CRÔNICA: Lanterna Mágica
Ivan Ângelo
Vi na televisão um menininho pobre de
uma creche uivando de alegria ao escarafunchar um engradado com os presentes do
Dia da Criança. Eram pequenas tralhas de plástico e caixas de ovos coloridas,
vazias. O pouquíssimo era motivo para incontida e ruidosa alegria. A privação é
a medida do desejo de cada um, na vida.
Houve um tempo em que as oportunidades
de presente resumiam-se a duas: aniversário e Natal. Hoje, na classe média, o
presente é um evento mensal; em algumas famílias, semanal. Cada voltinha num
shopping resulta num pequeno agrado. Não se deseja mais com aquela gana, porque
sabe-se que alguma coisa virá. O desejo dos meninos, da classe média para cima,
é impreciso, vago, incapaz de provocar uivos de alegria quando satisfeito.
Já vivi minhas privações. Nunca pude
ter bicicleta, por exemplo, nem bola de futebol, nem espingarda de rolha.
Tivemos, eu e meus irmãos mais velhos, simulacros: revolverzinho de espoleta,
bola de borracha, triciclo comunitário. Bolas de borracha, sabe-se, não formam
craques. Triciclos não permitem ousadias ou temeridades. Talvez por isso, sem
traquejo, eu tenha sido um perna de pau e um tímido. Quem sabe.
Espingarda de rolha pude usar, por
empréstimo, a de um primo, quando passava férias na casa de meu avô. Fiquei bom
de tiro. Comecei acertando caixinhas de fósforos, acabei acertando moscas. A
rolha era leve demais, desviava-se, então aprendi o truque de enfiar nela um prego
curto, para dar peso e rumo. Bola de couro só mais tarde, no caminho da fazenda
de seu Juca, hoje Cidade Nova, em Belo Horizonte.
Entretanto, o que se tornou para mim
algo mais perto de maravilha foi uma lanterna de pilhas. Nunca tinha visto uma,
a não ser no cinema e nas histórias em quadrinhos. Não sei, talvez considerasse
aquele objeto coisa de ficção científica, não da realidade. Quando vi uma,
manipulada por meu primo mais velho, já homem, o Zezé, na mesma casa de meu
avô, foi um deslumbramento. Brilhava, niquelada, era uma daquelas de quatro
pilhas. Deixar que eu a tomasse nas mãos, e acendesse, e dirigisse a luz para
onde quisesse foi mágico. A partir desse momento nada superou, nos meus sete
anos, a beleza daquele fecho de luz. E o poder. Mesmo quando meu primo não
estava eu me apoderava da lanterna e quixotava, cavaleiro andante.
Deitado, à noite, com a lanterna
dissipava fantasmas. Nos cantos, sombras revelam-se objetos ou cavidades. Uma
súbita lagartixa era imobilizada no teto de taquaras e meditava talvez sobre
qual seria a seguir a sua ação mais prudente. O pernilongo era localizado na
parede, motores parados de repente.
Uma coisa era outra coisa na luz que a
si mesma se desenhava em cone.
A neblina perdia sua amplidão
impalpável, aquele nada que não se podia não ver. Aquela coisa comedora de
contornos. A lanterna cortava uma talhada de neblina, via-se claramente do que
ela não era feita. A luz não ia além, mas até onde ia desnudava a coisa, e
via-se que era móvel.
A chuva noturna não era só, não era
mais, barulho nas telhas, nas folhas. No facho de luz da lanterna as gotas de
chuva eram cintilações, estrelas cadentes, vaga-lumes.
A coruja não se atrevia a piar:
emudecia e olhava de perfil.
Bichinhos de asa – se o canudo de luz se
demorava – vinham dançar, perdiam aquela chatice deles, aquela mania de pousar
na gente.
O sapo esbarrava seu passeio noturno,
como se dissesse epa, que sol é esse?
O poço, mesmo de dia, perdia o
mistério. A luz furava a água cristalina e mostrava o fundo, alguma folha, paz.
Uma pedrinha resvalava e a paz lá embaixo se multipartia em tremulações
luminosas, vibrações.
Partes do corpo, no escuro,
atravessadas pela luz, mostravam um vermelho de abóbora. Nos dedos era possível
pressentir o esqueleto. Na bochecha, frente ao espelho, viam-se veiazinhas.
O céu negro da noite engolia a luz, era
o único a vencê-la.
Ivan Ângelo. O
comprador de aventuras e outras crônicas. São Paulo:
Ática, 2000.v. 8. p.
36-8. (Col. Para Gostar de Ler).
Entendendo o texto:
01 – O texto Lanterna mágica
pode ser considerado um relato pessoal. Justifique essa afirmação.
O texto pode ser
considerado um relato pessoal pois nele o narrador conta, de maneira bastante
expressiva, suas experiências com alguns objetos ou presentes recebidos na
infância e, sobretudo, com uma lanterna que tomou emprestada de seu primo.
02 – O ponto de partida de
texto é uma cena à qual o narrador assistiu na TV.
a)
Que cena foi essa?
Uma criança pobre recebendo, com intensa alegria, “tralhas de
plástico e caixas de ovos coloridas, vazias.”
b)
Depois de assistir a essa cena, o narrador
faz algumas reflexões a respeito da relação das crianças de diferentes classes
sociais com os presentes que ganham. Resuma, em poucas palavras, o conteúdo
dessas reflexões.
O narrador diz que “a privação é a medida do desejo de cada um”: que
as crianças “da classe média para cima”, por ganhar muitos presentes, não dão
valor a eles como as crianças mais pobres.
c)
Você concorda com o narrador? Explique.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Os malefícios do consumismo.
03 – No terceiro e no quarto
parágrafos, o narrador conta suas experiências com brinquedos na infância.
Assinale a(s) alternativa (s) que se adéquam ao texto:
( ) O narrador era um menino mimado, que
ganhava todos os presentes que desejava.
(X) Provavelmente o narrador não
menciona jogos eletrônicos porque, na época em que ele era criança, eles
praticamente não existiam.
( ) O narrador era filho único.
( ) O narrador tornou-se um bom jogador de
futebol praticando com uma bola de borracha.
(X) Na época em que o narrador era
criança, revolverzinhos de espoleta ainda não eram proibidos por lei, apesar de
perigosos.
( ) Todas as lembranças do narrador se passam
em sua casa.
04 – A partir do quinto
parágrafo, o narrador passa a contar suas lembranças e impressões a respeito de
um objeto em particular: uma lanterna.
a)
Transcreva um trecho em que o narrador revela
que a lanterna foi o “brinquedo” que mais o fascinou na infância.
“[...] O que se tornou par mim algo mais perto de uma maravilha foi
uma lanterna de pilhas.”
“A partir desse momento nada superou, nos meus sete anos, a beleza
do meu facho de luz.”
b)
O narrador diz que, até pegar na mãos a
lanterna, “talvez considerasse aquele objeto coisa de ficção cientifica, não da
realidade”. O que você acha que ele quis dizer com isso? Explique nas linhas
abaixo.
A lanterna devia parecer, aos olhos de um menino de 7 anos, uma
“máquina” possante e misteriosa, embora fosse, na verdade, um objeto bastante
simples.
05 – Em certa passagem do
texto, o narrador diz que a lanterna “dissipava fantasmas”. Levando isso em
conta, responda:
a)
Segundo o texto, o que acontecia com as
sombras, nos cantos, à noite?
“Revelavam-se objetos ou cavidades.”
b)
E o “mistério” do poço, o que mostrava, ao
ser iluminado pela lanterna?
A “água cristalina”, “o fundo, alguma folha, paz”.
c)
E quanto às partes do corpo do narrador, como
elas “se transformavam” devido ao facho de luz?
Quando “atravessadas pela luz, mostravam um vermelho de abóbora”;
“nos dedos era possível pressentir o esqueleto”; a bochecha revelava suas
“veiazinhas”.
06 – Complete indicando como
cada animal reagia ao ser iluminado pela luz da lanterna:
·
Lagartixa: ficava
imóvel.
·
Pernilongo: parava os
“motores”.
·
Coruja: emudecia e
olhava de perfil.
·
Bichinhos de asa: dançavam;
perdiam a mania de pousar nas pessoas.
·
Sapo: parava seu
passeio noturno.
07 – A luz da lanterna só
era vencida por um elemento da natureza. Que elemento era esse?
O céu negro da
noite, que “engolia” a luz da lanterna.