Poema: Lira
77
Eu, Marília, não fui nenhum Vaqueiro,
Fui honrado Pastor da tua aldeia;
Vestia finas lãs, e tinha sempre
A minha choça do preciso cheia.
Tiraram-me o casal, e o manso gado,
Nem tenho, a que me encoste, um só cajado.
Para ter que te dar, é que eu queria
De mor rebanho ainda ser o dono;
Prezava o teu semblante, os teus cabelos
Ainda muito mais que um grande Trono.
Agora que te oferte já não vejo
Além de um puro amor, de um são desejo.
Se o rio levantado me causava,
Levando a sementeira, prejuízo,
Eu alegre ficava apenas via
Na tua breve boca um ar de riso.
Tudo agora perdi; nem tenho o gosto
De ver-te aos menos compassivo o rosto.
Propunha-me dormir no teu regaço
As quentes horas da comprida sesta,
Escrever teus louvores nos olmeiros,
Toucar-te de papoulas na floresta.
Julgou o justo Céu, que não convinha
Que a tanto grau subisse a glória minha.
Ah! minha Bela, se a Fortuna volta,
Se o bem, que já perdi, alcanço, e provo;
Por essas brancas mãos, por essas faces
Te juro renascer um homem novo;
Romper a nuvem, que os meus olhos cerra,
Amar no Céu a Jove, e a ti na terra.
Fiadas comprarei as ovelhinhas,
Que pagarei dos poucos do meu ganho;
E dentro em pouco tempo nos veremos
Senhores outra vez de um bom rebanho.
Para o contágio lhe não dar, sobeja
Que as afague Marília, ou só que as veja.
Senão tivermos lãs, e peles finas,
Podem mui bem cobrir as carnes nossas
As peles dos cordeiros mal curtidas,
E os panos feitos com as lãs mais grossas.
Mas ao menos será o teu vestido
Por mãos de amor, por minhas mão cosido.
Nós iremos pescar na quente sesta
Com canas, e com cestos os peixinhos:
Nós iremos caçar nas manhãs frias
Com a vara envisgada os passarinhos.
Para nos divertir faremos quanto
Reputa o varão sábio, honesto e santo.
Nas noites de serão nos sentaremos
C’os filhos, se os tivermos, à fogueira;
Entre as falsas histórias, que contares,
Lhes contarás a minha verdadeira.
Pasmados te ouvirão; eu entretanto
Ainda o rosto banharei de pranto.
Quando passarmos juntos pela rua,
Nos mostrarão c’o dedo os mais Pastores;
Dizendo uns para os outros: “Olha os nosso
“Exemplos da desgraça, e são amores”.
Contentes viveremos desta sorte,
Até que chegue a um dos dois a morte
Glossário
Choça: Construção rústica revestida de palha ou de folhas.
Cajado: Pau para apoiar quem caminha.
Regaço: Concavidade formada pela roupa entre a cintura e os joelhos de pessoas sentadas.
Sesta: Sono que se dorme depois do almoço.
Olmeiros: Grandes árvores frondosas.
Papoulas: Gênero de plantas que serve de tipo às papaveráceas.
Jove: Júpiter na mitologia Romana, ou Zeus, na mitologia grega.
Cosido: Costurado.
Envisgada: Presa.
Reputar: Julgar, crer.
Serão: Trabalho feito à noite.
In: Antônio Candido e
J. A. Castello, op. cit. v. 1, p. 165-6.
Entendendo o poema:
01 – O poema pode ser
dividido em duas partes: a primeira trata de uma experiência real, vivida no
passado ou no presente; e a segunda envolve os planos para o futuro.
a)
Identifique as estrofes que compõem cada uma
das partes.
A primeira parte é formada pelas quatro estrofes iniciais, do verso
1 ao verso 24.
A intermediária é a estrofe 5, do verso 25 ao verso 30.
A segunda parte é formada pelas cinco estrofes seguintes, do verso
31 ao verso 60.
b)
Que tipo de vida levava o eu lírico, na
primeira parte? Como se sentia?
O eu lírico narra lembrança do passado. Sentia.
c)
Que tipo de vida idealiza, na segunda parte?
Na segunda parte descreve uma vida modesta, mas feliz, e os dois
últimos reforçam em sentido positivo essa felicidade.
02 – A Lira 77 fala sobre
qual assunto?
É uma obra
textual que tem por conteúdo a história de um pastor que tinha tudo na vida,
mas perdeu após um acidente: o drama visa investigar as comparações realizadas
pelo narrador e a luta pela reconquista do que tinha perdido.
03 – Nos versos: “Eu, Marília, não fui nenhum Vaqueiro, /
Fui honrado Pastor da tua aldeia;”. O que o eu lírico quis dizer?
Que: “Eu,
Marília, não fui uma pessoa de condição social inferior, mas alguém que exercia
alto cargo público, e como tal era respeitado na tua vila”.
04 – O movimento do
Arcadismo veicula valores e ideias da classe que o produz e o consome: a
burguesia.
a)
Destaque do poema os versos relativos a duas
situações em que fica claro a preocupação econômica e material do pastor
Dirceu, indício da ideologia burguesa.
“Tiraram-me o casal e o manso gado; / Se não tivermos lãs e peles
finas.”
b)
Destaque das duas últimas estrofes valores
próprios da moral burguesa da época.
Quando passarmos juntos pela rua nos mostrarão c’o dedo os mais
pastores, dizendo uns para os outros: Olha os nossos exemplos da desgraça e são
amores.
05 – Gonzaga é considerado
um poeta inovador pelo fato de não se prender tanto à regras do Arcadismo. Um
exemplo disso é a introdução de experiências pessoais em sua poesia. Supondo
que o pastor Dirceu seja o próprio Gonzaga:
a)
O que lhe teria ocorrido, a ponto de fazê-lo
perder os bens e a felicidade de viver?
Gonzaga encontra-se preso quando escreveu esse poema, em virtude de
sua participação na inconfidência mineira.
b)
O ideal clássico de aurea mediocritas, no
caso, é para ele apenas um tema literário tradicional? Por quê?
Mais do que adequação aos temas árcades, para Gonzaga, nesse
momento, sonhar com uma vida materialmente simples, mas feliz, é para ele um
desejo real, já que todos os seus bens haviam sido confiscados pela coroa
portuguesa. O poeta esperava pelo julgamento, com a esperança de ainda poder
ser feliz ao lado de Maria Dorotéia. (Marília).
06 – O poema, apesar de
apresentar traços diferentes dos prescritos pela orientação árcade, está ligado
a essa tradição. Retire do texto exemplos de bucolismo, pastoralismo, aurea
mediocritas e elementos da cultura greco-latina.
Bucolismo:
o ambiente bucólico é sugerido por um conjunto de elementos tais como o rio, a
sementeira, o gado, a choça, o cordeiros, etc.
Pastoralismo:
os cordeiros, o cajado, o rebanho.
Aurea
Mediocritas: são exemplos de vida materialmente simples, mas feliz.
Elementos
de cultura greco-latina: jove.