CRÔNICA: TESTEMUNHA TRANQUILA
Stanislaw Ponte Preta
O camarada chegou assim com ar
suspeito, olhou pros lados e — como não parecia ter ninguém por perto — forçou
a porta do apartamento e entrou. Eu estava parado olhando, para ver no que ia
dar aquilo. Na verdade eu estava vendo nitidamente toda a cena e senti que o
camarada era um mau-caráter.
E foi batata. Entrou no
apartamento e olhou em volta. Penumbra total. Caminhou até o telefone e
desligou com cuidado, na certa para que o aparelho não tocasse enquanto ele
estivesse ali. Isto — pensei — é porque ele não quer que ninguém note a sua
presença: logo, só pode ser um ladrão, ou coisa assim.
Mas não era. Se fosse ladrão
estaria revistando as gavetas, mexendo em tudo, procurando coisas para levar. O
cara — ao contrário — parecia morar perfeitamente no ambiente, pois mesmo na
penumbra se orientou muito bem e andou desembaraçado até uma poltrona, onde
sentou e ficou quieto:
— Pior que ladrão. Esse cara
deve ser um assassino e está esperando alguém chegar para matar — eu tornei a
pensar e me lembro (inclusive) que cheguei a suspirar aliviado por não conhecer
o homem e — portanto — ser difícil que ele estivesse esperando por mim.
Pensamento bobo, de resto, pois eu não tinha nada a ver com aquilo.
De repente ele se retesou na
cadeira. Passos no corredor. Os passos, ou melhor, a pessoa que dava os passos,
parou em frente à porta do apartamento. O detalhe era visível pela réstia de
luz, que vinha por baixo da porta.
Som de chave na fechadura e a
porta se abriu lentamente e logo a silhueta de uma mulher se desenhou contra a
luz. Bonita ou feia? — pensei eu. Pois era uma graça, meus caros. Quando ela
acendeu a luz da sala é que eu pude ver. Era boa às pampas. Quando viu o cara
na poltrona ainda tentou recuar, mas ele avançou e fechou a porta com um
pontapé… e eu ali olhando. Fechou a porta, caminhou em direção à bonitinha e
pataco… tacou-lhe a primeira bolacha. Ela estremeceu nos alicerces e pimba…
tacou outra. Os caros leitores perguntarão:— E você? Assistindo àquilo tudo sem
tomar uma atitude?
— a pergunta é razoável. Eu tomei
uma atitude, realmente. Desliguei a televisão, a imagem dos dois desapareceu e
eu fui dormir.
https://contobrasileiro.com.br/testemunha-tranquila-cronica-de-stanislaw-ponte-preta/
Fonte: Figueiredo, Adriana Giarola Ferraz-Sistema Maxi de Ensino: ensino
médio: língua portuguesa 2º ano: cadernos de1 a 4: manual do professor/Adriana
Giarola Ferraz Figueiredo, Denise Silveira Silva Barros, Alberto Luís Pugina
Silva. 1.ed. São Paulo: Maxiprint Editora,2018. p.26-7.
Entendendo o texto
01. A
crônica de Stanislaw Ponte Preta apresenta que tipo de narrador? Explique.
Trata-se de um narrador-personagem, pois apesar de o narrador contar
a história de um homem suspeito, em 3ª pessoa, ele também é um personagem, ele
participa da história, como demonstra o trecho a seguir: “Eu estava parado
olhando, para ver no que ia dar aquilo”, por exemplo.
02. O
texto lido tem um desfecho inusitado. O que acontece de inesperado no fim da
crônica? Justifique a sua resposta.
O desfecho da crônica esclarece que o narrador está apenas
assistindo à televisão. Trata-se de um telespectador, portanto, o que é narrado
nada mais é do que parte de um programa televisivo.
03. Analisando
o título da crônica e o desfecho apresentado, é possível concluir que há uma
crítica implícita nesse contexto. Qual é essa crítica? Fundamente a sua
resposta com um trecho do texto.
O título “Testemunha tranquila” remete-nos ao fim da crônica, quando
o leitor descobre que o narrador é somente, um telespectador de algum programa
de tevê. Diante disso e do enredo, é possível inferir que há uma crítica a esse
tipo de espectador que, mesmo diante de um fato um tanto quanto questionável, o
homem misterioso bater em uma mulher, mesmo que dentro de um programa de tevê,
a única atitude do telespectador foi desligar a tevê e esquecer o que tinha
visto: “Eu tomei uma atitude, realmente. Desliguei a televisão, a imagem dos
dois desapareceu e eu fui dormir.”
04. Releia
este período: “Na verdade eu estava vendo nitidamente toda a cena e senti que
o camarada era um mau-caráter.” O vocábulo que, destacado no texto,
apresenta que classificação morfológica? Explique a sua resposta.
Nesse período, o vocábulo “que” corresponde a uma conjunção
integrante, pois ele está ligando uma oração principal a uma oração subordinada
substantiva objetiva direta.
05. No
excerto “Se fosse ladrão estaria revistando as gavetas, mexendo em tudo,
procurando coisas para levar. O cara – ao contrário – parecia morar
perfeitamente no ambiente, pois mesmo na penumbra se orientou muito bem
e andou desembaraçado até uma poltrona, onde sentou e ficou quieto: “há duas
incidências da palavra se.
a)
Qual é a função morfológica exercida pelo se
nesses dois contextos distintos?
Na primeira ocorrência, “se” é uma conjunção subordinada condicional,
pois introduz uma oração subordinada adverbial condicional e pode ser
substituído por “caso”. Na segunda ocorrência, trata-se de um pronome reflexivo,
pois o sujeito pratica e sofre a ação ao mesmo tempo.
b)
Na segunda incidência do vocábulo se, qual
é a função sintática exercida?
Nessa ocorrência, “se” exerce a função de objeto direto do verbo “orientar”,
que é transitivo direto pronominal, pois nesse contexto quem orienta, orienta alguém,
o homem suspeito orientou a si mesmo.
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