boa. E quando
precisava de um pouco de evasão, meu trago de cachaça.
Que restaurante ou boate me deu o
prazer que tive na choupana daquele velho caboclo no Acre? A gente tinha ido
pescar no rio, de noite. Puxamos a rede afundando os pés na lama, na noite
escura, e isso era bom. Quando ficamos bem cansados, meio molhados, com frio,
subimos a barranca, no meio do mato, e chagamos à choça de um velho
seringueiro. Ele acendeu um fogo, esquentamos um pouco junto do fogo, depois me
deitei numa grande rede branca – foi um carinho ao longo de todos os músculos cansados.
E então ele me deu um pedaço de peixe moqueado e meia caneca de cachaça. Que
prazer em comer aquele peixe, que calor bom em tomar aquela cachaça e ficar
algum tempo a conversar, entre grilos e vozes distantes de animais noturnos.
Seria possível deixar essa eterna
inquietação das madrugadas urbanas, inaugurar de repente uma vida de acordar
bem cedo? Outro dia vi uma linda mulher, e senti um entusiasmo grande, uma
vontade de conhecer mais aquela bela estrangeira: conversamos muito, essa primeira
conversa longa em que a gente vai jogando um baralho meio marcado, e anda
devagar, como a patrulha que faz um reconhecimento. Mas por que, para que, essa
eterna curiosidade, essa fome de outros corpos e outras almas?
Mas para instaurar uma vida mais
simples e sábia, então seria preciso ganhar a vida de outro jeito, não assim,
nesse comércio de pequenas pilhas de palavras, esse ofício absurdo e vão de
dizer coisas, dizer coisas… Seria preciso fazer algo de sólido e de singelo;
tirar areia do rio, cortar lenha, lavrar a terra, algo de útil e concreto, que
me fatigasse o corpo, mas deixasse a alma sossegada e limpa.
Todo mundo, com certeza, tem de repente
um sonho assim. É apenas um instante. O telefone toca. Um momento! Tiramos um
lápis do bolso para tomar nota de um nome, um número… Para que tomar nota? Não
precisamos tomar nota de nada, precisamos apenas viver – sem nome, nem número,
fortes, doces, distraídos, bons, como os bois, as mangueiras e o ribeirão.
Rubem
Braga
Entendendo a crônica:
01 – No texto, o narrador:
a)
Questiona o artificialismo do
convívio social.
b)
Revela-se cauteloso na defesa de um outro
estilo de vida.
c)
Cobra do ser humano uma atitude em face da
vida que coincide com o Carpe Diem.
d)
Estabelece proximidade entre o viver urbano e
o viver rural.
e)
Requer da sociedade uma postura mais
solidária no convívio social.
02 – “Um sonho de
simplicidade”, para o narrador, seria ter uma vida:
a)
Ligada aos bens / riquezas materiais.
b)
Despojada, cuidando tão-somente de
um viver filantrópico.
c)
Em que o relacionamento entre as pessoas
atendesse a convenções.
d)
Em que a atividade física fosse intensa e
servisse de bálsamo para a alma
e)
De evasão ara um mundo de sonhos, em
detrimento do mundo real.
03 – O narrador:
a)
No primeiro parágrafo, afirma a inutilidade de
sonhar com outras formas de viver.
b)
No segundo parágrafo, revela uma
consciência crítica do seu comportamento urbano.
c)
No terceiro parágrafo, põe em destaque a
necessidade de afeto no relacionamento humano.
d)
No quarto parágrafo, enfatiza as dificuldades
que o homem enfrenta na vida rural.
e)
No penúltimo parágrafo, apresenta a quebra da
rotina da vida como inviável.
04 – A alternativa cujo
fragmento apresenta a mesma ideia do narrador no parágrafo final é:
a)
“Os livros são objetos transcendentes / mas
podemos amá-los do amor táctil”.
b)
“Porque a frase, o conceito, o enredo, o
verso / (É, sem dúvida, sobretudo o verso) / É o que pode lançar mundos no
mundo”.
c)
“Caminhando contra o vento / sem
lenço, sem documento / No sol de quase dezembro / Eu vou”.
d)
“Enquanto os homens exercem seus podres
poderes / Índios e padres e bichos, negros e mulheres / E adolescente / Fazem o
carnaval”.
e)
“Sei que a arte é irmã da ciência / Ambas
filhas de um Deus fugaz / Que faz num momento e o mesmo momento desfaz”.
05 – Em seu sonho de simplicidade,
o autor idealiza sobretudo:
a)
Uma depuração maior no seu estilo de
escrever, marcado por excessivo refinamento.
b)
As pequenas necessidades da rotina, que cada
um de nós cria inconscientemente.
c)
Uma relação mais direta e vital do
homem com os demais elementos da natureza.
d)
O aperfeiçoamento do espírito, por meio de
reflexões constantes e disciplinadas.
e)
A paixão ingênua que pode nascer com a voz de
uma mulher na penumbra.
06 – Considere as seguintes
afirmações:
I – O autor condiciona a
conquista de uma vida mais simples à possibilidade de viver sem precisar
produzir nada, sem executar qualquer tipo de trabalho, afora o da pura
imaginação.
II – Alimentar um tal sonho
de simplicidade é, na perspectiva do autor, uma característica exclusiva dos
escritores que não mantém relações mais concretas com o mundo.
III – Cigarros, gravatas e
telefones são elementos utilizados pelo autor para melhor concretizar o mundo
que representa uma antítese ao seu sonho de simplicidade.
Em relação ao texto, está
correto SOMENTE o que se afirma em:
a)
I.
b)
II.
c)
III.
d)
I e II.
e)
II e III.
07 – Na frase: “Mas, para
instaurar uma vida mais simples e sábia, seria preciso ganhar a vida de outro
jeito, não assim, nesse comércio de pequenas pilhas de palavras, esse ofício
absurdo e vão de dizer coisas, dizer coisas...”. O autor:
a)
Ressalta, com a repetição de dizer coisas, a
importância de seu trabalho de escritor, pelo qual revela aos outros as
verdades mais profundas.
b)
Justifica com a expressão comércio
de pequenas pilhas de palavras a visão depreciativa que tem de seu próprio
ofício.
c)
Apresenta como consequência de instaurar uma
vida mais simples e sábia o fato de ganhar a vida de outro jeito.
d)
Utiliza a expressão não assim para apontar
uma restrição à vida que seria preciso ganhar de outro jeito.
e)
Se vale da expressão ofício absurdo e vão
para menosprezar o trabalho dos escritores que se recusam a
profissionalizar-se.
08 – A grafia de TODAS as
palavras está correta na frase apresentada na alternativa:
a)
A proposta do texto soa extravagante para
quem não apreciar uma vida simples e natural.
b)
A sujeição a velhas manias impede que se
possa adotar comportamentos inovadores.
c)
A vida displicente do homem moderno impõe um
ritmo insano à rotina urbana.
d)
A vida mais próxima da Natureza
resgata a simplicidade, que empecilhos de toda ordem nos impedem de desfrutar.
e)
A vida natural exclue, é obvio, os desvalores
que encluímos no nosso dia-a-dia.
09 – No fragmento retirado
do texto de Rubem Braga “Sem nome, nem número, fortes, doces, distraídos, bons,
como os bois, as mangueiras e o ribeirão”, o emprego da vírgula se justifica
por:
a)
Isolar adjunto adverbial quando antecipado na
frase.
b)
Destacar termos com função
sintática diversa.
c)
Enfatizar palavras repetidas ainda que
necessárias.
d)
Destacar as funções de vocativo e de aposto.
e)
Separar termos que exercem a mesma função
sintática.
10 – A alternativa que
contém uma palavra formada exatamente pelo mesmo processo pelo qual se obteve
“seringueiro” é:
a)
Cigarros.
b)
Desarrumação.
c)
Penumbra.
d)
Reconhecimento.
e)
Simplicidade.