sexta-feira, 17 de novembro de 2023

CONTO: O COMPRADOR DE FAZENDAS - (FRAGMENTO) - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: O Comprador de Fazendas – Fragmento

            Monteiro Lobato

        Pior fazenda que a “Espiga”, nenhuma. Já arruinara três donos, o que fazia dizer aos praguentos: Espiga é o que aquilo é!

 
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgz0FDV3pu78mb8BMKsTuH5-jxlH9zupVW6twcbYxQK3_V53fNRbFfbJKYMLIAmdjS9UZLGCiQnRAh_PKjNUbvNG_KXIFxhYOrUMEpSxOByR5gN4PvFZXqebZWtBoRLdJAPRgcuA-5MdEs5vkDZC3oiHamRbv0qZ-z8zLL33fXD2QtiTmtqBOdnTPp6Nm0/s1600/CAFEZAIS.jpg

        O detentor último, um David Moreira de Souza, arrematara-a em praça, convicto de negócio da China. Mas já lá andava, também ele, escalavrado de dívidas, coçando a cabeça, num desânimo.

        Os cafezais em vara, batidos de pedra ou esturrados de geada ano sim ano não, nunca deram de si colheita de entupir tulha. Os pastos ensapezados, enguanxumados, ensamambaiados nos topes, eram acampamentos de cupins com entremeios de macegas mortiças, formigantes de carrapatos. Boi entrado ali punha-se logo de costelas à mostra, encaroçado de bernes, triste e dolorido de meter dó.

        As capoeiras substitutas das matas nativas revelavam, pela indiscrição das tabocas, a mais safada das terras secas. Em tal solo a mandioca bracejava a medo varetinhas nodosas; a cana caiana assumia aspecto de caninha, e esta virava uma taquariça magrela, das que passam incólumes por entre os cilindros moedores.

        (...)

        Dentro dessa esborcinada moldura, o fazendeiro, avelhuscado por força de sucessivas decepções e, a mais, roído pelo cancro dos juros, sem esperança e sem concerto, coçava cem vezes ao dia a coroa da cabeça grisalha.

        Sua mulher, a pobre dona Isaura, perdido o viço do outono, agrumava no rosto quanta sarda e pé-de-galinha inventam os anos, de mãos dadas à trabalhosa vida.

        Zico, o filho mais velho, saíra-se um pulha, amigo de erguer-se às dez, ensebar a gaforinha até às onze e consumir o resto do dia em namoricos mal-azarados.

        Afora este malandro, tinham a Zilda, então nos dezessete, menina galante, porém sentimental mais do que manda a razão e pede o sossego dos pais. Era um ler Escrich, a rapariga, e um cismar amores de Espanha…

         Em tal situação só havia uma aberta: vender a fazenda maldita para respirar a salvo de credores. Coisa difícil, entretanto, em quadra de café a cinco mil réis, pôr unhas num tolo das dimensões requeridas. Iludidos por núncios manhosos, alguns pretendentes já haviam abicado à Espiga, mas franziam o nariz, indo-se arrenegar da pernada, sem abrir oferta.

        — De graça é caro! — cochichavam de si para consigo.

        (...)

        Um dia recebeu carta de seu agente de negócios, anunciando novo pretendente: “Você tempere o homem — aconselhava o pirata — e saiba manobrar os padrões, que este cai. Chama-se Pedro Trancoso, é muito rico, muito moço, muito prosa, e quer fazenda de recreio. Depende tudo de você espigá-lo com arte de barganhista ladino”.

        (...) Ali, se isso acontecia — e acontecia sempre, porque era o Moreira em pessoa o maquinista do acaso — havia diálogos desta ordem:

        — Tem geada por aqui?

        — Coisinha, e isso mesmo só em ano brabo.

        — O feijão dá bem?

        — Nossa Senhora! Inda este ano plantei cinco quartas e malhei cinquenta alqueires. E que feijão!

        — Berneia o gado?

        — Qual o quê! Lá um ou outro carocinho, de vez em quando. Para criar, não existe terra melhor. Nem erva nem feijão bravo. O patrão é porque não tem força. Tivesse ele os meios, e isto virava um fazendão. Avisados os espoletas, debateram-se à noite os preparativos da hospedagem, alegres todos com o reviçar das esperanças emurchecidas.

        — Estou com palpite que desta feita a coisa vai! — disse o filho maroto. E declarou necessitar, à sua parte, de três contos de réis para estabelecer-se.

        — Estabelecer-se em quê? — perguntou admirado o pai.

        — Com armazém de secos e molhados na Volta Redonda.

        — Na Volta Redonda? Já me estava espantando de uma ideia boa nessa cabeça de vento. Para vender fiado à gente da Tudinha, não é?

        O rapaz, se não corou, calou-se. Tinha razões para isso. Já a mulher queria casa na cidade. De há muito trazia d’olho uma de porta e janela, em certa rua humilde, casa baratinha, de arranjados. Zilda queria um piano, mais caixões e caixões de Escrich.

        Dormiram felizes essa noite, e no dia seguinte mandaram cedo à vila em busca de gulodices de hospedagem — manteiga, um queijo, biscoitos. Na manteiga houve debate:

        — Não vale a pena — reguingou a mulher. — Sempre são seis mil réis. Antes se comprasse com esse dinheiro a peça de algodãozinho que tanta falta me faz.

        — É preciso, filha! Às vezes uma coisa de nada engambela um homem e facilita um negócio. Manteiga é graxa, e a graxa engraxa!

        Venceu a manteiga.

        Enquanto não vinham os ingredientes, meteu dona Isaura unhas à casa, varrendo, espanando e arrumando o quarto dos hóspedes; matou o menos magro dos frangos e uma leitoa manquitola; temperou a massa do pastel de palmito; estava a folheá-la quando:

        — Lá vem ele! — gritou Moreira da janela, onde se postara desde cedo, muito nervoso, a devassar a estrada por um velho binóculo; e sem deixar o posto de observação, foi transmitindo à ocupadíssima esposa os pormenores divisados. — É moço… Bem trajado… Chapéu panamá… Parece o Chico Canhambora…

        Chegou afinal o homem. Apeou-se. Deu cartão: Pedro Trancoso de Carvalhais Fagundes. Bem apessoado. Ares de muito dinheiro. Mocetão e bem falante, mais que quantos até ali aparecidos. Contou logo mil coisas, com o desembaraço de quem no mundo está de pijama em sua casa — a viagem, os incidentes, um mico que vira pendurado num galho de embaúva.

        Entrados que foram para a saleta de espera, Zico, incontinenti, grudou-se de ouvido ao buraco da fechadura, a cochichar para as mulheres ocupadas na arrumação da mesa o que ia pilhando à conversa. Súbito, esganiçou para a irmã, numa careta sugestiva:

        — É solteiro, Zilda!

        (...)

        Trancoso dissertava sobre variados temas agrícolas:

        — O canastrão? Pff! Raça tardia, meu caro senhor, muito agreste. Eu sou pelo Poland Chine. Também não é mau o Large Black. Mas o Poland! Que preciosidade! Que raça!

        Moreira, chucro na matéria, só conhecedor das pelhanças famintas, sem nome nem raça, que lhe grunhiam nos pastos, abria insensivelmente a boca pasmada.

        — Como em matéria de pecuária bovina — continuava Trancoso — tenho para mim que, de Barreto a Prado, andam todos erradíssimos. Pois não! E-rra-dí-ssi-mos! Nem seleção, nem cruzamento. Quero a adoção i-me-di-a-ta das mais finas raças, o Polled Angus, o Red Lincoln. Não temos pasto? Façamo-lo. Plantemos alfafa. Fenemos. Ensilemos. O Assis Brasil confessou-me uma vez…

        O Assis Brasil! Aquele homem confessava os mais altos paredros da agricultura! Era íntimo de todos eles — o Antônio Prado, o Luís Pereira Barreto, o Eduardo Cotrim, homens de muita autoridade em assuntos de pecuária. E de ministros!

        — Eu já aleguei isso ao José Bezerra…

        Nunca se honrara a fazenda com a presença de cavalheiro mais distinto, assim bem relacionado e tão viajado. Falava da Argentina e de Chicago como quem veio ontem de lá. Maravilhoso!

        A boca do Moreira abria, abria, e acusava o grau máximo da abertura permitida a ângulos maxilares, quando uma voz feminina anunciou o almoço.

        Apresentações.

        Mereceu Zilda louvores nunca sonhados, que a puseram de coração aos pinotes. Também os tiveram a galinha ensopada, o tutu com torresmos, o pastel e até a água do pote.

        — Na cidade, senhor Moreira, uma água assim, pura, cristalina, absolutamente potável, vale o melhor dos vinhos. Felizes os que podem bebê-la!

        A família entreolhou-se; nunca imaginaram possuir em casa semelhante preciosidade, e cada um insensivelmente sorveu o seu golezinho, como se naquele instante travassem conhecimento com o precioso néctar. Zico chegou a estalar a língua…

        Quem não cabia em si de gozo era dona Isaura. Os elogios à culinária puseram-na rendida. Por metade daquilo já se daria por bem paga da trabalheira.

        — Aprenda, Zico — cochichava ao filho — o que é educação fina!

        Após o café brindado com um “delicioso!”, convidou Moreira o hóspede para um giro a cavalo.

        — Impossível, meu caro, não monto em seguida às refeições; dá-me cefalalgia — Zilda corou. Zilda corava sempre que não entendia uma palavra. — À tarde sairemos, não tenho pressa. Prefiro agora um passeiozinho pedestre pelo pomar, a bem do quilo.

        Enquanto os dois homens se dirigiram para lá em pausados passos, Zilda e Zico correram ao dicionário.

        — Não é com S — disse o rapaz.

        — Veja com C — alvitrou a menina.

        Com algum trabalho encontraram a palavra.

        — “Dor de cabeça!” Ora! Uma coisa tão simples…

        À tarde, no giro a cavalo, Trancoso admirou e louvou tudo quanto ia vendo, com grande espanto do fazendeiro que, pela primeira vez, ouvia gabos às coisas suas. Os pretendentes em geral malsinam de tudo, com olhos abertos só para defeitos; diante de uma barroca, abrem-se em exclamações quanto ao perigo das terras frouxas; acham más e poucas as águas; se enxergam um boi, não despegam a vista dos bernes.

        Trancoso, não: gabava! E quando Moreira, nos trechos mistificados, com dedo trêmulo assinalou os padrões, o moço abriu a boca:

        — Caquera? Mas isto é fantástico!

        Em face do pau d’alho, culminou-lhe o assombro.

        — É maravilhoso o que vejo! Nunca supus encontrar nesta zona vestígios de semelhante árvore! — disse, metendo na carteira uma folha como lembrança.

        Em casa, abriu-se com a velha:

        — Pois, minha senhora, a qualidade destas terras excedeu de muito à minha expectativa. Até pau d’alho! Isto é positivamente famoso!…

        Dona Isaura baixou os olhos.

        A cena passava-se na varanda. Era noite. Noite trilada de grilos, coaxada de sapos, com muitas estrelas no céu e muita paz na terra. Refestelado numa cadeira preguiçosa, o hóspede transfez o sopor da digestão em quebreira poética.

        — Este cricri de grilos, como é encantador! Eu adoro as noites estreladas, o bucólico viver campesino, tão sadio e feliz…

        — Mas é muito triste!… — aventurou Zilda.

        — Acha? Gosta mais do canto estridente da cigarra, modulando cavatinas em plena luz? — disse ele, amelaçando a voz. — É que no seu coraçãozinho há qualquer nuvem a sombreá-lo…

        Vendo Moreira assim atiçado o sentimentalismo, e desta feita passível de consequências matrimoniais, houve por bem dar uma pancada na testa e berrar:

        — Oh, diabo! Não é que eu ia me esquecendo do… — Não disse do quê, nem era preciso. Saiu precipitadamente, deixando-os sós.

        Continuou o diálogo, mais mel e rosas.

        — O senhor é um poeta! — exclamou Zilda a um regorjeio dos mais sucados.

        — Quem o não é, debaixo das estrelas do céu, ao lado de uma estrela da terra?

        — Pobre de mim! — suspirou a menina, palpitante.

        Também do peito de Trancoso subiu um suspiro. Seus olhos alçaram-se a uma nuvem que fazia no céu as vezes da Via Láctea, e sua boca murmurou em solilóquio um rabo d’arraia, desses que derrubam meninas:

        — O amor!… A Via Láctea da vida!… O aroma das rosas, a gaze da aurora! Amar, ouvir estrelas… Amai, pois só quem ama entende o que elas dizem.

        Era zurrapa de contrabando; não obstante, ao paladar inexperto da menina, soube a fino moscatel. Zilda sentiu subir à cabeça um vapor. Quis retribuir. Deu busca aos ramalhetes retóricos da memória, em procura da flor mais bela. Só achou um bogari humílimo:

        — Lindo pensamento para um cartão postal!

        Ficaram no bogari. O café com bolinhos de frigideira veio interromper o idílio nascente.

        (...) E quando foi abordada a magna questão, o velho declarou corajosamente, na voz firme de um alea jacta est:

        — Sessenta e cinco — e esperou de pé atrás a ventania.

        Trancoso, porém, achou razoável o preço.

        — Pois não é caro — disse. Está um preço bem mais razoável do que imaginei.

        O velho mordeu os lábios e tentou emendar a mão:

        — Sessenta e cinco, mas… o gado fora!

        — É justo — respondeu Trancoso.

        — E… e fora também os porcos!…

        — Perfeitamente.

        — …e a mobília!

        — É natural.

        O fazendeiro engasgou. Não tinha mais o que excluir, e confessou-se de si para consigo que era uma cavalgadura. Por que não pedira logo oitenta?

        Informada do caso, a mulher chamou-o de “pax-vobis”.

        — Mas, criatura, por quarenta já era um negocião! — justificou-se o velho.

        — Por oitenta seria o dobro. Melhor. Não se defenda. Eu nunca vi Moreira que não fosse palerma e sarambé. É do sangue. Você não tem culpa.

        Amuaram um bocado. Mas a ânsia de arquitetar castelos com a imprevista dinheirama varreu para longe a nuvem. Zico aproveitou a aura para insistir nos três contos do estabelecimento, e obteve-os. Dona Isaura desistiu da tal casinha. Lembrava agora outra maior, em rua de procissão — a casa do Eusébio Leite.

        — Mas essa é de doze contos — advertiu o marido.

        — Mas é outra coisa que não aquele casebre! Muito mais bem repartida. Só não gosto da alcova pegada à copa. Escura…

        — Abre-se uma claraboia.

        — Também o quintal precisa de reforma em vez do cercado das galinhas…

        Até noite alta, enquanto não vinha o sono, foram remendando a casa, pintando-a, transformando-a na mais deliciosa vivenda da cidade. Estava o casal nos últimos retoques, dorme-não-dorme, quando Zico bateu à porta.

        — Três contos não bastam, papai. São precisos cinco. Há a armação, de que não me lembrei, e os direitos, e o aluguel da casa, e mais coisinhas…

        Entre dois bocejos o pai concedeu-lhe generosamente seis.

        E Zilda? Essa vogava em alto mar de um romance de fadas. Deixemo-la vogar.

        Chegou enfim o momento da partida. Trancoso despediu-se. Sentia muito não poder prolongar a deliciosa visita, mas interesses de monta o chamavam. A vida do capitalista não é tão livre como parece… Quanto ao negócio, considerava-o quase feito; daria a palavra definitiva dentro de semana.

        (...)

        — Vejam vocês! — disse Moreira, resumindo a opinião geral. — Moço, riquíssimo, direitão, instruído como um doutor, e no entanto amável, gentil, incapaz de torcer o focinho, como os pulhas que cá têm vindo. O que é ser gente!

        À velha agradara sobretudo a sem-cerimônia do jovem capitalista. Levar ovos e carás! Que mimo! Todos concordaram, louvando-o cada um a seu modo. E assim, mesmo ausente, o gentil ricaço encheu a casa durante a semana inteira.

        Mas a semana transcorreu sem que viesse a ambicionada resposta. E mais outra. E mais outra ainda.

        Escreveu-lhe Moreira, já apreensivo, e nada. Lembrou-se de um parente morador na mesma cidade, e endereçou-lhe carta pedindo que obtivesse do capitalista a solução definitiva. Quanto ao preço, abatia alguma coisa. Dava a fazenda por cinquenta, e até por quarenta, com criação e mobília.

        O amigo respondeu sem demora. Ao rasgar o envelope, os quatro corações da Espiga pulsaram violentamente: aquele papel encerrava o destino dos quatro.

        Dizia a carta: “Moreira, ou muito me engano ou estás iludido. Não há por aqui nenhum Trancoso Carvalhais, capitalista. Há o Trancosinho, filho da Nha Veva, vulgo Sacatrapo. É um espertalhão que vive de barganhas e sabe iludir aos que o não conhecem. Ultimamente tem corrido o Estado de Minas, de fazenda em fazenda, sob vários pretextos. Finge-se às vezes de comprador, passa uma semana em casa do fazendeiro, a caceteá-lo com passeios pelas roças e exames de divisas; come e bebe do bom, namora as criadas, ou a filha, ou o que encontra — é uma vassoura de marca! — e no melhor da festa some-se. Tem feito isto um cento de vezes, mudando sempre de zona. Gosta de variar de tempero, o patife. Como aqui Trancoso só há este, deixo de apresentar ao pulha a tua proposta. Ora, o Sacatrapo a comprar fazenda! Tinha graça”.

        O velho caiu numa cadeira, aparvalhado, com a missiva sobre os joelhos. Depois o sangue lhe avermelhou as faces e seus olhos chisparam.

        — Cachorro!

        As quatro esperanças da casa ruíram com fragor, entre lágrimas da menina, raiva da velha e cólera dos homens. Zico propôs-se a partir incontinenti na pegada do biltre, a fim de quebrar-lhe a cara.

        — Deixa, menino! O mundo dá voltas. Um dia cruzo-me com o ladrão e ajusto contas.

        Pobres castelos! Nada há mais triste que estes repentinos desmoronamentos de ilusões. Os formosos palácios d’Espanha, erigidos durante um mês à custa da mirífica dinheirama, fizeram-se taperas sombrias. Dona Isaura chorou até os bolinhos, a manteiga e os frangos.

        Quanto a Zilda, o desastre operou como um pé-de-vento através da paineira florida. Caiu de cama, febricitante. Encovaram-se-lhe as faces. Todas as passagens trágicas dos romances lidos desfilaram-lhe na memória; reviu-se na vítima de todos eles. E dias a fio pensou no suicídio. Por fim, habituou-se a essa ideia e continuou a viver. Teve azo de verificar que isso de morrer de amores, só em Escrich.

        Acaba-se aqui a história. Para a plateia, apenas. Para as torrinhas, segue ainda por meio palmo. As plateias costumam impor umas tantas finuras de bom gosto e tom, muito de rir; entram no teatro depois de começada a peça, e saem mal a ameaça o epílogo.

        Já as galerias querem a coisa pelo comprido, a jeito de aproveitar o rico dinheirinho até ao derradeiro vintém. Nos romances e contos, pedem esmiuçamento completo do enredo; e se o autor, levado por fórmulas de escola, lhes arruma para cima, no melhor da festa, com a caudinha reticenciada a que chama “nota impressionista”, franzem o nariz. Querem saber — e fazem muito bem — se Fulano morreu, se a menina casou e foi feliz, se o homem afinal vendeu a fazenda, a quem e por quanto. Sã, humana e respeitabilíssima curiosidade!

        Vendeu a fazenda o pobre Moreira? Pesa-me confessá-lo: não! E não a vendeu por artes do mais inconcebível quiproquó de quantos tem armado neste mundo o diabo. Sim, porque afora o diabo, quem é capaz de intrincar os fios da meada, com laços e nós cegos, justamente quando vai a feliz remate o crochê?

        (...)

        Ai, ai, ai! Quando tal carta penetrou na Espiga, houve rugidos de cólera, entremeio a bufos de vingança.

        — É agora! — berrou o velho. — O ladrão gostou da pândega, e quer repetir a dose. Mas desta feita curo-lhe a balda, ora se curo! — concluiu, esfregando as mãos no antegosto da vingança.

        No murcho coração da pálida Zilda, entretanto, bateu um raio de esperança. A noite de su’alma alvorejou ao luar de um “quem sabe?”. Não se atreveu, todavia, a arrostar a cólera do pai e do irmão, concertados ambos num tremendo ajuste de contas. Confiou no milagre. Acendeu outra velinha a Santo Antônio…

        O grande dia chegou. Trancoso rompeu à tarde pela fazenda, caracolando o Rosilho. Desceu Moreira a esperá-lo embaixo da escada, de mãos às costas.

Antes de sofrear as rédeas, já o amável patife abria-se em exclamações:

        — Ora viva, caro Moreira! Chegou enfim o grande dia. Desta vez, compro-lhe a fazenda.

        Moreira tremia. Esperou que o biltre apeasse, e mal Trancoso, lançando as rédeas, dirigiu-se-lhe de braços abertos, todo risos, o velho saca de sob o paletó um rabo de tatu e rompe-lhe para cima ímpeto de queixada.

        — Queres fazenda, grandessíssimo tranca? Toma, toma fazenda, ladrão! — E lépt, lépt, finca-lhe rijas rabadas coléricas.

        O pobre rapaz, tonteado pelo imprevisto da agressão, corre ao cavalo e monta às cegas, de passo que Zico lhe sacode no lombo nova série de lambadas de agravadíssimo ex-quase-cunhado.

        Dona Isaura atiça-lhe cães:

        — Pega, Brinquinho! Ferra, Joli!

        O mal-azarado comprador de fazendas, acuado como raposa em terreiro, dá de esporas e foge a toda, sob uma chuva de insultos e pedras. Ao cruzar a porteira, inda teve ouvidos para distinguir na grita os desaforos esganiçados da velha:

        — Comedor de bolinhos! Papa-manteiga! Toma! Em outra não hás de cair, ladrão de ovo e cará!

        E Zilda?

        Atrás da vidraça, com os olhos pisados de muito chorar, a triste menina viu desaparecer para sempre, envolto em nuvens de pó, o cavaleiro gentil dos seus dourados sonhos.

        Moreira, o caipora, perdia assim naquele dia o único negócio bom que durante a vida inteira lhe deparara a fortuna: o duplo descarte — da filha e da Espiga…

Monteiro Lobato. Contobrasileiro.com.br.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a condição da fazenda "Espiga" descrita no conto?

      A fazenda "Espiga" é descrita como arruinada, com café de baixa qualidade, pastos precários, solo ruim para cultivo, gado doente e terras pouco produtivas.

02 – Quais são os principais membros da família de David Moreira de Souza?

      David Moreira de Souza tem sua esposa, Dona Isaura, seu filho Zico e sua filha Zilda.

03 – Quais são as expectativas de David Moreira de Souza em relação ao potencial comprador, Pedro Trancoso?

      David acredita que Pedro Trancoso é um comprador rico, jovem e instruído, que deseja a fazenda como propriedade de recreio.

04 – O que acontece quando a verdadeira identidade de Pedro Trancoso é revelada?

      Pedro Trancoso, na verdade, é um impostor chamado Sacatrapo, que engana fazendeiros, vive de iludir as pessoas se passando por comprador, desfrutando de hospitalidade e depois desaparecendo sem concluir a compra.

05 – Como a família reage quando descobre a verdade sobre Trancoso/Sacatrapo?

      A família reage com raiva e desapontamento. David tenta atacá-lo, enquanto Zico o espanca, e Dona Isaura incita os cães contra ele.

06 – Como Zilda, a filha, reage ao desfecho do encontro com Trancoso/Sacatrapo?

      Zilda, triste e desiludida, observa pela janela, chorando, enquanto vê o homem dos seus sonhos desaparecer sob nuvens de poeira.

07 – Qual é a reação de David Moreira de Souza após o fracasso da venda para Trancoso/Sacatrapo?

      David se sente arrasado por perder a oportunidade de vender a fazenda, que teria sido o único negócio lucrativo que a vida lhe proporcionara, resultando no descarte da filha e da propriedade.

08 – Como a família idealiza um futuro diferente após o encontro com Trancoso/Sacatrapo?

      A família sonha com um futuro melhor, imaginando gastar o dinheiro da venda em novos empreendimentos e melhorias na vida urbana, mas todas essas expectativas desabam com o desfecho da situação.

09 – Como a presença de Trancoso/Sacatrapo na fazenda afeta a dinâmica familiar?

      A presença enganosa de Trancoso/Sacatrapo cria expectativas e sonhos na família, levando cada membro a visualizar um futuro melhor, mas acaba resultando em desilusão e desespero quando a verdade é revelada.

10 – Qual é a atitude de David Moreira de Souza no momento da revelação da verdade sobre Trancoso/Sacatrapo?

      David reage com raiva e indignação ao atacar o impostor, tentando agredi-lo fisicamente, expressando a profunda decepção e frustração pela situação.

 

 

 

CONTO: DEZEMBRO NO BAIRRO - LYGIA FAGUNDES TELLES - COM GABARITO

 Conto: Dezembro no bairro

            Lygia Fagundes Telles

        O cinema no porão da nossa casa não tinha dado certo porque antes mesmo do intervalo o Pedro Piolho pôs-se a berrar que não estava enxergando nada, que aquilo tudo era uma grandessíssima porcaria. Queria o dinheiro de volta. Os outros meninos também começaram a vaiar, ameaçando quebrar as cadeiras. Foi quando apareceu minha mãe mandando que toda a gente calasse a boca. E exigindo que devolvêssemos o dinheiro das entradas. Proibiu ainda que fizéssemos outras sessões iguais. E levou a cesta de pão que eu segurava no colo, estava combinado que no intervalo eu devia sair anunciando “Balas, bombons, chocolates”!... Embora houvesse na cesta apenas um punhado de rebuçados de Lisboa. Caramelo; bala.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEishgbDhC_7MvJHtYs1hqfTiQSFbY2gZ4h6Faw0wLNmup6p9J2sDdkkqU6XDtRiPcQWVFul6QbAPDXxfk4MFeaNP9QmtyXSbGkKvM3cYV2SIUwTcfEUk1DUxjFAnl78XxmLpTVFkf_mHqVBvOgJAwE9KBg4gaV9zb_e82a8Mokj7AKiS_4q_lGFtQVFdrw/s320/PORAO.jpg


        — Você não presta como chefe — disse meu irmão ao Maneco. — Com que dinheiro agora vamos fazer o presépio? Eu avisei que o projetor não estava funcionando. Não avisei?

        Maneco era o filho do Marcolino, um vagabundo do bairro. Magro e encardido, tinha os cabelos mais negros que já vi em minha vida.

        — Mas só falta comprarmos o céu — retrucou o Maneco. — Papel de seda azul para o céu e o papel prateado para as estrelas, eu já disse que faço as estrelas. Não fiz da outra vez?

        — Não quero saber de nada. Agora o chefe sou eu.

        — É o que vamos decidir lá fora — ameaçou Maneco avançando para o meu irmão.

        Foram para a rua. Em silêncio seguimos todos atrás. A luta travou-se debaixo da árvore, uma luta desigual porque meu irmão, que era um touro de forte, logo de saída atirou Maneco no chão e montou em cima. Mordeu-lhe o peito.

        — Pede água! Pede água!

        Foi aí que apareceu o Marcolino. Agarrou o filho pelos cabelos, sacudiu-o no ar e deu-lhe um bofetão que o fez rodopiar até se estender no meio da calçada.

        — Em casa a gente conversa melhor — disse o homem apertando o cinto das calças.

        A noite estava escura, mas mesmo assim pudemos ver que ele estava bêbado.

        — Vamos embora, anda!

        Maneco limpou na mão o sangue do nariz. Seus cabelos formavam uma espécie de capacete negro caindo na testa até as sobrancelhas. Fechou no peito a camisa rasgada e seguiu o pai.

        — Os meninos já entraram? — perguntou minha mãe quando me viu chegar.

        — Estão se lavando lá no tanque. Ela ouvia uma novela no rádio. E cerzia meias.

        — Que é que vocês estavam fazendo?

        — Nada...

        — O Maneco estava com vocês?

        — Só um pouco, foi embora logo.

        — Esse menino é doente e essa doença pega, já avisei mil vezes! Não mandei se afastarem dele, não mandei?

        Um pobre de um menino pesteado e com o pai daquele jeito...

        — É que o céu do nosso presépio queimou, mãe! Não sei quem acendeu aquela vela e o céu pegou fogo. O Natal está chegando e só ele é que sabe cortar as estrelas, só ele é que sabe.

        — Vocês andam impossíveis! Continuem assim e veremos se vai ter presente no sapato.

        Já sabíamos que o Papai Noel era ela. Ou então, o pai, quando calhava de voltar das suas viagens antes do fim do ano. Mas ambos insistiam em continuar falando no santo que devia descer pela lareira, a tal lareira que por sinal nunca tivemos. Então a gente achava melhor entrar no jogo com a maior cara-de-pau do mundo. Eu chegava ao ponto de escrever bilhetinhos endereçados a Papai Noel pedindo-lhe tudo o que me passava pela cabeça. Minha mãe lia os bilhetes, guardava-os de novo no envelope e não dizia nada. Já meus irmãos, mais audaciosos, tentavam forçar o cadeado da cômoda onde ela ia escondendo os presentes: enfiavam pontas de faca nas frestas das gavetas, cheiravam as frestas, trocavam ideias sobre o que podia caber lá dentro e se torciam de rir com as obscenidades que prometiam escrever nas suas cartas. Mas quando chegava dezembro, nas vésperas da grande visita, ficavam delicadíssimos. Faziam aquelas caras de piedade e engraxavam furiosamente os sapatos porque estava resolvido que Papai Noel deixaria uma barata no sapato que não estivesse brilhando. Nesse Natal pensamos em ganhar algum dinheiro com o tal cinema no porão. Mas o projetor não projetava nada, foi aquele vexame. Restava agora o recurso do presépio com entrada paga, eu ficaria na porta chamando os possíveis visitantes com minha bata de procissão e asas de anjo.

        — E o céu? — lembrou meu irmão lançando um olhar desconfiado na direção de Maneco. — Como vai ser o céu?

        Estávamos sentados nos degraus de pedra da escadaria da igreja. Meus irmãos tinham ido me buscar depois da aula de catecismo e agora tratávamos dos nossos assuntos, tão pasmados quanto as moscas estateladas em nosso redor, tomando sol. Pareciam tão inertes que davam a impressão de que poderíamos segurá-las pelas asas. Mas sabíamos que nenhum de nós prenderia qualquer uma delas assim naquela aparente abstração.

        — Eu já prometi que faço as estrelas, dou o papel prateado das estrelas — disse Maneco riscando com a ponta da unha as pernas magras, com marcas de cicatrizes. Baixou a cara amarela. — Já andei tirando areia de uma construção, está num caixotinho lá em casa, uma areia branca, limpa. Tem areia à beça.

        — Então você dá o papel.

        — Dou o prateado das estrelas, estrela tem que ser prateada. O papel azul do céu é com vocês que já estou dando muito.
Confabulamos em voz baixa. E ficou decidido que no dia seguinte iríamos catar alguma coisa num palacete vago da avenida Angélica, na hora em que o vigilante devia sair para almoçar. Mas o Maneco não apareceu. Durante três dias esperamos por ele.

        — Ficou com medo — disse meu irmão. — É um covarde, uma besta.

        O Polaquinho protestou: — Mas ele está doente, não pode nem se levantar. Meu pai acha que ele vai morrer logo.

        — Não interessa, prometeu e não cumpriu, é um covarde. Vamos nós e pronto.

        Entramos pela janela dos fundos, que estava aberta, enfiamos numa sacola de feira todas as lâmpadas e maçanetas de porta que pudemos desatarraxar e fugimos antes que o vigilante voltasse. Quando chegamos em casa, fomos retos para o porão e abrimos a sacola. A verdade é que longe do palacete, isoladas dos grandes lustres de cristal e daquelas portas trabalhadas, as lâmpadas e maçanetas tinham perdido todo o prestígio: vistas assim de perto, não passavam de maçanetas gastas. É de um monte de lâmpadas empoeiradas e que talvez não se acendessem nunca. Esfreguei na palma da mão a mais escura delas: e se fosse a lâmpada mágica de Aladim? O que eu pediria ao esfumaçado gênio de calças bufantes e argolas de ouro?

        — Depressa, gente, depressa! Tem um Papai Noel lá na loja do Samuel —anunciou o Marinho chegando quase sem fôlego.

        — Um Papai Noel de verdade? Na loja do Samuel? Deixe de mentira...

        — Mentira nada! Venham depressa que ele está lá com a barba branca, a roupa vermelha, juro que é verdade!

        — Um Papai Noel na loja do Samuel, a loja mais mambembe do bairro?

        — Se for mentira, você me paga — ameaçou o Polaquinho encostando o punho fechado no queixo do Marinho.

        — Quero ficar cego se estou mentindo!

        Esse mesmo juramento ele fazia quando contava as piores mentiras. Mas o fato é que já estávamos há muito tempo ali parados diante da sacola aberta, sem nos ocorrer um destino a dar àquilo tudo. Era preciso fazer outra coisa. Fomos atrás do Marinho, que ia falando na maior agitação, descrevendo o capuz vermelho, a bata debruada de algodão branco, como aparecia nas ilustrações. Quando dobramos a esquina, ficamos de boca aberta, olhando: lá estava ele de carne e osso, a sepavonear de um lado para outro sob o olhar radiante de Samuel, na porta da loja. Fomos nos aproximando devagar. Sacudindo um pequeno sino dourado, o Papai Noel alisava a barba postiça e dizia gracinhas ao filho de um tipo que parecia ter dinheiro.

         — Não quer encomendar nada a este Papai Noel? Vamos, queridinho, faça seu pedido... Uma bola? Um patinete?

        — Estou conhecendo esse cara — resmungou o Polaquinho apertando os olhos. — Já vi ele em algum lugar...

        Sentindo-se observado, o homem deu-nos as costas enquanto estendia a mão enluvada na direção do menino. Fizemos a volta até vê-lo de frente. Foi o bastante para o homem esquivar-se de novo, fingindo arrumar os brinquedos dependurados na porta. Essa segunda manobra alertou-nos. Fomos nos aproximando assim com ar de quem não estava querendo nada. O queixo e a boca não se podiam ver sob o emaranhado do algodão da barba. O gorro vermelho também escondia toda a cabeça. Mas, e aqueles ombros curvos e aquele jeito assim balanceado de andar?  Era um conhecido, sem dúvida. Mas quem? E por que nos evitava, por quê? Penso agora que se ele não tivesse disfarçado tanto, não teríamos desconfiado de nada: seria mais um Papai Noel como dezenas de outros que víamos andando pela cidade. Mas aquela preocupação de se esconder acabou por denunciá-lo. Ficamos na maior excitação: ele estava com medo. Nunca nos sentimos tão poderosos.

        — Esse filho-da-mãe é aqui do bairro — cochichou meu irmão. — Dou minha cabeça a cortar como ele é daqui do bairro.
Polaquinho olhava agora para os pés dele, para aqueles sapatos deformados sob as perneiras de oleado preto fingindo bota. Os sapatos! Aqueles sapatos velhos, sapatos de andarilho, eram a própria face do homem. Jamais sapato algum acabou por adquirir tão fielmente as feições do dono: era o pai de Maneco.

        — Marcolino!

        Ele voltou-se como se tivesse sido golpeado pelas costas.

        Desatamos a rir e a gritar, era o malandro do Marcolino fazendo de Papai Noel, era o Marcolino!...

        — Marcolino, eh! Marcolino!... Tira a barba, Marcolino!

        A alegria da descoberta nos fez delirantes, pulávamos e cantávamos aos gritos, fazendo roda, de mãos dadas, "Mar-co-li-no! Mar-co-li-no! Em vão ele tentou prosseguir representando o seu papel. Rompendo o frágil disfarce do algodão e dos panos, sentimos sua vergonha. Sua raiva. Duas velhas da casa vizinha abriram a janela e ficaram olhando e rindo.

        — Molecada suja! — gritou o Samuel saindo da loja. Sacudiu os punhos fechados. — Fora daqui seus ladrõezinhos! Fora!

        Fugimos. Para voltar em seguida mais exaltados, com Firpo que apareceu de repente correndo e latindo feito louco, investindo às cegas por entre nossas pernas. Gritávamos compassadamente, com todas as forças: — Mar-co-li-no! Mar-co-li-no!...Ele então arrancou a barba. Arrancou o gorro, arrancou a bata e atirou tudo no chão. Pôs-se a pisotear em cima, a pisotear tão furiosamente que o Samuel não pensou sequer em impedir, ficou só ali parado, olhando. E dessa vez o homem não tinha bebido, era raiva mesmo, uma raiva tamanha que chegou a nos assustar, quando vimos sua cara amarfanhada, branca. Em meio ao susto que nos fez calar, ocorreu-me pela primeira vez o quanto o Maneco era parecido com o pai quando ficava assim furioso, ah, eram iguais aqueles capacetes de cabelo desabando até as sobrancelhas negras. Quando se cansou de pular em cima da fantasia, foi-se embora naquele andar gingado, a fralda da camisa fora da calça, os sapatões esparramados. Samuel entrou de novo na loja. Fecharam-se as janelas. Firpo saiu correndo, levando a carapuça vermelha nos dentes, enquanto o vento espalhava o algodão da barba por todo o quarteirão. Polaquinho apanhou alguns fiapos e grudou-os com cuspe no queixo, mas ninguém achou graça. Voltamos à nossa sacola de maçanetas e lâmpadas. No dia seguinte, um outro Papai Noel mais baixo e mais gordo passeava diante da loja. Olhou-nos com ar ameaçador, mas seguimos firmes, esse nós não conhecíamos. Depois do jantar, meu irmão instalou-se em cima da árvore na calçada, diante da nossa casa. Abriu a folhagem e ficou olhando lá de cima.

        — Boca-de-forno!

        — Forno! — repetimos fazendo continência.

        — Fareis tudo o que o vosso mestre mandar?

        — Faremos com muito gosto!

        — Quero que vocês entrem no porão do Maneco, gritem duas vezes Mar-co-li-no! Mar-co-li-no! e voltem correndo. Já!

        Saímos em disparada pela rua afora. O portão do cortiço estava apenas cerrado. Duas pretas gordas conversavam refesteladas em cadeiras na calçada. Empurramos devagarinho a portinhola carcomida. Entramos. E paramos assustados no meio do porão de paredes encardidas e trastes velhos amontoados nos cantos. Sabíamos que eles eram pobres, mas assim desse jeito? Maneco estava sozinho, deitado num colchão com a palha saindo por entre os remendos. Mal teve tempo de esconder qualquer coisa debaixo do lençol. Tinha na mão uma tesoura, devia estar cortando o papel que escondeu. Brincadeira em que uma criança, o "mestre", distribui tarefas para as outras. Sob a luz débil da lamparina em cima do caixotinho ele me pareceu completamente amarelo, o cabelo negro mais crescido fechando-lhe a cara.

        — Seus traidores! — gritou com voz rouca. — Que é que vocês querem aqui, seus traidores! Traidores!

        Morreu na semana seguinte, foi essa a última vez que o vimos. Fomos saindo em silêncio e de cabeça baixa. Só eu olhei ainda para trás. Ele fungava por entre as lágrimas enquanto procurava esconder debaixo do lençol a ponta de uma estrela de papel prateado.

Lygia Fagundes Telles.

Entendendo o conto:

01 – Quem é o protagonista do conto?

      O protagonista é uma criança narradora, não especificamente nomeada.

02 – Qual é o problema principal enfrentado pelos personagens no conto?

      Eles enfrentam dificuldades financeiras e tentam organizar um presépio para ganhar dinheiro, mas as coisas não saem como planejado.

03 – Quem é Maneco?

      Maneco é o filho de Marcolino, um vagabundo do bairro, e ele se envolve com as crianças na tentativa de fazer um presépio.

04 – Por que o cinema no porão da casa não foi bem-sucedido?

      O Pedro Piolho e outros meninos começaram a reclamar durante a exibição, causando tumulto, o que levou à interrupção da sessão.

05 – O que os personagens tentam fazer para arrecadar dinheiro no período de Natal?

      Eles tentam organizar um presépio com entrada paga para ganhar dinheiro.

06 – Como os personagens descobrem a identidade do Papai Noel na loja do Samuel?

      Eles reconhecem que o Papai Noel disfarçado é na verdade o pai de Maneco, Marcolino, devido aos sapatos que ele usa.

07 – Por que o Marcolino se disfarça de Papai Noel?

      Não é explicitamente mencionado no conto, mas provavelmente é uma tentativa de ganhar dinheiro durante a temporada de Natal.

08 – Qual é a reação das crianças ao descobrir a identidade do Papai Noel?

      Eles começam a gritar o nome de Marcolino e riem dele, fazendo-o tirar o disfarce.

09 – O que acontece com Maneco no desfecho do conto?

      Ele morre na semana seguinte após a última interação com as crianças, tentando esconder a ponta de uma estrela de papel prateado debaixo do lençol.

10 – Como o conto retrata a visão das crianças sobre o Natal e a figura do Papai Noel?

      Mostra que as crianças têm uma mistura de crença e desconfiança em relação ao Papai Noel, sabendo que é uma invenção, mas ao mesmo tempo se envolvendo nas tradições e expectativas natalinas.

CONTO-CARTA: À ESPERA DO AMOR - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO - COM GABARITO

 Conto-carta: À espera do amor

                     Ignácio de Loyola Brandão 

Na porta do cinema

Cara Amália,

        O que você me pediu para contar foi simples. Aconteceu com Emílio, aquele que detestava o nome, mas o cartório se recusou a mudar. Tudo se passou assim: 

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhkZ-s28xamuTUdpvmCvl2-WJXCouHY0LJvKxFMRnitSQTZkAvjQNE3jN9Yjzfme9mx-92Q70dYkNdjhmFQ-pgc4umby2xfRIwQOffJz2yeNPtjjMKmm9C3AYjbPhEWaPhsrnl_JBzqzcAKQN6nOzM_TzBLKFETEiF2cgF7qLNj3_GczO3WnlIkRdFYAbQ/s320/PORTA%20CINEMA.jpg


        Aproximava-se da porteira do cinema.

        — Ela chegou?

        — Quem?

        — Minha namorada.

        — Como vou saber quem é?

        — Verdade, você não a conhece. Devem entrar aqui centenas de pessoas.

        —  Por dia? Milhares, principalmente num filme como esse! Não sei o que viram nele.

        — História de amor. Todo mundo gosta.

        — Amor! Como se alguém acreditasse no amor.

        — Eu acredito. Por isso estou aqui, à espera de minha namorada.

        — Há meses você vem todos os dias. Meses!

        Ficou por ali, com o rabo do olho na entrada do cinema.

        Terminou a primeira sessão, nada. A segunda, tudo igual. Antes da terceira – porque eram sessões corridas, normais, sempre que havia um filme de sucesso – houve uma troca de porteiros. Chegou o sujeito carrancudo que sempre desconfiava dele e, um dia, tinha chegado a chamar o segurança para expulsá-lo. O porteiro acenou:

        — Continua à espera?

        — Sempre!

        — Não entendo, juro que não entendo.

        — Porque nunca amou.

        — Quem disse?

        — Veja a sua cara! Amarrada, amargurada, tem o olhar triste e fundo. Cadê a alegria de quem ama?

        — Gosto muito.

        — Gostar não é amar.

        — Achei que era a mesma coisa.

        — Amar é tudo.

        — E gostar?

        — Gostar é gostar. Amar é amar. Gostar quer dizer trinta por cento do sentimento. Amar é cem por cento.

        — Você é estranho. Diz coisas complicadas.

        — Amar é simples.

        — Fico te olhando, você vem todos os dias, à espera dessa namorada que nunca aparece.

        — Vai aparecer.

        — Por que não liga para ela?

        — Não tenho o número!

        — Namora e não tem o número?

        — Não namoro ainda. Vou namorar.

        — O que?

        — Vou namorar. O dia em que ela chegar e entrar por essa porta, vou saber que é ela.

        — Como? Como é que se sabe? 

        — Sabendo. É olhar e sentir. O coração acelera, a gente começa a suar, o estômago sobe para a garganta, a respiração fica ofegante, as pernas ficam bambas, as unhas tremem.

        —  As unhas tremem?

        — É a melhor coisa. Tão bom viver assim. Você sente desaparecer.

        — Desaparecer?

        — Some. E quando percebe, você é outro. Está naquele que ama. Inteiro dentro, uma coisa só. Daquele momento em diante, dois viram um. Tornam-se uma só pessoa em tudo.

        — Sei, sei …

        Nesse momento, ele se afastou para deixar entrar uma jovem morena, de olhos miúdos e um riso que se esparramava pelo rosto e começou a suar.

        Os dois se olharam e ele percebeu que após meses e meses tinha acontecido. O coração acelerou.

        A espera tinha terminado. As unhas tremeram.

        Ela continuou olhando e também sentiu. O estômago subiu à garganta. E o porteiro ficou assombrado, quando em lugar de duas pessoas, viu entrar apenas uma no cinema.

        Onde estava a outra? A pessoa que entrou piscou maliciosamente para ele.

        “Entendeu?”, perguntou.

        O porteiro fez que sim… Era o amor.

Beijos do Luiz Ernesto

 © Ignácio de Loyola Brandão – Cartas, Iluminuras – 2005.  

Entendendo o conto-carta:

01 – Quem é o narrador do conto-carta?

      O narrador é Emílio, o protagonista da história.

02 – Por que Emílio estava esperando na porta do cinema?

      Ele estava à espera de sua namorada, acreditando que ela finalmente apareceria.

03 – Como Emílio descreve o sentimento de amar em comparação com gostar?

      Ele descreve que gostar é apenas trinta por cento do sentimento, enquanto amar é cem por cento, uma entrega total.

04 – Qual foi a reação do porteiro diante da situação de Emílio?

      O porteiro inicialmente estava incrédulo e confuso, mas no final, compreendeu a situação quando viu apenas uma pessoa entrar no cinema.

05 – O que Emílio esperava sentir quando sua namorada finalmente chegasse?

      Ele esperava sentir uma série de reações físicas e emocionais intensas, como coração acelerado, sudorese, estômago na garganta e tremores nas unhas.

06 – Como a narrativa revela o desfecho sobre o amor?

      O desfecho sugere que o amor verdadeiro é uma experiência transformadora, unindo duas pessoas em uma conexão tão profunda que elas se tornam uma só.

07 – Quais são as características físicas da jovem que Emílio finalmente reconhece como sua namorada?

      Ela é descrita como uma jovem morena, de olhos miúdos e com um sorriso que se espalha pelo rosto.

08 – O que o porteiro compreende no final do conto?

      Ele finalmente compreende que a pessoa que entrou no cinema sozinha representava a união de duas pessoas profundamente conectadas pelo amor.

09 – Qual é o sentimento predominante ao final do conto?

      O sentimento predominante é a realização e a revelação do poder transformador do amor.

10 – Como o conto explora a ideia de reconhecimento do amor verdadeiro?

      Ele explora a ideia de que o amor verdadeiro é reconhecido não apenas por aparências físicas, mas por uma conexão tão profunda que transcende a presença física, unindo duas pessoas em uma só.