Conto: Teleco, O Coelhinho
Murilo Rubião
“Três coisas me são difíceis de entender. E uma quarta eu a ignoro completamente: O
caminho da águia no ar. O caminho da cobra sobre
a
pedra, O caminho da nau no meio do mar, e o caminho do homem
na sua mocidade.” Provérbios,
XXX, 18 e 19.
— Moço, me dá um cigarro?
A voz era sumida, quase um sussurro.
Permaneci na mesma posição em que me encontrava, frente ao mar, absorvido com
ridículas lembranças. O importuno pedinte insistia:
— Moço, oh! moço! Moço, me dá um
cigarro?
Ainda com os olhos fixos na praia,
resmunguei:
— Vá embora, moleque. Senão chamo a
polícia.
— Está bem, moço. Não se zangue. E, por
favor, saia da minha frente que eu também gosto de ver o mar.
Exasperou-me a insolência de quem assim
me tratava e virei-me, disposto a escorraçá-lo com um pontapé. Fui desarmado,
entretanto. Diante de mim estava um coelhinho cinzento, a me interpelar delicadamente:
— Você não dá é porque não tem, não é,
moço?
O seu jeito polido de dizer as coisas
comoveu-me. Dei-lhe o cigarro e afastei-me para o lado, a fim de que melhor ele
visse o oceano. Não fez nenhum gesto de agradecimento, mas já então
conversávamos como velhos amigos. Ou, para ser mais exato, somente o coelhinho
falava. Contava- me acontecimentos extraordinários, aventuras tamanhas que o
supus com mais idade do que realmente aparentava.
Ao fim da tarde, indaguei onde ele
morava. Disse não ter morada certa. A rua era o seu pouso habitual. Foi nesse
momento que reparei nos seus olhos. Olhos mansos e tristes. Deles me apiedei e
convidei-o a residir comigo. A casa era grande e morava sozinho — acrescentei.
A explicação não o convenceu. Exigiu-me
que revelasse minhas reais intenções:
— Por acaso, o senhor gosta de carne de
coelho?
Não esperou pela resposta:
— Se gosta, pode procurar outro, porque
a versatilidade e o meu fraco,
Dizendo isto, transformou-se numa
girafa.
— À noite — prosseguiu — serei cobra ou
pombo. Não lhe importará a companhia de alguém tão instável?
Respondi-lhe que não e fomos morar
juntos.
Chamava-se Teleco.
Depois de uma convivência maior, descobri
que a mania de metamorfosear-se em outros bichos era nele simples desejo de
agradar ao próximo. Gostava de ser gentil com crianças e velhos, divertindo-os
com hábeis malabarismos ou prestando-lhes ajuda. O mesmo cavalo que, pela
manhã, galopava com a gurizada, à tardinha, em lento caminhar, conduzia anciãos
ou inválidos as suas casas.
Não simpatizava com alguns vizinhos,
entre eles o agiota e suas irmãs, aos quais costumava aparecer sob a pele de
leão ou tigre. Assustava-os mais para nos divertir que por maldade. As vítimas
assim não entendiam e se queixavam à polícia, que perdia o tempo ouvindo as
denúncias. Jamais encontraram em nossa residência, vasculhada de cima a baixo,
outro animal além do coelhinho. Os investigadores irritavam-se com os queixosos
e ameaçavam prendê-los.
Apenas uma vez tive medo de que as
travessuras do meu irrequieto companheiro nos valessem sérias complicações.
Estava recebendo uma das costumeiras visitas do delegado, quando Teleco, movido
por imprudente malícia, transformou-se repentinamente em porco do mato. A
mudança e o retorno ao primitivo estado foram bastante rápidas para que
o homem tivesse tempo de gritar. Mal abrira a boca, horrorizado, novamente
tinha diante de si um pacifico coelho:
— O senhor viu o que eu vi?
Respondi, forçando uma cara inocente,
que nada vira de anormal.
O homem olhou-me desconfiado, alisou a
barba e, sem se despedir, ganhou a porta da rua.
A mim também pregava-me peças. Se
encontrava vazia a casa, já sabia que ele andava escondido em algum canto,
dissimulado em algum pequeno animal. Ou mesmo no meu corpo sob a forma de
pulga, fugindo-me dos dedos, correndo pelas minhas costas. Quando começava a me
impacientar e pedia-lhe que parasse com a brincadeira, não raro levava tremendo
susto. Debaixo das minhas pernas crescera um bode que, em disparada me
transportava até o quintal. Eu me enraivecia, prometia-lhe uma boa surra.
Simulando arrependimento. Teleco dirigia-me palavras afetuosas e logo fazíamos
as pazes.
No mais, era o amigo dócil, que nos
encantava com inesperadas mágicas. Amava as cores e muitas vezes surgia
transmudado em ave que as possuía todas e de espécie inteiramente desconhecida
ou de raça já extinta.
— Não existe pássaro assim!
— Sei. Mas seria insípido disfarçar-me
somente em animais conhecidos.
O primeiro atrito grave que tive com
Teleco ocorreu um ano após nos conhecermos. Eu regressava da casa da minha
cunhada Emi, com quem discutira asperamente sobre negócios de família. Vinha
mal-humorado e a cena que deparei, ao abrir a porta da entrada, agravou minha
irritação. De mãos dadas, sentados no sofá da sala de visitas, encontravam-se
uma jovem mulher e um mofino canguru. As roupas dele eram mal talhadas, seus olhos
se escondiam por trás de uns óculos de metal ordinário.
— O que deseja a senhora com esse
horrendo animal? — perguntei, aborrecido por ver minha casa invadida por
estranhos.
— Eu sou o Teleco — antecipou-se, dando
uma risadinha.
Mirei
com desprezo aquele bicho mesquinho, de pelos ralos, a denunciar subserviência
e torpeza. Nada nele me fazia lembrar o travesso coelhinho.
Neguei-me a aceitar como verdadeira a
afirmação, pois Teleco não sofria da vista e se quisesse apresentar-se vestido
teria o bom gosto de escolher outros trajes que não aqueles.
Ante a minha incredulidade,
transformou-se numa perereca. Saltou por cima dos móveis, pulou no meu colo.
Lancei-a longe, cheio de asco.
Retomando a forma de canguru, inquiriu-me,
com um ar extremamente grave:
— E isso? — apontei para a mulher. — É
uma lagartixa ou um filhote de salamandra?
Ela me olhou com raiva. Quis retrucar,
porém ele atalhou:
— É Tereza. Veio morar conosco. Não é
linda?
Sem dúvida, linda. Durante a noite, na
qual me faltou o sono, meus pensamentos giravam em torno dela e da cretinice de
Teleco em afirmar-se homem.
Levantei-me de madrugada e me dirigi à
sala, na expectativa de que os fatos do dia anterior não passassem de mais um
dos gracejos do meu companheiro.
Enganava-me. Deitado ao lado da moça,
no tapete do assoalho, o canguru ressonava alto. Acordei-o, puxando-o pelos
braços:
— Vamos. Teleco, chega de trapaça.
Abriu os olhos, assustado, mas, ao
reconhecer-me, sorriu:
− Teleco?! Meu nome é Barbosa. Antônio
Barbosa, não é. Tereza? Ela, que acabara de despertar, assentiu, movendo a
cabeça. Explodi, encolerizado:
— Se é Barbosa, rua! E não me ponha
mais os pés aqui, filho de um rato!
Desceram-lhe as lágrimas pelo rosto e,
ajoelhado, na minha frente, acariciava minhas pernas, pedindo-me que não o
expulsasse de casa, pelo menos enquanto procurava emprego.
Embora encarasse com ceticismo a
possibilidade de empregar-se um canguru, seu pranto me demoveu da decisão
anterior, ou, para dizer a verdade toda, fui persuadido pelo olhar súplice de
Tereza que, apreensiva, acompanhava o nosso diálogo.
Barbosa tinha hábitos horríveis. Amiúde
cuspia no chão e raramente tomava banho, não obstante a extrema vaidade que o
impelia a ficar
Basta esta prova?
Basta. E daí? O que você
quer?
De
hoje em diante serei apenas homem. Homem? — indaguei atônito. Não resisti ao
ridículo da situação e dei uma gargalhada: horas e horas diante do espelho.
Utilizava-se do meu aparelho de barbear, da minha escova de dentes e pouco
serviu comprar-lhe esses objetos, pois continuou a usar os meus e os dele. Se
me queixava do abuso, desculpava-se, alegando distração.
Também a sua figura tosca me repugnava.
A pele era gordurosa, os membros curtos, a alma dissimulada. Não media esforços
para me agradar, contando-me anedotas sem graça, exagerando nos elogios a minha
pessoa.
Por outro lado, custava tolerar suas
mentiras e, às refeições, a sua maneira ruidosa de comer, enchendo a boca de
comida com auxílio das mãos.
Talvez por ter-me abandonado aos
encantos de Tereza, ou para não desagradá-la, o certo é que aceitava, sem
protesto, a presença incômoda de Barbosa.
Se afirmava ser tolice de Teleco querer
nos impor sua falsa condição humana, ela me respondia com uma convicção
desconcertante:
— Ele se chama Barbosa e é um homem.
O canguru percebeu o meu interesse pela
sua companheira e, confundindo a minha tolerância como possível fraqueza, tornou-se
atrevido e zombava de mim quando o recriminava por vestir minhas roupas, fumar
dos meus cigarros ou subtrair dinheiro do meu bolso.
Em diversas ocasiões, apelei para a sua
frouxa sensibilidade, pedindo-lhe que voltasse a ser coelho.
– Voltar a ser coelho? Nunca fui bicho.
Nem sei de quem você fala.
– Falo de um coelhinho cinzento e
meigo, que costumava se transformar em outros animais.
Nesse meio tempo, meu amor por Tereza
oscilava por entre pensamentos sombrios, e tinha pouca esperança de ser
correspondido. Mesmo na incerteza, decidi propor-lhe casamento.
Fria, sem rodeios, ela encerrou o
assunto:
— A sua proposta é menos generosa do
que você imagina. Ele vale muito mais.
As palavras usadas para recusar-me
convenceram-me de que ela pensava explorar de modo suspeito as habilidades de
Teleco.
Frustrada a tentativa do noivado, não
podia vê-los juntos e íntimos, sem assumir uma atitude agressiva.
O canguru notou a mudança no meu comportamento
e evitava os lugares onde me pudesse encontrar.
Uma tarde, voltando do trabalho, minha
atenção foi alertada pelo som ensurdecedor da eletrola, ligada com todo o
volume. Logo, ao abrir a porta, senti o sangue afluir-me à cabeça: Tereza e Barbosa,
os rostos colados, dançavam um samba indecente.
Indignado, separei-os. Agarrei o
canguru pela gola e, sacudindo-o com violência, apontava-lhe o espelho da sala:
— É ou não é um animal?
— Não, sou um homem! — E
soluçava, esperneando, transido de medo pela fúria que via nos meus olhos.
À Tereza, que acudira,
ouvindo seus gritos, pedia: — Não sou um homem, querida? Fale com ele.
— Sim, amor, você é um homem.
Por mais absurdo que me parecesse,
havia uma trágica sinceridade na voz deles. Eu me decidira, porém. Joguei
Barbosa ao chão e lhe esmurrei a boca. Em seguida, enxotei-os.
Ainda da rua, muito excitada, ela me
advertiu:
— Farei de Barbosa um homem importante,
seu porcaria! Foi a última vez que os vi. Tive, mais tarde, vagas notícias de
um mágico chamado Barbosa a fazer sucesso na cidade, À falta de maiores
esclarecimentos, acreditei ser mera coincidência de nomes.
A minha paixão por Tereza se esfumara
no tempo e voltara-me o interesse pelos selos. As horas disponíveis eu as
ocupava com a coleção. Estava, uma noite, precisamente colando exemplares
raros, recebidos na véspera, quando saltou, janela adentro, um cachorro.
Refeito do susto, fiz menção de correr o animal. Todavia não cheguei a
enxotá-lo.
— Sou o Teleco, seu amigo — afirmou,
com uma voz excessivamente trêmula e triste, transformando-se em uma cotia.
— E ela? — perguntei com simulada
displicência.
— Sem que concluísse a frase, adquiriu
as formas de um pavão.
— Havia muitas cores… o circo… ela
estava linda… foi horrível… — prosseguiu, chocalhando os guizos de uma
cascavel.
Seguiu-se
breve silêncio, antes que voltasse a falar:
— O uniforme… muito branco… cinco cordas…amanhã serei
homem…— as palavras saíam-lhe espremidas, sem nexo, à medida que Teleco se
metamorfoseava em outros animais.
Por
um momento, ficou a tossir, Uma tosse nervosa. Fraca, a princípio, ela avultava
com as mutações dele em bichos maiores, enquanto eu lhe suplicava que se
aquietasse. Contudo ele não conseguia controlar-se.
Debalde tentava exprimir-se. Os
períodos saltavam curtos e confusos.
— Pare com isso e fale mais calmo —
insistia eu, impaciente com as suas contínuas transformações.
— Não posso — tartamudeava, sob a pele
de um lagarto.
Alguns dias transcorridos, perdurava o
mesmo caos. Pelos cantos, a tremer. Teleco se lamuriava, transformando-se
seguidamente nos mais variados animais. Gaguejava muito e não podia
alimentar-se, pois a boca, crescendo e diminuindo, conforme o bicho que
encarnava na hora, nem sempre combinava com o tamanho do alimento. Dos seus
olhos, então, escorriam lágrimas que, pequenas nos olhos miúdos de um rato,
ficavam enormes na face de um hipopótamo.
Ante a minha impotência em diminuir-lhe
o sofrimento, abraçava-me a ele, chorando. O seu corpo, porém, crescia nos meus
braços, atirando-me de encontro à parede.
Não mais falava: mugia, crocitava,
zurrava, guinchava, bramia, trissava.
Por fim, já menos intranquilo, limitava
as suas transformações a pequenos animais, até que se fixou na forma de um
carneirinho, a balir tristemente. Colhi-o nas mãos e senti que seu corpo ardia
em febre, transpirava.
Na última noite, apenas estremecia de
leve e, aos poucos, se aquietou. Cansado pela longa vigília, cerrei os olhos e
adormeci. Ao acordar, percebi que uma coisa se transformara nos meus braços. No
meu colo estava uma criança encardida, sem dentes. Morta.
Entendendo
o conto:
01 – Com base na leitura e
análise do conto “Teleco, o Coelhinho”, classifique as afirmações seguintes de
verdadeiras ou falsas:
a)
(F) Teleco e o narrador conheceram-se em um
zoológico.
b) (F) Quando o narrador encontrou Teleco pela
primeira vez e levou-o para casa, Ele estava metamorfoseado em mulher.
c) (F) O narrador levou Teleco para casa sem saber que
ele se metamorfoseava em outros bichos.
d)
(F) A mania de metamorfosear-se em outros bichos
fazia parte do gênio ruim de Teleco e da sua aversão aos humanos.
e)
(V) Antes de ir para a casa do narrador, Teleco
avisou que poderia virar cobra, pombo, girafa. Mesmo assim o narrador
aceitou-o.
02 – Com base na leitura e
análise do conto “Teleco”, o Coelhinho classifique as afirmações seguintes de
verdadeiras ou falsas:
a)
(V) Quando o narrador se irritava com as
brincadeiras de Teleco, o coelho fingia arrependimento, e os dois faziam as
pazes.
b)
(V) Certa vez, Teleco virou uma girafa no quintal,
assustando o delegado que revistava a residência.
c)
(V) O primeiro atrito grave entre o narrador e
Teleco ocorreu quando o coelho se transformou em cobra.
d)
(F) O coelho transformou-se em homem: chamava-se
Barbosa e tinha uma namorada, Tereza.
e)
(F) Quando Teleco virou canguru e arranjou uma
namorada (Tereza), o narrador expulsou-o de casa imediatamente.
03 – Com base na leitura e
análise do conto “Teleco, o Coelhinho”, classifique as afirmações seguintes de
verdadeiras ou falsas:
a)
(F) A convivência com Barbosa era tolerável porque
o canguru era asseado e gentil.
b)
(F) O narrador, com o tempo, passou a gostar de
Barbosa.
c)
(V) O narrador aceitava Barbosa por causa dos
encantos de Tereza.
d)
(V) Tereza tinha convicção de que Barbosa era um
homem e não um canguru.
e)
(V) Na condição de Barbosa, Teleco negava ter sido
bicho algum dia.
04 – Com base na leitura e
análise do conto “Teleco, o Coelhinho”, classifique as afirmações seguintes de
verdadeiras ou falsas:
a)
(V) O narrador, mesmo sentindo que seu amor não era
correspondido, propôs casamento a Tereza.
b)
(F) Tereza aceitou casar-se com o narrador, desde
que continuasse amante de Barbosa.
c)
(V) Os ciúmes do narrador levaram-no a esmurrar
Barbosa e expulsá-lo, junto com Tereza, de casa.
d)
(V) O narrador esmurrou Barbosa quando o flagrou
dançando indecentemente com Tereza.
e)
(F) Por causa de Tereza, o narrador e o canguru
brigaram; este venceu, mas foi expulso de casa.
05 – Com base na leitura e
análise do conto Teleco, o Coelhinho, classifique as afirmações seguintes de
verdadeiras ou falsas:
a)
(V) Depois de ser expulso da casa do narrador,
Barbosa fez sucesso como mágico de um circo.
b)
(F) Tereza, meses depois de ser expulsa, abandonou
Barbosa e voltou para a casa do narrador.
c)
(V) O narrador ocupava sua horas de folga com
filatelia.
d)
(V) Teleco voltou à casa do narrador, mas não soube
explicar direito o que aconteceu a Tereza.
e)
(V) No final, com a forma fixa de carneiro, Teleco
morreu nos braços do narrador.
f)
(V) A última metamorfose de Teleco foi de
carneirinho para criança morta, encardida e sem dentes.