domingo, 24 de janeiro de 2021

HISTÓRIA: ULISSES CONTRA O CICLOPE (FRAGMENTO) - TRAD.E ADAPT. MARQUES REBELO - COM GABARITO

 História: Ulisses contra o ciclope (Fragmento)

             Trad. E adapt. Marques Rebelo

    Em sua obra Odisséia, o poeta grego Homero conta que, em tempos muito distantes, houve uma longa guerra entre dois povos: os gregos e os troianos. Dentre os guerreiros gregos, destacava-se Odisseu, hoje mais conhecido como Ulisses, que muito contribuiu para a vitória de seu povo. Com a destruição de Tróia, Ulisses quis voltar para Ítaca, uma das ilhas gregas, da qual era rei. Mas nessa viagem, que durou dez anos, encontrou inúmeras dificuldades, já que Posêidon, o deus do mares e protetor de Tróia, prometera vingar os troianos e impedir que Ulisses retornasse a seu reino. Contando com a proteção de Atena, a deusa da sabedoria, o herói viveu muitas aventuras: encontros com deuses, sereias, monstros. O texto a seguir narra um episódio em que a coragem e a inteligência de Ulisses são postas à prova: ele chega a uma ilha habitada por gigantes devoradores de gente, os ciclopes.

        [...] Certo dia, quando o sol se punha, Ulisses deu com uma ilha deserta, onde uma mansa praia favorecia seguro abrigo.

        [...]

        Entraram no barco e remaram em direção à ilha. Lá chegando, Ulisses escolheu doze dos mais valentes homens da tripulação e desembarcou para explorar o lugar. Levava um saco de couro de bode cheio do generoso vinho que o sacerdote de Apolo em Ísmaros lhe oferecera para salvar a si e a família, quando a cidade fora atacada. Era um vinho sem igual: bastava juntar uma medida dele a vinte de água para se obter uma bebida maravilhosa. Levava também uma razoável porção de trigo tostado, por pressentir que talvez precisasse de alimento.

        Vagaram algum tempo até que encontraram uma gruta, que parecia ser a moradia de um precavido pastor. Havia baias para os carneiros e cabritos, cestos cheios até a borda de cereais e cântaros de leite encostados nas paredes.

        [...]

        Anoitecia quando o ciclope voltou. Era um gigante imenso, o olho na testa muito aberto e encimado por espessa sobrancelha. Vinha trazendo às costas um enorme feixe de troncos de pinheiro para alimentar seu fogo. Jogou-o estrondosamente no chão, recolheu o rebanho, após o que vedou a entrada com uma pedra tão grande que vinte carroças mal poderiam carregá-la. [...] E, então, reanimou o fogo com uns poucos troncos de pinheiro. As chamas se elevaram logo e o clarão denunciou os gregos que se haviam escondido no fundo da caverna, quando viram o gigante entrar.

        –– Quem são vocês? Mercadores ou piratas? – gritou.

        –– Nós não somos piratas, senhor – respondeu Ulisses –, mas gregos que retornam de Tróia, onde lutamos pelo grande Rei Agamenon, cuja fama se espalha por todos os cantos do mundo. Rogamos que nos receba com hospitalidade que os deuses recompensam.

        [...]

        O gigante não disse uma palavra, mas lentamente agarrou dois dos homens, com a facilidade com que Ulisses teria agarrado dois cachorrinhos, lançou-os ao chão, despedaçou-os e devorou-os inteiramente, entrecortando a deglutição com grandes goles de leite. Terminando de comê-los, deitou-se entre os carneiros e caiu no sono.

        Ulisses raciocinou: poderia matar aquele monstro enquanto ele estava adormecido, furando-lhe o coração com sua forte espada; mas, se assim fizesse, morreriam todos, pois não tinham forças para remover a descomunal pedra que impedia a saída. E deixou a noite passar com o coração pesado de aflição.

        Bem cedo o ciclope despertou, ordenhou as ovelhas, devorou mais dois homens e saiu para as pastagens, levando o seu rebanho, mas recolocando a pedra na boca da gruta.

        Ulisses passou muitas horas imaginando como poderia safar-se e safar seus companheiros. E afinal armou um plano. Havia na gruta um tronco de oliveira, ainda verde, que o ciclope usaria como bordão, depois de tê-lo convenientemente secado com fumaça. Ulisses tirou uma boa acha de pau, aguçou-a numa das suas pontas, endureceu-a no fogo e escondeu-a. À noitinha o gigante regressou e comeu mais dois homens. Quando acabara de comê-los, Ulisses dirigiu-se a ele com o saco de vinho na mão e disse:

        –– Agora que acabou de cear prove este vinho, senhor. Veja que coisas maravilhosas trazíamos no nosso navio. Mas ninguém trará coisas iguais para esta ilha se for tão cruel com os estrangeiros. O gigante tomou o saco, entornou um bom trago, gostou imensamente do vinho e disse:

        –– Quero mais.  É uma bebida magnífica. Acho que é a que deuses bebem no Olimpo. Mas diga qual é o seu nome, pois desejo lhe dar um presente como todo hóspede merece.

        –– Meu nome é Ninguém –respondeu Ulisses. –Agora me dê o presente.

        –– Meu presente é muito simples: você será comido por último. – E dito isto, o ciclope tombou num sono de bêbado.

        Aí, Ulisses dirigiu-se a seus homens:

        –– Sejam valentes, rapazes! Chegou a hora de nos livrarmos desta prisão.

        Puseram a acha no fogo até que ela, embora verde, ficasse incandescente e assim a enfiaram no olho do ciclope e ela chiou na órbita como ferro em brasa dentro d’água.  É preciso dizer que Ulisses fê-la girar como se girasse uma chave na fechadura. O gigante deu um pulo, arrancou a acha fumegante e soltou tão alto e medonho uivo que todos os ciclopes da ilha, que estavam dormindo, acudiram para ver o que sucedera.

        –– Que diabo tem você para fazer tal escarcéu a ponto de nos acordar? – perguntaram do lado de fora. –– Será que estão lhe roubando ou estão lhe ferindo?

        –– Ninguém me feriu! – berrou o gigante.

        –– Se ninguém lhe feriu, foram então os deuses que o fizeram e contra eles de nada valemos.

        E os ciclopes se retiraram. Ulisses não pôde deixar de sorrir quando viu que os havia enganado dando um nome trocado, mas não atinara ainda de que maneira ele e os companheiros iriam escapar.

        O ciclope sentara-se à entrada da gruta, barrando a passagem e apalpando os carneiros para evitar que os estrangeiros tentassem escapulir escondidos no meio deles. Ulisses, então, depois de muitos tratos à bola, arquitetou um plano para fuga.  O ciclope, felizmente, havia levado para dentro da gruta os carneiros maiores, que habitualmente deixava do lado de fora. Ulisses arrebanhou alguns deles e utilizando varas de vime, ligou-os três a três. O carneiro do meio levava um homem convenientemente amarrado na barriga e os outros, um de cada lado, ajudaram a escondê-lo. Só que Ulisses ficou desamarrado, pois não podia atar-se a si próprio, mas como era astucioso, resolveu prontamente a sua dificuldade. Como havia um carneiro maior do que os outros, agarrou-se a ele, segurando a lã com unhas e dentes.

        Assim que rompeu o dia, os rebanhos deixaram a caverna como de costume; o ciclope ia apalpando-os quando passaram perto dele, mas não descobriu nenhum dos homens. Ao apalpar o carneiro maior, estranhou:

        –– Que houve? Nunca ficou para trás, pelo contrário, sempre foi você o primeiro a desabalar pelo pasto de manhã e o primeiro a correr para o aprisco de tardinha... Será que está perturbado com o olho do seu dono que o vil Ninguém furou? Ah, se você pudesse falar e me dizer onde está aquele miserável! Eu arrebentaria a cabeça dele contra a pedra! – e deixou o animal sair.

        Tão depressa Ulisses se viu longe do ciclope, desprendeu-se do carneiro, desamarrou os companheiros e correram todos para o lugar onde tinham deixado o barco, virando-se várias vezes na corrida para se certificarem de que o gigante não os perseguia. [...] E, sem dizer palavras, chegaram a bordo e logo remaram com quanta força tinham.

                   A Odisséia. Trad. E adapt. Por Marques Rebelo. Rio de Janeiro, Ediouro, 1971. Col. Clássicos para o Jovem Leitor.

Fonte: Livro – Ler, entender, criar – Português – 6ª Série – Ed. Ática, 2007 – p. 28-34.

Entendendo a história:

01 – Agora voltando ao texto “Ulisses contra o ciclope”. Quais são as características que fazem de Ulisses um herói?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Ulisses superou um obstáculo que parecia intransponível por meio da astúcia, da inteligência, do espírito de liderança, da coragem de tomar decisões e de correr riscos.

02 – Que semelhanças e diferenças você notou entre Ulisses, herói da mitologia grega, e os heróis modernos da ficção, isto é, criados pela imaginação?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Nesse episódio, Ulisses não demonstra possuir nenhum tipo de poder mágico, os chamados superpoderes, comuns entre os heróis modernos. As características que lhe permitem vencer o perigo são humanas, e não sobrenaturais.

03 – Com um colega, tente descobrir o significado das palavras destacadas nos trechos abaixo. Se necessário, usem o dicionário. Depois, copie os trechos no caderno, substituindo os termos destacados por outros de mesmo sentido. Faça nas frases os ajustes necessários:

a)   “[...] encontraram uma gruta, que parecia ser a moradia de um precavido pastor”.

Moradia: morada, casa, habitação;

Precavido: prevenido.

b)   “[...] recolheu o rebanho, após o que vedou a entrada com uma pedra tão grande que vinte carroças mal poderiam carrega-la”.

Vedar: fechar; Mal: a custo, dificilmente.

c)   “Bem cedo o ciclope despertou, ordenhou as ovelhas, devorou mais dois homens e saiu [...]”.

Ordenhou: tirar o leite.

d)   “Havia na gruta um tronco de oliveira, ainda verde, que o ciclope usaria como bordão, depois de tê-lo convenientemente secado com fumaça”.

Oliveira: árvore cujo fruto (as azeitonas) são usadas na alimentação humana;

Bordão: cajado, bastão (usado pelos pastores para conduzir o rebanho);

Convenientemente: de forma conveniente, adequada.

04 – Identifique no texto e copie no caderno trechos que informem:

a)   Como era a alimentação dos viajantes e dos habitantes da ilha.

“Levava também uma razoável porção de trigo tostado [...]”, “[...] cestos cheios até a borda de cereais e cântaros de leite encostados nas paredes”.

b)   De que forma iluminavam suas moradias.

“E, então, reanimou o fogo com uns poucos troncos de pinheiro”.

c)   Algumas das atividades realizadas pelos homens naquele tempo.

“Quem são vocês? Mercadores ou piratas?”, “Nós não somos piratas, senhor [...], mas gregos que retornam de Tróia, onde lutamos pelo grande Rei Agamenon [...]”.

05 – Por que Ulisses concluiu que não deveria matar o ciclope enquanto ele dormia?

      Porque o ciclope era o único que poderia remover a descomunal pedra que vedava a entrada da gruta; se ele morresse, os gregos permaneceriam presas lá e morreriam.

06 – Leia:

        “–– Ninguém me feriu! – berrou o gigante.

        –– Se ninguém lhe feriu, foram então os deuses que o fizeram e contra eles de nada valemos.

        E os ciclopes se retiraram.”

a)   A quem o ciclope se refere quando diz que Ninguém o feriu?

A Ulisses, que enganara o gigante dizendo-lhe que se chamava Ninguém.

b)   Quem, entretanto, os outros ciclopes imaginaram que havia ferido o gigante?

Os outros ciclopes entenderam que pessoa alguma o atacara, portanto o ferimento só poderia ter sido obra dos deuses.

c)   Na sua opinião, por que os ciclopes dizem que contra os deuses eles nada valiam?

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: No pensamento dos gregos antigos, acreditavam que os deuses controlavam o destino dos homens.

07 – Ulisses, com um pedaço de pau incandescente, furou e cegou o único olho do ciclope. Ainda assim os gregos teriam que passar pelo gigante, que barrava a entrada da gruta e apalpava os carneiros que saiam, verificando se os prisioneiros não se escondiam neles. Explique no caderno, com suas palavras, que plano o herói arquitetou para fuga.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Utilizando varas de vime, Ulisses juntou alguns carneiros, três a três; em cada grupo de três carneiros, o do meio levava um homem amarrado na barriga. Quanto ao próprio Ulisses, agarrou-se ao maior dos carneiros. Quando de manhã, os carneiros deixaram a caverna, os viajantes viram-se livres.

08 – Releia:

        Entraram no barco e remaram em direção à ilha. Lá chegando, Ulisses escolheu doze dos mais valentes homens da tripulação e desembarcou para explorar o lugar.”

a)   Em que pessoa gramatical estão os verbos destacados nesse trecho?

Na terceira pessoa gramatical.

b)   Pode-se dizer então que, nesse texto, o narrador é uma personagem da história? Ou ele é um observador que não participa dos fatos narrados?

O narrador é um observador que não participa da história.

c)   Que tempo verbal predomina nesse trecho da narrativa? Por que, na sua opinião, esse tempo é o mais usado nesse trecho?

O pretérito perfeito do indicativo. O narrador usa esse tempo verbal porque está relatando fatos passados, totalmente concluídos.

09 – Em que espaço se passam os fatos narrados? Copie no caderno trechos do texto em que há descrição desses locais.

      Os fatos narrados acontecem na praia e em uma gruta de uma ilha deserta. “Certo dia, quando o sol se punha, Ulisses deu com uma ilha deserta, onde uma mansa praia favorecia seguro abrigo”, “Vagaram algum tempo até que encontraram uma gruta, que parecia ser a moradia de um precavido pastor. Havia [...] nas paredes”.

10 – Quais são as personagens principais de “Ulisses contra ciclope”? Escreva no caderno um parágrafo caracterizando-as. Procure dar detalhes significativos sobre elas. Empregue substantivos acompanhados de adjetivos.

      Ulisses e o ciclope. Sugestão: “O ciclope é um gigante imenso, forte, com um olho muito aberto na testa e sobrancelha espessa. Ulisses, o herói, é inteligente e esperto”.

11 – Em diversos momentos do texto o relato do narrador é interrompido pelo discurso direto, isto é, pela transcrição das falas das personagens. Nesses momentos, é como se o narrador desse a palavra às personagens, deixando-as falar. Transcreva no caderno um trecho em que ocorra discurso direto. Depois, de sua opinião: a presença de discurso direto em uma narrativa enriquece ou empobrece o texto?

      Resposta pessoal do aluno.

12 – As narrativas de aventuras contêm, em geral:

·        Uma situação inicial, em que são apresentados as personagens e o espaço onde a ação ocorre;

·        Um ou mais obstáculos à ação do herói, estabelecendo-se um conflito entre ele e seu antagonista (adversário);

·        Diversos momentos de ação, um dos quais apresenta maior emoção, mantendo o leitor em clima de suspense: é o clímax;

·        Um desfecho, após o clímax, momento em que tudo se resolve.

Identifique no texto lido:

a)   A situação inicial: Ulisses e seus companheiros chegam à ilha e encontram a gruta do ciclope gigante.

b)   O clímax: Surge o gigante, que fecha a porta da gruta com uma pedra e devora alguns gregos.

c)   O obstáculo: Os gregos, prisioneiros na gruta, serão devorados pelo ciclope. Para salvar a si e a seus companheiros, Ulisses terá que arquitetar um plano.

d)   O desfecho: Os gregos já saíram da gruta amarrados aos carneiros. Ulisses, entretanto, ainda não se salvou. O gigante apalpa o último carneiro, ao qual Ulisses está agarrado, e o herói corre o risco de ser descoberto e morrer.

e)   O conflito entre o herói e seu antagonista: Ulisses consegue sair da gruta e desamarra os companheiros. Todos correm para o barco e remam com força para longe da praia.

 

 

CARTA: ANITA MALFATTI - MÁRIO DE ANDRADE - COM GABARITO

 Carta: Anita Malfatti


Mário de Andrade

S. Paulo 1-12-1924

        Anita do coração, estou pra te escrever faz dias dando-te os parabéns pela tua aceitação no Salão de Outono. Fiquei contentíssimo e consegui notícias no Jornal do Comércio e Correio Paulistano. No Estado não posso chegar. Inimigos. Mas soube pela tua mãi que reproduziram a notícia. Ainda bem. Apareceu alguma crítica? Também é tanta gente a concorrer ao Salão!... E teus quadros ficaram bem colocados? Morri de desejo de vê-los. E a estátua do Brecheret? Aquele animal não há meio de me escrever nem uma linha. Estou danado com ele. Por que não pede pra noiva, não? Quem tem uma noivinha boa como me dizem que é a dele, pode pedir a ela que escreva. Depois bota um abraço em baixo e pronto. Vi a fotografia da Porteuse de Parfums. Achei-a lindíssima. Que equilíbrio e que construção! Morri de desejos de vê-la também. Vivo morrendo por causa de vocês. Que amigos assassinos, puxa! Brecheret ao menos mandou fotografias. E tu nem isso! Pois si já me contaste que as fotografias foram tiradas, por que se fazer de rogada agora? Manda as fotografias in continente sinão me zango de verdade.

      Nós aqui bem. Eu como sempre de cangalha no pescoço. Mal posso me mexer. Antes-de-ontem caí do bonde. Um Horror! Assim: De bunda no trilho. Felizmente há um anjo-da-guarda pros malucos que tomam bonde andando. O caradura me pegou com as pernas e me atirou longe. Rolei no asfalto que nem uma bolinha de papel, disse um que viu. Felizmente não aconteceu nada. Escangalhei roupa, chapéu e botina. No corpo umas arranhaduras. Só que tudo me dói, pescoço, braços, joelhos, costas, tudo. Está sarando, não te assustes.

        Já te falei do baile futurista? Esteve estupendo. Um pintor russo de muito valor que mora agora aqui fez as decorações duma sala. Estupendas, nem imaginas. E esteve divertidíssimo até 6 horas da manhã.

        Não tenho mais nada pra te contar. Ando miquiado e saí de Ariel. São trezentos milréis de menos. Justamente o que te devo e não me esqueço. Dia virá. Espera. Dia virá, minha querida Anita. O “querida” não está aqui pra adoçar a tua espera. Está porque te quero bem. Até logo.

        O mais apertado dos abraços do Mário.

   Marta Rossetti Batista, org. Mário de Andrade – Cartas a Anita Malfatti. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1989.

Fonte: Livro – Ler, entender, criar – Português – 6ª Série – Ed. Ática, 2007 – p.131-3.

Fonte da imagem - https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fpt.wikipedia.org%2Fwiki%2FAnita_Malfatti&psig=AOvVaw18_iIFEz4qlg4p4TBEXork&ust=1611610652312000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCMC6y-DDte4CFQAAAAAdAAAAABAD

Entendendo a carta:

01 – O texto acima é uma carta enviada pelo escritor Mário de Andrade à pintora Anita Malfatti. Onde e quando foi escrita essa carta?

      Em São Paulo, em 1/12/1924.

02 – Muitas das expressões usadas por Mário de Andrade em sua carta à amiga nos soam estranhas. No entanto, ela foi redigida em português, a mesma língua que falamos hoje. Como se explica essa estranheza?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Em mais de setenta anos, a língua – que não é algo rígido e imutável – se transformou: fixou-se de alguma forma a grafia de certas palavras que ainda era oscilante. Certos vocábulos deixaram de ser usados e outros foram incorporados, etc. Acrescentem-se a isso certas maneiras de grafar próprias de Mário de Andrade, que escrevia, por exemplo, mãi, sinão e si, em lugar de mãe, senão e se.

03 – Leia: “Pois si já me contaste que as fotografias foram tiradas, por que se fazer de rogada agora? Manda as fotos in continente sinão me zango de verdade”. Tanto em sua correspondência como em algumas obras, o escritor Mário de Andrade grafou certas palavras da forma como são pronunciadas, e não como estão registradas no dicionário. Identifique no trecho acima as palavras em que isso ocorre.

      Si e sinão (em lugar de se e senão).

04 – Pesquise no dicionário ou converse com pessoas mais velhas para descobrir o significado, no texto, de:

a)   Fazer-se de rogado;

Agir como pessoa que gosta que lhe peçam algo com insistência.

b)   In continente;

Imediatamente.

c)   De cangalha no pescoço;

Trabalhando bastante, sem tempo livre.

d)   Escangalhar;

Estragar.

e)   Estupendo;

Maravilhoso.

f)    Miquiado.

Sem dinheiro.

05 – Mário de Andrade grafou antes-de-ontem (com hifens) e milréis (em uma palavra só). Como essas palavras aparecem registradas hoje nos dicionários?

      Anteontem (ou antes de ontem); mil-réis.

06 – Releia: “Anita do coração, estou pra te escrever faz dias dando-te os parabéns pela tua aceitação no Salão de Outono”.

a)   Que pronome pessoal Mário de Andrade emprega para dirigir-se a sua interlocutora?

Tu.

b)   Como você chegou a essa conclusão?

Pelo emprego do pronome pessoal oblíquo te e do pronome possessivo tua.

07 – A carta de Mário de Andrade transmite certa jovialidade e revela a intimidade que havia entre os interlocutores. Essa impressão é causada pelo emprego de algumas expressões próprias da linguagem informal. Quais são elas?

      Entre outras, “pra”, “aquele animal”, “estou danado”, “puxa!”, “pros”, “que nem”, “pra adoçar a tua espera”.

DIÁLOGO: MENINAS NA LINHA WWW - GILBERTO DIMENSTEIN E HELOISA PRIETO - COM GABARITO

 Diálogo: Meninas na linha WWW

            Gilberto Dimenstein e Heloisa Prieto

        Chatter: Oi!

        Mano: E aí? Tá em casa em pleno sábado à noite?

        Chatter: Eu tinha uma festa mas fiquei com preguiça de sair. Tá frio pra caramba. Melhor navegar.

        Mano: Eu não tinha nada pra fazer. Entrei num site idiota.

        [...]

        Chatter: Eu adoro filme de terror.

        Mano: Mas terror mesmo é ficar com a garota que a gente gosta. Cara, dá um branco, já me aconteceu.

        Chatter: Como foi?

        Mano: Era uma garota da minha escola, ela já foi embora, mudou de cidade. Eu ficava mudo, derrubava tudo, ou então falava sem parar.

        Chatter: É engraçado. Você é tímido.

        Mano: Eu não, é que eu gostava dela. Meu irmão disse que é assim mesmo. Gostou, travou. Tipo terrir.

        Chatter: O quê?

        Mano: Filme terrir, trash, terror do mais ridículo que existe.

        Chatter: Então eu acho legal, é divertido ver terror pra rir.

        Mano: Eu também. A gente compra os vídeos aqui em casa.

        Chatter: Me dá seu endereço.

        Sílvia: Oi.

        Mano: Oi.

        Chatter: Oi.

        Sílvia: Vocês querem conversar comigo?

        Chatter: Sobre o quê?

        Sílvia: Sobre a beleza do amor juvenil, o primeiro beijo, tão inesquecível, a delícia da primeira carícia. Me contem, meus jovens, me contem como foi...

        Mano: Tô fora!

        Chatter: Tô fora também!

        Sílvia: Mas não foi por isso que vocês entraram nesse chat? Para abrir-se por inteiro? Este é um espaço para confidências femininas! O cantinho certo pra descobrir tudo que se esconde no fundo do coração!

        Mano: Dona, me desculpe, pensei que Meninas na Linha era tipo revista Playboy, sabe como é...

        Chatter: Ei, Mano, é roubada, vamos embora, mas me dá seu endereço, me conte dos filmes...

        Mano: Cara, tá certo, meu endereço é Mano@swift.br e o seu?

        Chatter: Vou escrever mandando meu endereço.

        Mano: Vou esperar.

        Sílvia: Esperem, meus jovens, a confidência faz parte do amor...

        Mano: Bye, bye, tia. Obrigado e me desculpe...

        Chatter: Mano, espere, eu vou mandar o e-mail.

        Mano: Vou lá ver.

        Chatter@...

        Mano, aquela Sílvia do chat era igual à mulher do 0800: disque-estrela e descubra seu destino. Metralhadora de palavras.

        Parece que é tudo combinado, sempre a mesma coisa.

        Eu gosto de ler história de amor, mas tem que ser emocionante.

        Aqui em casa tem livro pra caramba porque minha mãe é professora de literatura e meu pai também gosta de ler, por causa da minha avó que também adora livros. Eu sei ler em francês e inglês, mas na minha classe o pessoal só pega gibi.

        Você gosta de ler? De escrever? De ficar em casa?

        Mano@...

        Ei, Chatter, cara, foi divertido fugir daquele chat. Confidências femininas, tá louco!

        Bom, eu gosto de livro de terror e mistério.

        Sou igual você, tenho um avô que lê sem parar. Ele se chama Hermano, como eu. É por isso que tenho esse apelido. Bom, tenho preguiça de escrever na escola, mas gosto de conversa virtual. Que mais?

        Ah, eu ficava bastante em casa, ultimamente tô preferindo a rua.

        Primeiro porque fiquei amigo do Pipoquinha, filho do pipoqueiro da escola. Cara, seu João Pipoca, o pai dele, faz uns desenhos de areia dentro de garrafinhas. É muito legal. Ele está me ensinando.

        E o Pipoquinha e eu estamos fazendo um rolimã. Parece skate, a gente vai pintar depois que terminar. A gente também gosta de bolinha de gude.

        Bom, a rua está muito melhor que a minha casa porque meu irmão, o Pedro, tá meio pirado. Cara, eu trocava muita ideia com ele, mas agora não dá mais.

        Você tem irmãos? Mora em prédio? Tem alguma mania maluca?

        Mano descobre o @mor. São Paulo, Senac/Ática, 2001.

Fonte: Livro – Ler, entender, criar – Português – 6ª Série – Ed. Ática, 2007 – p.126-130.

Fonte da imagem - https://www.google.com/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fwww.casanadisney.com.br%2Fsites-blogs-bacanas-sobre-orlando-florid%2F&psig=AOvVaw1cz4jMxOqMgG7I8-hc-Gwk&ust=1611610296211000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCLjoqq3Cte4CFQAAAAAdAAAAABAD

Entendendo o diálogo:

01 – O uso da Internet ainda provoca discussão. Mesmo você não seja um usuário da rede, com certeza tem uma opinião: conversar com alguém pela Internet é tão bom quanto fazer isso ao vivo? A Internet impede o contato entre as pessoas?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A Internet constitui um eficiente e rápido meio de comunicação e, sem dúvida, é válida como forma de ampliarmos conhecimentos e travarmos relações. Não substitui, entretanto, o contato pessoal.

02 – Você sabe o que é site, chat, e-mail? Reúna-se com seus colegas, pesquisem e registrem no caderno o que descobrirem.

      Site (pronuncia-se “sáiti”) quer dizer “sítio, lugar”. Sites são áreas dentro de um servidor de Internet que podem ser visitadas por usuários de computadores conectados à Internet. Para entrar em um site, é preciso conhecer o endereço dele, que geralmente tem esta estrutura: www.(nome do site).com.br – Chat (“bate papo”, em inglês), na linguagem dos computadores, significa “correspondência por escrito entre duas ou mais pessoas”. Equivale a uma conversa telefônica, porém feita por escrito. E-mail (abreviatura de electronic mail, “correio eletrônico”) é um tipo de programa usado em computadores para o envio de bilhetes, arquivos ou mensagens pela Internet. O termo também serve para indicar “endereço eletrônico”.

03 – O texto inicia com um breve cumprimento de Chatter e em seguida ele e Mano começam a conversar pela Internet. Você acha que eles já se conheciam? Justifique sua resposta.

      Deduz-se que eles não se conheciam, pois, ao saírem do chat, pedem um ao outro os respectivos endereços eletrônicos. Além disso, as perguntas revelam que eles desconhecem os hábitos e gostos um do outro.

04 – A certa altura, uma pessoa chamada Sílvia entra na conversa dos garotos. Eles quiseram conversar com ela? Por quê?

      Não quiseram. O assunto proposto por Sílvia, confidências femininas, não era o que Mano esperava encontrar naquele chat, e Chatter também o considerou uma roubada.

05 – É comum a opinião de que nas conversas pela Internet só se falam bobagens. Você concorda com isso? Na conversa que tiveram, Chatter e Mano contaram apenas coisas sem importância? Dê sua opinião, justificando-a com exemplos tirados das mensagens de um e de outro.

      Resposta pessoal do aluno.

06 – Chatter e Mano iniciam sua conversa em um chat chamado “Meninas na linha”. Pesquise em um dicionário os significados da palavra linha. Em seguida, converse com um colega e tentem explicar por que o nome do chat pode ser entendido de mais de uma forma, ou seja, é ambíguo.

      Linha: fio de fibras torcidas usada para costurar ou bordar; fio metálico para transmissões telegráficas ou telefônicas; serviço regular de transportes entre dois pontos; elegância, beleza do corpo; jogadores de ataque de um time; cada um dos traços horizontais de um papel.

07 – O português é a língua falada no Brasil. Entretanto, ele apresenta muitas variações, conforme a região onde é falado, o grupo social a que pertence o falante, a idade dele e o tipo de situação de comunicação. As personagens de “Meninas na linha WWW” usam uma variante da língua própria de sua idade. Identifique no texto e copie no caderno pelo menos cinco expressões que exemplifiquem essa afirmação.

      Possibilidades: “e aí?”; “tá frio pra caramba”; “ficar com a garota”; “cara, dá um branco”; “vcs”; “tô fora”; “é roubada”; “tá louco”, etc.

08 – Você já escreveu um bilhete ou uma carta para alguém?  Quando? Você tem o hábito de escrever cartas? Comente com seus colegas.

      Resposta pessoal do aluno.

09 – Os assuntos tratados por Chatter e Mano por e-mail poderiam ter sido tratados, da mesma forma, por carta ou bilhete?

      Resposta pessoal do aluno.

RELATO/POEMA: O SONHO - JOSÉ PAULO PAES - COM GABARITO

 Relato/poema: O sonho

                    José Paulo Paes

        Alguns anos atrás tive um sonho estranho com a casa de Taquaritinga onde vivi até os 11 anos. Sonhei que era um menino voador que fora pousar, feito passarinho, no teto da velha casa, para de lá ficar espiando o que se passava dentro dela. Escrevi então um poema a que dei o título de “A casa”.

Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas.

Na livraria, há um avô que faz cartões de boas-festas com corações de purpurina.

Na tipografia, um tio que imprime avisos fúnebres e programas de circo.

Na sala de visitas, um pai que lê romances policiais até o fim dos tempos.

No quarto, uma mãe que está sempre parindo a última filha.

Na sala de jantar, uma tia que lustra cuidadosamente o seu próprio caixão.

Na copa, uma prima que passa a ferro todas as mortalhas da família.

Na cozinha, uma avó que conta noite e dia histórias do outro mundo.

No quintal, um preto velho que morreu na Guerra do Paraguai rachando lenha.

E no telhado um menino medroso que espia todos eles; só que está vivo: trouxe-o até ali o pássaro dos sonhos.

Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-na depressa.

Antes que ele acorde e se descubra também morto.

        O sonho só me deu a base e a atmosfera fantasmagórica do poema; para o resto, recorri às lembranças que tinha dos meus familiares, quase todos mortos àquela altura. A velha casa de Taquaritinga estava, abandonada havia anos, arruinando-se.

     Quem, eu? – Um poema como outro qualquer. São Paulo, Atual, 1996.

Fonte: Livro – Ler, entender, criar – Português – 6ª Série – Ed. Ática, 2007 – p. 115-6.

Fonte da imagem- https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fwww.lpm-blog.com.br%2F%3Fp%3D7411&psig=AOvVaw0tWCGdMA-L-6dGqf5fw1oO&ust=1611609935150000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCJCXiIXBte4CFQAAAAAdAAAAABAO

Entendendo o relato/poema:

01 – O texto “O sonho” faz parte da autobiografia de José Paulo Paes de onde foi tirado também o texto “A casa”. Quando o autor teve o sonho descrito e quando escreveu o poema: na infância ou na idade adulta?

      Na idade adulta.

02 – Quem são os fantasmas da casa e o menino que os espia mencionados no poema?

      Os fantasmas são os familiares do autor, já mortos, e o menino é o próprio poeta, quando criança.

03 – Quais das personagens mencionadas no poema já haviam aparecido em “A casa”?

      O avô, o pai, a tia, a avó, o menino (o próprio poeta).

04 – No poema, as personagens aparecem caracterizadas da mesma forma como o foram no trecho escrito em prosa? Aponte semelhanças e/ou diferenças.

      Não. A caracterização no texto em prosa é mais detalhada e desenvolvida. No poema, é sintética e simbólica, havendo uma redução: cada personagem aparece no lugar da casa ao qual o poeta a associava, realizando apenas uma ação, a que ficou na memória do poeta (a mãe, no quarto, parindo; o pai, na sala de visitas, lendo, etc.).

05 – Leia:

        Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas”.

        Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-na depressa”.

a)   Em que tempo estão os verbos destacados? O que eles exprimem?

No imperativo afirmativo. Exprimem ordem ou pedido.

b)   Identifique no texto os advérbios e as locuções adverbiais que manifestam a urgência do menino em que a casa seja vendida.

Logo, depressa, antes que.

06 – Exceto o primeiro e os dois últimos versos, os outros escrevem ações dos familiares mortos e do menino. Identifique e copie no caderno os verbos empregados nesses versos. Em que tempo eles estão?

      Há, faz, imprime, lê, lustra, passa, conta, espia, está: presente do indicativo; morreu: pretérito perfeito; está parindo e (está) rachando: locuções verbais com o verbo auxiliar estar no presente e o verbo principal no gerúndio.

07 – Vimos que no texto “A casa” o tempo verbal predominante era o pretérito. No poema, o autor emprega principalmente o presente. Por quê?

      Na autobiografia ele narrava fatos antigos, de sua infância. No poema, descreve as cenas como se as estivesse visualizando no momento em que escreve.

08 – Reúna-se com um colega e escrevam no caderno um parágrafo explicando como vocês interpretam os sentimentos do poeta nos versos seguintes:

        “Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-se depressa.

         Antes que ele acorde e se descubra também morto”.

      Resposta pessoal do aluno.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

CONTO: O ARQUIVO - VICTOR GIUDICE - COM GABARITO

 CONTO: O arquivo 

                  Victor Giudice

 No fim de um ano de trabalho, João obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos.

joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.

No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.

Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.

Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.

O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.

Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento.

Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.

Agora joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.

Prosseguiu a luta.

Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.

joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.

Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.

Respirou descompassado.

— Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.

joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.

— Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.

O coração parava.

— Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.

A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.

— De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente?

Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.

Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.

Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.

Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência. A vida foi passando, com novos prêmios.

Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.

O corpo era um monte de rugas sorridentes.

Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:

— Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.

O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:

— Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.

O chefe não compreendeu:

— Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?

A emoção impediu qualquer resposta.

joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.

joão transformou-se num arquivo de metal.

(GIUDICE, Victor. In: Setecontos setecantos. São Paulo: FTD, 1986.v.2)

Fonte: Livro – Práticas de Linguagem – v.4 – São Paulo: Editora Scipione, 2000, p.37- 41.

SOBRE O TEXTO

1.   Como devemos entender as constantes “promoções” de joão?

Devemos interpretá-las como constantes “despromoções”. Realça que toda a carga irônica do texto está centrada numa absoluta inversão de valores.

2.   Qual seria a maior de todas as “promoções”?

Após estar “desassalariado”, a promoção seguinte daria a joão o “direito” de pagar para trabalhar.

3.   Como você percebeu, o personagem principal tem seu nome grafado com inicial maiúscula apenas na primeira frase do texto; a partir daí, seu nome aparece grafado com a inicial minúscula. Por que o autor teria usado esse recurso?

O texto trabalha com o crescente coisificação de joão, a qual atinge o clímax quando o personagem transforma-se em arquivo, isto é, literalmente numa coisa, num objeto. O uso da inicial minúscula reforça a ideia de joão como um objeto, um substantivo comum. Ao perder a individualidade, a personalidade, joão perdeu também a inicial maiúscula dos nomes próprios.

4.   O narrador participa dos fatos ou se coloca como observador?

O narrador se coloca como observador (narração em terceira pessoa).

5.   O texto poderia ser narrado em primeira pessoa? Por quê?

Sim. No entanto, como o texto trabalha com o aniquilamento e a absoluta desumanização do personagem, transformar joão em personagem-narrador exigiria uma apuradíssima técnica de composição da narrativa.

6.   Quando os fatos ocorrem?

Os fatos se sucedem ao longo de 40 anos, desde a primeira “promoção” até a coisificação de joão.

7.   Onde eles ocorrem?

Fundamentalmente, no escritório onde joão trabalha; no mais, há referências vagas aos lugares onde joão morou. No entanto, embora esses lugares não sejam propriamente descritos, desempenham papel importante na construção da narrativa: à medida que ele é “promovido”, vai se mudando para lugares mais distantes, até “não ter mais problemas de moradia” (passa a viver nos campos).

8.   Que conflito há na história? Quem é o protagonista? E o antagonista? Comente.

João é o protagonista; seu chefe seria o antagonista. O conflito está presente na relação (joão x empresa, explorado x explorador, etc). O interessante é que o autor soube usar muito bem a ironia, dando ao conflito a aparência de harmonia, isto é, transformando em “promoção” a crescente exploração do trabalhador.