domingo, 11 de agosto de 2019

CONTO: A MOÇA QUE PEGOU A SERPENTE - YVES PINGUILLY - COM GABARITO

Conto: A moça que pegou a serpente
      

     Yves Pinguilly

        Sia era a mais bonita da aldeia. Era tão alta que nem precisava ficar na ponta dos pés para o azul do céu lhe afagar a cabeça. Suas formas eram tão redondas que se poderia pensar que ela tinha nascido da semente mágica de uma cabaça.
        Todos os rapazes da aldeia sonhavam se casar com ela. Todos haviam oferecido ao pai de Sia dinheiro, caules açucarados de sorgo, amendoins inhames, milhete, voandzu... Mas Sia nunca escolhia: nenhum dos rapazes lhe agradava o bastante...
        Como todos os anos, chegou a chuva das mangas, e os homens foram cuidar da sua lavoura. A tia de Sia lhe disse:
        -- Vamos passear na selva que fica em volta das nossas roças. Se encontrarmos um rapaz que queira lutar com você, como é o costume, aceite. Se ele conseguir deitar você no chão, como uma esposa, então você terá de se casar com ele.
        Elas foram passear, a tia cantando:
                Sia vem pra rir
                e vai rir
                Quem vai conseguir
                derrubar Sia?
        Largando a daba, os rapazes vieram um depois do outro tentar derrubá-la no chão. Nenhum conseguiu derrotar a bela Sia. Ou era comprida demais para os braços deles, ou redonda demais para as mãos deles.
        Numa roça havia um rapaz lindo, lindíssimo, mas que escondia sua boniteza sob uma pele de leproso. O rapaz parecia estar coberto de lepra, da ponta dos dedos das mãos à ponta dos dedos dos pés. Ele tinha acabado de despertar de um cochilo quando Sia se aproximou com a tia. O rapaz disse a ela:
        -- Lapya, Sia. Sabe, tenho vontade de te pegar, como um galo tem vontade de pegar um grão de milhete!
        -- Para que ela seja sua, você tem que ser mais forte que ela e conseguir deitá-la de costas no chão – respondeu a tia, – Se for capaz, ela será sua esposa.
        O rapaz levou Sia à sombra de uma palmeira-de-leque, cuja folhagem eriçada e crespa murmurava sacudida pela brisa. Sia e o leproso se engalfinharam, e o rapaz ganhou. Estendeu Sia por inteiro na sombra que a palmeira fazia no chão.
        -- Você venceu porque minha roupa me atrapalhou. Espere aí, vamos lutar de novo.
        Ela tirou a blusa comprida e o pagne. Eles voltaram a lutar, e o rapaz outra vez deitou Sia de costas no chão.
        -- Você ganhou por causa dos meus enfeites que me atrapalharam. Espere aí, vamos lutar de novo.
        Ela tirou as pulseiras dos pulsos e dos tornozelos, assim como seus colares de contas brancas e o cinto de contas vermelhos. Voltaram a lutar, e pela terceira vez foi o rapaz leproso que venceu. Sia chorou tanto, que alguém até pensaria que as lágrimas escorriam não só dos olhos, mas também das orelhas, da boca, do nariz e do coração.
        -- O que está feito, feito está. Este leproso será seu esposo.
        A tia voltou sozinha para a concessão e, pouco depois, Sia voltou à aldeia acompanhada do rapaz leproso, seu marido.
        O tempo passou, mas nenhuma noite Sia quis dormir junto do marido. Todas as noites ela punha entre sua esteira e a dele uma porção de cabaças cheias d’água. Assim separada, ela podia dormir e sonhar.
        Quando preparava a comida ela fazia, para ela e para algumas vizinhas, com farinha bem branca um lindo bolinho, bem volumoso, com um belo buraco no meio para o molho. Para o marido, ela cozinhava mais farelo que farinha, e servia numa cabaça rachada.
        O marido leproso não dizia nada.
        No dia da festa da aldeia, o marido de Sia resolveu que tinha chegado a hora. Foi à tulha atrás da casa, tirou a pelo de leproso e escondeu-a debaixo dos grãos de milhete. Feito isso, esgueirou-se até um canto da selva eu conhecia bem. Lá chegando, acendeu uma bela fogueira. As chamas num instante ficaram altas e ardentes. Então ele jogou no fogo uma pedra que tinha escolhido, e logo a pedra se transformou num lindo cavalo.
        O marido de Sia foi então até um pé de farroba, trepou na árvore e sacudiu os galhos. Várias farrobas caíram e, ao tocarem o chão, transformaram-se em jovens guerreiros, de zagaia em punho e nádegas cobertas por uma bela pele de cabrito.
        Sia, que tinha deixado a festa da aldeia para dar um breve passeio na selva, tropeçou num toco de pau.
        -- Ai! Ui! Toco, por que você machucou meu pé? Espere só, vou pegar um machado e vou te rachar no meio.
       -- Não faça isso! Sente aqui e escute bem. Sou um toco velho, não comprei minha sabedoria, aprendi tudo o que sei com a minha longa vida.
        Sia sentou-se e escutou.
        -- Se você espiar na tulha do seu marido, vai ver uma coisa que te deixará de boca aberta.
        Sia foi correndo ver. Descobriu a pele de leproso! Sem pensar duas vezes, correu para o meio da aldeia e atirou a pele na fogueira da festa. Foi então que reconheceu o marido. Ele dançava, mais lindo que o mais lindo dos lindos, no meio de uma roda de moças. Diante dele, seus guerreiros tomavam conta do seu cavalo. Ela o viu dançar de braço colado, de ombro colado, de corpo colado, com as mais bonitas moças da aldeia. Com os olhos arregalados de espanto, contemplou demoradamente a cena, sem dizer nada a ninguém, voltou para casa, para socar milhete e preparar uma farinha bem branquinha. Neste instante o marido, que continuava dançando, sentiu um punhado de cinzas bater em seu rosto. Eram as cinzas da sua pele de leproso, que tinha queimado. Bateu palmas para chamar seus guerreiros e seu cavalo.
        -- Vamos embora, conheço essas cinzas.
        Montou no cavalo e jogou seus guerreiros no ar. Eles caíram no pé de farroba e viraram de ovo belas farrobas. Chegando à sua cada, deixou o cavalo ir embora, oferecendo-lhe a liberdade de virar pedra de novo. Entrou em casa.
        -- Sia, minha mulher, estou com calor e com sede.
        Sem demora ela lhe serviu uma água bem fresquinha numa magnífica cabaça, toda envernizada e entalhada.
        -- Ué, agora você me serve água fresca numa bonita cabaça?
        Ele bebeu e indagou:
        -- Tem alguma coisa para comer aqui?
        Sia lhe ofereceu um delicioso bolo de mel e o bolinho de milhete numa cabaça novinha.
        -- Sua beleza não mudou, Sia, mas seus modos agora são outros.
        Uma estação das águas e uma estação da seca passaram.
        O marido da Sia, que era o mais bonito homem de todos os homens bonitos desde que tinha se livrado da pele de leproso, disse-lhe um belo dia:
        -- Agora vou aceitar o que você me pede há duas estações; como você mantém seus novos modos, vou aceitar ser um verdadeiro marido, com o qual você vai dormir todas as noites para ter filhos. Assim, nunca vão botar na sua cabeça e nos seus ombros as pedras brancas reservadas às mulheres cuja barriga não cresce. Mas...
        -- Mas?
        -- Tem uma condição. Primeiro você vai ter de ir na selva pegar uma cobra nova e botar na cabaça em que serve meu bolinho de milhete. É essa a sua prova!
        No dia seguinte, Sia foi para a selva, depois de preparar um bolo doce que carregou na cabeça, numa cesta. Não demorou a avistar, debaixo de uma pedra chata, uma bela cobra. A cobra estava sem dúvida de tocaia, esperando que algum rato do alagado se aventurasse por ali. De longe, Sia atirou um pedaço de bolo para a serpente. A serpente saboreou o pedaço inteiro. Como parecia gostar, Sia atirou o resto, e a cobra comeu tudo com prazer. Pouco depois a serpente dormia, acariciada pelo sol.
        Pé ante pé, Sia se aproximou. Enfiou cuidadosamente a mão debaixo da pedra chata e pegou a cobra, que era um pouco menos comprida e menos grossa que seu braço. Botou a cobra adormecida na cesta e voltou para casa, de modo a chegar antes do anoitecer.
        De noite, ela pôs a cobra na cabaça do marido. Quando o bolo e o molho ficaram prontos, ela cobriu com eles a cobra e, logo em seguida, seu marido jantou.
        Desde aquela noite, eles viveram perfeitamente unidos. Logo, logo a barriga de Sia inchou, como para imitar o redondo do sol; logo, logo um lindo menino saiu da barriga para descobrir o Céu e a Terra.
        -- Meu marido, você me causou muitos sofrimentos e muito medo, quando quis que eu pegasse uma cobra para a sua cabaça. Agora é você que tem de me escutar...
        -- Sim?
        -- Pegue a zagaia e mate um búfalo. Vamos comer a carne, e nosso filho vai dormir no couro bem seco do bicho. Se você fizer o que peço, nós dois vamos comer melhor o bolinho de lágrimas.
        O marido de Sia matou um búfalo, e o que Sia quis foi feito.
        Ela disse e redisse então às moças da aldeia:
        -- Mesmo se vocês acharem seu marido feio, nunca devem desprezá-lo.

                                          Yves Pinguilly. Contos e Lendas da África. São Paulo: Companhia das letras, 2005. p. 177-187.
Fonte: Livro - Para Viver Juntos - Português - 6º ano - Ensino Fundamental- Anos Finais - Edições SM - p.64/65/66/67.
Entendendo o conto:
01 – Qual é o problema de Sia no começo da história?
      Ela não consegue encontrar um pretendente que lhe agrade para se casar.

02 – Para que Sia se case, sua tia a orienta a seguir um costume da aldeia:
a)   Qual é esse costume?
Um pretendente deve lutar com a mulher com a qual queira se casar; se ele conseguir deitá-la de costas no chão, ela se torna sua esposa.

b)   Por que um dos pretendentes precisou repetir o ritual (o costume) três vezes?
Porque o pretendente venceu Sia, porém ela não queria se casar com ele, que, aparentemente, era leproso; então, ela propôs outras duas lutas.

03 – No conto, há três situações importantes em que as personagens fazem exigências. Copie a ação e complete-as com essas exigência.
·        Sia se casará com quem...: Lutar com ela e deitá-la no chão.

·        Para Sia ter o belo rapaz como marido, ela terá de...: Capturar uma serpente nova e coloca-la dentro de uma cabaça.

·        Para que Sia e o marido vivam bem, ela pede a ele que...: Mate um búfalo para que eles comam a carne e usem o couro para o filho dormir.

04 – O rapaz que consegue se casar com Sia apresenta algumas características comuns às personagens de contos populares. Que características são essas?
      Ele apresenta poderes mágicos, usa um disfarce, é muito belo, tem um lindo cavalo e conquista uma bela esposa.

05 – Quais ações do rapaz demonstraram que ele tem poderes especiais?
      Ele se disfarça de leproso, joga pedras na fogueira e as transforma em um cavalo, transforma farrobas em guerreiros.

06 – A narrativa se passa em uma aldeia próxima a plantações e a uma floresta na África. Transcreva um trecho em que se pode perceber isso.
      “[...] os homens foram cuidar da sua lavoura” / “Numa roça havia um rapaz lindo [...]” / “—Vamos passear na selva que fica em volta das nossas roças”.

07 – Releia os seguintes marcadores de tempo presentes no conto lido.
I – “Como todos os anos, chegou a chuva das mangas [...]”.
II – “Uma estação das águas e uma estação da seca passaram [...]”
        Que informações esses marcadores fornecem a respeito do espaço em que fica a aldeia? Consulte o glossário para responder à questão.
      Os marcadores fornecem características das estações do ano da região: chuvosa e seca.

08 – Leia o significado das palavras a seguir:
·        Cabaça: fruto da cabaceira que serve de recipiente para alimentos e água.
·        Sorgo: planta parecida com o milho.
·        Lapya: expressão equivalente a “bom dia!”.
·        Tulha: depósito de cereais.
·        Milhete: tipo de cereal.
·        Voandzu: alimento parecido com o amendoim.
·        Pagne: pedaço de tecido que se amarra à cintura, canga.
·        Zagaia: azagaia, lança de madeira.

Como essas palavras ajudam a caracterizar o espaço onde se passa a história?
      Elas ajudam a caracterizar o espaço, pois descrevem aspectos culturais próprios do lugar em que as personagens vivem, no caso, a África.

09 – Ao final do conto, há um ensinamento de Sia.

a)   Qual é esse ensinamento e a quem é dirigido?
O ensinamento é “Mesmo se vocês acharem seu marido feio, nunca devem desprezá-lo” e dirige-se as moças da aldeia.

b)   O que levou Sia a concluir tal ensinamento?
Tudo que Sia viveu ao longo da narrativa a levou a perceber que havia errado em desprezar seu marido por causa das aparências.

c)   Você conhece outras histórias que trazem algum ensinamento? Cite uma.
Resposta pessoal do aluno.

10 – Há alguma relação entre o ensinamento transmitido pelo conto “A moça que pegou a serpente” e o cotidiano que você vive? Justifique sua resposta.
      Resposta pessoal do aluno.

ANEDOTA: A CANOA - PARA REFLETIR

ANEDOTA: A CANOA


Em um largo rio, de difícil travessia, havia um barqueiro que atravessava as pessoas de um lado para o outro. Em uma das viagens, iam um advogado e uma professora. Como quem gosta de falar muito, o advogado pergunta ao barqueiro:

Companheiro, você entende de leis? 

— Não! - respondeu o barqueiro.

E o advogado compadecido:
— É pena, você perdeu metade da vida.

A professora muito social, entra na conversa:
— Seu barqueiro, você sabe ler e escrever?
- Também não, respondeu o barqueiro.
— Que pena! Condói-se a mestra .
— Você perdeu metade de sua vida!

Nisso chega uma onda bastante forte e vira o barco.

O barqueiro preocupado, pergunta:
— Vocês sabem nadar?
— NÃO! Responderam eles rapidamente.
— Então é uma pena.
- Conclui o barqueiro.
— Vocês perderam toda a vida.

Não há saber maior ou saber menor. Há saberes diferentes. (Paulo Freire)
Pense nisso e valorize todas as pessoas com as quais tenha contato.
Cada uma delas tem algo de diferente para ensinar... 


MENSAGEM ESPÍRITA: O FARDO - EMMANUEL / CHICO XAVIER - PARA REFLEXÃO

O FARDO – EMMANUEL / CHICO XAVIer
O FARDO
Pelo Espírito Emmanuel. Psicografia de Francisco Cândido Xavier.
Livro “Cartas do Coração”. Primeira Parte. Doutrina Cristã em Prosa. Página 52.
“Cada qual levará a sua própria carga”. Paulo. (Gálatas, 6:5).
Quando a ilusão te fizer sentir o peso do próprio sofrimento, como sendo excessivo e injusto, recorde que não segues sozinho no grande roteiro.
Cada qual tolera a carga que lhe é própria.
Fardos existem de todos os tamanhos e de todos os feitios:
A responsabilidade do legislador.
A tortura do sacerdote.
A expectativa do coração materno.
A indigência do enfermo desamparado.
O pavor da criança sem ninguém.
As chagas do corpo abatido.
Aprenda a entender o serviço e a luta dos semelhantes para que não te suponhas vítima ou herói num campo onde todos somos irmãos uns dos outros, mutuamente identificados pelas mesmas dificuldades, pelas mesmas dores e pelos mesmos sonhos.
Suporta o fardo de tuas obrigações valorosamente e caminha.
Do acervo de pedra bruta nasce o ouro puro.
Do cascalho pesado emerge o diamante.
Do fardo que transportamos de boa vontade procedem as lições de que necessitamos para a vida maior.
Dirás, talvez impulsivamente: “É o ímpio vitorioso, o mau coroado de respeito, e o gozador indiferente? Carregarão, por ventura, alguma carga nos ombros?”.
Responderemos, no entanto, que provavelmente, viverão sob encargos mais pesados que os nossos, de vez que a impunidade não existe.
Se o suor te alaga a fronte e se a lágrima te visita o coração, é que a tua carga já se faz menos densa, convertendo-se, gradativamente, em luz para a sua ascensão.
Ainda que não possas marchar livremente com o teu fardo, avança com ele para a frente, mesmo que seja um milímetro por dia…
Lembra-te do madeiro afrontoso que dobrou os ombros doridos do Mestre.
Sob os braços duros do lenho infamante, jaziam ocultas asas divinas da ressurreição para a divina imortalidade.


sábado, 10 de agosto de 2019

POEMA: "ERA UMA VEZ..." (FRAGMENTO) - LENICE GOMES E HUGO M.FERREIRA - COM GABARITO

POEMA: “ERA UMA VEZ...” (FRAGMENTO)

O seu rei mandou me chamar
Pra casar com sua filha
Só de dote ele me dava
Europa, França e Bahia

Me lembrei do meu ranchinho
Da roça, do meu feijão
O rei mandou me chamar
Ó seu rei, não quero, não.

Lenice Gomes e Hugo Monteiro Ferreira. Pelas ruas da oralidade. São Paulo: Paulinas, 2003. p. 15.
Fonte: Livro - Para Viver Juntos - Português - 6º ano - Ensino Fundamental- Anos Finais - Edições SM - p.215.
ENTENDENDO O POEMA

1)   O que a palavra meu indica sobre as posses do eu lírico?
Indica que ele é o proprietário de um rancho e de plantações.

2)   Qual palavra presente na estrofe indica que a moça é filha do rei?
O pronome sua.

3)   O que impede o eu lírico de casar com a filha do rei?
O apego do eu lírico ao seu pedaço de terra, ao seu trabalho e ao seu estilo de vida.

4)   O eu lírico, ao se dirigir ao rei, utiliza a expressão “seu rei”. Qual é o sentido da palavra seu no poema?
É uma demonstração de respeito ao rei. É uma abreviação do pronome de tratamento senhor.

5)   Os dois primeiros versos poderiam ter sido escritos assim: “O seu rei mandou me chamar/ Pra casar com a filha do rei”. Compare esses versos com os originais e explique a função do pronome sua.
O pronome sua evita a repetição de palavras.

CONTO: TREZENTAS ONÇAS - (FRAGMENTO) JOÃO SIMÕES LOPES NETO - COM GABARITO


Conto: TREZENTAS ONÇAS - Fragmento
         
    João Simões Lopes Neto

     Eu tropeava, nesse tempo. Duma feita que viajava de escoteiro, com a guaiaca empanzinada de onças de ouro, vim varar aqui neste mesmo passo, por me ficar mais perto da estância da Coronilha, onde devia pousar.
        Parece que foi ontem!... Era por fevereiro; eu vinha abombado da troteada.
        -- Olhe, ali, na restinga, à sombra daquela mesma reboleira de mato, que está nos vendo, na beira do passo, desencilhei; e estendido nos pelegos, a cabeça no lombilho, com o chapéu sobre os olhos, fiz uma sesteada morruda.
        Despertando, ouvindo o ruído manso da água tão limpa e tão fresca rolando sobre o pedregulho, tive ganas de me banhar; até para quebrar a lombeira… e fui-me à água que nem capincho!
        Debaixo da barranca havia um fundão onde mergulhei umas quantas vezes; e sempre puxei umas braçadas, poucas, porque não tinha cancha para um bom nado.
        E solito e no silêncio, tornei a vestir-me, encilhei o zaino e montei.
        Daquela vereda andei como três léguas, chegando à estância cedo ainda, obra assim de braça e meia de sol.
        -- Ah!… esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorrinho brasino, um cusco mui esperto e boa vigia. Era das crianças, mas às vezes dava-me para acompanhar-me, e depois de sair a porteira, nem por nada fazia cara-volta, a não ser comigo. E nas viagens dormia sempre ao meu lado, sobre a ponta da carona, na cabeceira dos arreios.
        Por sinal que uma noite...
        Mas isto é outra cousa; vamos ao caso.
        Durante a troteada bem reparei que volta e meia o cusco parava-se na estrada e latia e corria pra trás, e olhava-me, olhava-me, e latia de novo e troteava um pouco sobre o rastro; — parecia que o bichinho estava me chamando!...  Mas como eu ia, ele tornava a alcançar-me, para daí a pouco recomeçar.
        -- Pois, amigo! Não lhe conto nada! Quando botei o pé em terra na ramada da estância, ao tempo que dava as — boas-tardes! — ao dono da casa, aguentei um tirão seco no coração... não senti na cintura o peso da guaiaca!
        Tinha perdido trezentas onças de ouro que levava, para pagamento de gados que ia levantar.
        E logo passou-me pelos olhos um clarão de cegar, depois uns coriscos tirante a roxo... depois tudo me ficou cinzento, para escuro...
        Eu era mui pobre — e ainda hoje, é como vancê sabe...-; estava começando a vida, e o dinheiro era do meu patrão, um charqueador, sujeito de contas mui limpas e brabo como uma manga de pedras...
        Assim, de meio assombrado me fui repondo quando ouvi que indagavam:
        -- Então patrício? está doente?
        -- Obrigado! Não senhor, respondi, não é doença; é que sucedeu-me uma desgraça: perdi uma dinheirama do meu patrão...
        -- A la fresca!...
        -- É verdade... antes morresse, que isto! Que vai ele pensar agora de mim!...
        -- É uma dos diabos, é...; mas não se acoquine, homem!
        Nisto o cusco brasino deu uns pulos ao focinho do cavalo, como querendo lambê-lo, e logo correu para a estrada, aos latidos. E olhava-me, e vinha e ia, e tornava a latir...
        Ah!... E num repente lembrei-me bem de tudo.
        Parecia que estava vendo o lugar da sesteada, o banho, a arrumação das roupas nuns galhos de sarandi, e, em cima de uma pedra, a guaiaca e por cima dela o cinto das armas, e até uma ponta de cigarro de que tirei uma última tragada, antes de entrar na água, e que deixei espetada num espinho, ainda fumegando, soltando uma fitinha de fumaça azul, que subia, fininha e direita, no ar sem vento...; tudo, vi tudo.
        Estava lá, na beirada do passo, a guaiaca. E o remédio era um só: tocar a meia rédea, antes que outros andantes passassem.
        [...]
                        João Simões Lopes Neto. Contos gauchescos. Porto Alegre: Globo, 1976.

Entendendo o Conto:

01 – De acordo com o texto, observe atentamente a linguagem utilizada. Provavelmente, você não entendeu algumas palavras do texto. Suponha um possível significado para elas com base no contexto.
      Resposta pessoal do aluno.

02 – O conto está em primeira pessoa. Quem narra é o protagonista.
a)   Como ele pode ser caracterizado? Transcreva no caderno o trecho do texto que justifique sua resposta.
É um homem simples, com poucos recursos financeiros. “Eu era mui pobre”.

b)   Qual deve ser sua profissão?
Encarregado de comprar gado.

c)   Em que região do país você supõe que ele viva? Que pistas e elementos possibilitam chegar a essa conclusão?
Alguns termos do vocabulário (estância, boas-tardes, guaiaca, mui pobre, vancê, charquear, a la fresca, etc.) permitem supor que o narrador viva no Rio Grande do Sul, região bastante associada à atividade pecuária.  

d)   O que aconteceu com o protagonista que o deixou preocupado?
Ele perdeu o dinheiro do patrão (trezentas onças), com o qual pagaria a compra do gado.

03 – Releia: “Quando botei o pé em terra na ramada da estância, ao tempo que dava as — boas-tardes! — ao dono da casa, aguentei um tirão seco no coração... não senti na cintura o peso da guaiaca!”

a)   O trecho procura representar a maneira como a personagem fala. Que recursos são utilizados para isso?
O texto procura reproduzir a maneira como a personagem fala por meio da pontuação (reticências e ponto de exclamação) e do emprego de uma linguagem informal (“botei o pé”) e de vocábulo característico da região de origem do conto (“ramada da estância”; “boas-tardes!”; “tirão seco”; “peso da guaiaca”).

b)   A expressão “tirão seco no coração” é o que chamamos de figura de linguagem: não significa que a personagem levou um tiro, mas que teve um sobressalto, uma sensação de dor no peito porque se deu conta de que havia perdido o dinheiro do patrão. Essa expressão sugere um espaço que parece familiar à personagem. Qual é ele?
O ambiente rural, das estradas, onde os homens costumam andar armados (lembre-se do cinto de armas por sobre os galhos de Sarandi) e podem atirar em caso de conflito ou para se proteger.

04 – Que recurso o narrador utiliza para que o leitor possa visualizar a cena final? Justifique sua resposta com elementos do texto.
      O narrador utiliza a descrição do espaço. “Parecia que estava vendo o lugar da sesteada, o banho, a arrumação das roupas nuns galhos de Sarandi, e, em cima de uma pedra, a guaiaca e por cima dela o cinto das armas [...]”.

05 – Releia:
        “Nisto o cusco brasino deu uns pulos ao focinho do cavalo, como querendo lambê-lo, e logo correu para a estrada, aos latidos. E olhava-me, e vinha e ia, e tornava a latir...
        Ah!... E num repente lembrei-me bem de tudo.”

a)   Nesse trecho, o narrador descreve as ações do “cusco brasino”. Essa expressão refere-se a que animal?
Ao cão de estimação do narrador.

b)   Que palavras ou expressões do texto permitem chegar à conclusão de que “cusco brasino” se refere a esse animal?
“Como querendo lambê-lo”; “aos latidos”; “latir”.

c)   Qual foi a principal ação do “cusco brasino” no texto?
Ele ajudou o narrador a se lembrar de onde havia deixado a guaiaca com o dinheiro do patrão.

06 – Leia a seguir mais um trecho do conto “Trezentas onças”:
        “-- Ah!… esqueci de dizer-lhe que andava comigo um cachorrinho brasino, um cusco mui esperto e boa vigia. Era das crianças, mas às vezes dava-me para acompanhar-me, e depois de sair a porteira, nem por nada fazia cara-volta, a não ser comigo. E nas viagens dormia sempre ao meu lado, sobre a ponta da carona, na cabeceira dos arreios.”

a)   Como o animal é descrito?
Como um cão esperto, vigilante e companheiro.

b)   Que ações caracterizam o animal no texto?
Andava com o dono, dormia perto dele.

c)   A palavra cusco pode ser considerada um exemplo de variedade linguística regional? Explique.
Sim, pois representa um modo de falar típico de determinada região: no caso, Rio Grande do Sul.

d)   Que outras palavras desse trecho podem ser tomadas como exemplos de variedade linguística regional?
Mui (redução de muito) e cara-volta (o mesmo que meia-volta).



MARCHINHA DE CARNAVAL: PIRATA DA PERNA DE PAU - BRAGUINHA - COM GABARITO

ATIVIDADES COM  A Marchinha de Carnaval: Pirata Da Perna De Pau

                                              Braguinha, em 1946

Eu sou o pirata da perna de pau
Do olho de vidro, da cara de mau
Eu sou o pirata da perna de pau
Do olho de vidro, da cara de mau

Minha galera
Dos verdes mares não teme o tufão
Minha galera
Só tem garotas na guarnição

Por isso se outro pirata
Tenta a abordagem
Eu pego o facão
E grito do alto da popa
"Opa! Homem não!"

Braguinha. Songbook Braguinha. Rio de Janeiro: Lumiar Discos, 2002. v.3.
Fonte: Livro - Para Viver Juntos - Português - 6º ano - Ensino Fundamental- Anos Finais - Edições SM - p.43.
Entendendo a marchinha
1)    Copie quatro palavras do texto que terminem com sons parecidos.
Tufão, guarnição, facão, não.

2)    Escolha quatro palavras que está abaixo e faça uma lista de outras palavras que terminem com o mesmo som.
mocinho – pirata – perigo – viagem – vilão – forte – corajoso
Resposta pessoal.

3)    Crie uma nova estrofe com algumas dessas palavras no final de cada verso, para rimar.
Resposta pessoal.

4)    Em que lugar se encontra o pirata cara de pau?
No navio.

5)    Que palavras tem no poema que o levou a descobrir onde o pirata estava?
“Dos verdes mares...” “guarnição” “alto da popa”.




quinta-feira, 8 de agosto de 2019

POEMA: HAVEMOS DE VOLTAR - AGOSTINHO NETO - COM QUESTÕES GABARITADAS

Poema: HAVEMOS DE VOLTAR
            
                            Agostinho Neto

Às casas, às nossas lavras
às praias, aos nossos campos
havemos de voltar

Às nossas terras
vermelhas do café
brancas de algodão

verdes dos milharais
havemos de voltar

Às nossas minas de diamantes
ouro, cobre, de petróleo
havemos de voltar
Aos nossos rios, nossos lagos
às montanhas, às florestas
havemos de voltar

À frescura da mulemba
às nossas tradições
aos ritmos e às fogueiras
havemos de voltar

À marimba e ao quissange
ao nosso carnaval
havemos de voltar

À bela pátria angolana
nossa terra, nossa mãe
havemos de voltar

Havemos de voltar

À Angola libertada
Angola independente.


Entendendo o poema:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:
·        Lavras – lavouras, extração de minério, fabricação, produção.
·        Mulemba – árvore de copa volumosa.
·        Marimba – instrumento musical.
·        Quissange – instrumento musical.

02 – A que se refere o poeta neste poema?
      Havemos de voltar é o canto de todos que querem o bem de Angola, dos que lamentam a perda de valores culturais no seio dos angolanos, dos que choram a privatização da coisa pública, dos que não tem lavra / trabalho para se alimentar.

03 – Esse poema traz uma mensagem de esperança e o desejo de libertação de um povo sofrido. O que pede o eu lírico?
      O fim do sistema colonial e sonha com o regresso do homem exilado à sua pátria-mãe.

04 – Assim, podemos perceber a certeza da volta à sua terra e da independência da mesma. Retire do texto versos que comprovem essa afirmação.
      “A bela pátria angolana / Nossa mãe / À Angola libertada / Angola Independente / Havemos de voltar”.

05 – Que elementos de sua pátria o eu lírico exalta?
      As casas, nossas lavras, às praias, os campos, do café, do algodão, dos milharais, nossas minas de diamantes, ouro, cobre, de petróleo, rios, lagos, às montanhas, as florestas, os ritmos, às fogueiras, à marimba, ao quissange, nosso carnaval, nossa terra, nossa mãe.

06 – No verso “havemos de voltar”, o verbo em destaque está em que tempo verbal? O que esse modo indica?
      Está no presente do modo indicativo, que expressa uma certeza, um fato.

07 – Nos versos: “Às casas, às nossas lavras
                              às praias, aos nossos campos
                              havemos de voltar”.

        O que o sujeito poético quis dizer?
      Ele canta o desejo de muitos angolanos de ter uma casa própria, ter uma terra e/ou trabalho para se alimentar, ter quadras desportivas, zonas de laser e cultura e, também, manifesta a dor daqueles que veem uma praia da Ilha do Cabo, do Mussulo e outras por Angola adentro a serem fechadas por hotéis, restaurantes e casas, como se o executivo estivesse a privatizar a costa de Angola para alguns indivíduos nacionais e estrangeiros.


POEMA: FANATISMO - FLORBELA ESPANCA - COM QUESTÕES GABARITADAS

Poema: FANATISMO
           
   Florbela Espanca

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!
Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiCQLLkFAVSMa-kVrdxIHqD8h9ndx0VdDury5Z55daFAjbWfHEZe53mjWqkmKNE1usCIX9P6YUDbec-qwX42rMAg5ZqhHd9xF8N6Pz-bFaZ5-RQXwboQ9SBU4ZZ0p1wOv2IBB_yNwHWVoyQsOd5VPhfNNkhZaF_t4Eq50GztiFh2gFPHb-4vKDRo1g92IY/s1600/Blog-Dimensoes-da-Alma-complemento-1.jpg


Não vejo nada assim enlouquecida ...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!


"Tudo no mundo é frágil, tudo passa..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus : Princípio e Fim!..."

Entendendo o poema:

01 – Que estrofe do poema expressa mais claramente o entusiasmo e paixão do eu lírico pela pessoa amada?
      A última estrofe. É possível perceber o exagero nos versos: “Ah! Podem voar mundos, morrer astros, / Que tu és como Deus: Princípio e Fim!..."

02 – O ponto de exclamação presente no último verso de cada estrofe, acentua uma ideia de:
a)   Raiva e ansiedade.
b)   Pavor e sofrimento.
c)   Admiração e emoção.
d)   Saudade e rancor.

03 – O poema, escrito no começo do século XX, apresenta uma linguagem comum a essa época. O verso que mais evidencia essa linguagem é:
a)   Não vejo nada assim enlouquecida.
b)   Minh’alma de sonhar-te anda perdida.
c)   Que tu és como Deus: Princípio e Fim!
d)   Tudo no mundo é frágil, tudo passa...

04 – Dos verbos destacados nos versos a seguir, o ÚNICO conjugado na 2ª pessoa do singular é:
a)   Tudo no mundo é frágil, tudo passa...
b)   Ah! Podem voar mundos, morrer astros.
c)   Meus olhos andam cegos de te ver!
d)   Pois que tu és já toda a minha vida!

05 – O eu lírico do poema é masculino ou feminino? Cite um verso do poema que justifique sua resposta.
      Feminino. “Não vejo nada assim enlouquecida...”

06 – Leia o poema e encontre dois exemplos de prosopopeia, copie-os.
      “Boca divina”; “voar mundos”.

07 – No verso: “Pois que tu és já toda minha vida”. Que figura de linguagem há nesta verso?
      Hipérbole.

08 – Por que o título do poema “Fanatismo” dá uma ideia da intensidade do sentimento?
      Porque remete à definição de um sentimento anormal, que beira a obsessão.

09 – No verso: “Meus olhos andam cegos de te ver!” Há predominância de uma figura de linguagem. Que figura é essa?
      Paradoxo.

10 – Que impressão o poema lhe causou? Qual a sua opinião, é o sentimento do eu lírico?
      Resposta pessoal do aluno.