Texto: O HOMEM NO TETO
Não me compreendam mal quando falo do
Pai. Não é que ele não gostasse do Jimmy, simplesmente não tinha nenhuma pista
para saber qual era a dele. Queria um filho com quem pudesse discutir sobre
médias de rebates e percentagens de arremesso. Em vez do quê, tinha Jimmy. Fez
o melhor que pôde, nas condições disponíveis. Quer dizer, ele não deixava de
ser um pai, não deixava de pagar pela comida e pelas roupas de Jimmy, dar
presentes de aniversário, presentes de Natal. Era um bom pai, visto por
este ângulo. E sempre achava para dizer a Jimmy coisas educativas do tipo: “Por
que você tem que deixar seus desenhos todos espalhados aí pelo chão?” ou: “Dá
para abaixar essa televisão para que ela fique apenas berrando?”. Às vezes
chegava a ser um disciplinador ofensivo, até.
Mas Jimmy não achava que o Pai
estivesse a fim de ofendê-lo de caso pensado. Simplesmente ele não sabia de que
outra maneira tratar um filho que ficava desenhando. Os desenhos que seu pai se
queixava de ver todos espalhados pelo chão eram deixados assim por Jimmy de
propósito. Jimmy esperava que o Pai topasse de repente com eles como se
estivessem ali por acaso, pegasse a primeira página e emendasse a leitura das
dez ou quinze páginas seguintes, pasmo, estupefato. “Não posso acreditar que um
garoto de dez anos e meio tenha sido capaz de desenhar isto!” eram as
palavras que Jimmy imaginava o Pai dizendo. Palavras que, entretanto, ele nunca
disse.
O seu pai que era Indiana Jones teria
dito essas palavras. O seu pai que era Indiana Jones estava sempre a
encorajá-lo.
E Jimmy, que não se chamava Jimmy na
história por ele inventada, mas Bob, pulou no vazio…
E o seu pai que era Indiana Jones
aparou-o na queda.
[…]
Um dia Jimmy surgiu do porão (seu lugar
secreto para desenhar quadrinhos) e deu com Lisi mostrando algumas produções
dele, daquelas mais antigas, realmente antigas, ao Pai. Desenhos que ele tinha
feito mais de um mês atrás e de que se envergonhava. Lisi apontou para uma
figura. “Este é você”, disse. E o Pai respondeu: “Este não sou eu”, e Lisi
disse: “É sim, e saiu igualzinho”.
Bem, talvez tivesse saído igualzinho,
talvez não, mas era o tipo da tolice dizer isso ao Pai. Principalmente quando
Lisi estava querendo provar a ele o que ela e a Mãe sabiam, mas o Pai não: que
Jimmy era um artista de verdade. Não era assim que se devia conduzir a coisa. O
Pai olhou meio atravessado para o quadrinho de Jimmy. Ele sabia a aparência que
tinha, e decididamente não tinha nada daquele pateta metido numa jaqueta de
safári. “Meu nariz não tem esse tamanhão.” O Pai, com desdém, soltou
um riso que saiu justamente pelo nariz. “Cadê meu queixo?”
Jimmy estava arrasado. […]
Era um erro contar o que quer que fosse
para Lisi. Não era para ela saber a respeito de Indiana Jones. Não era para
ninguém saber exceto o Pai, o Pai que iria descobrir tudo espontaneamente
quando pegasse os desenhos e dissesse: “Ei, mas o que é isso? Este cara é
igualzinho a mim! Ora vejam só, e eu sou o Indiana Jones!”.
Lisi, no entanto, estragou tudo,
porque ninguém se acha parecido com um desenho quando é outra pessoa que aponta
essa semelhança. A semelhança tem que ser notada pelo próprio. Esta era uma das
regras de Jimmy. Jimmy teve vontade de matar Lisi.
Indiana Jones estava liquidado como
personagem de histórias em quadrinhos. Isso tinha ficado absolutamente claro.
Ele havia sido um bom herói, talvez mesmo um grande herói. […]
Mas Lisi entregara Jimmy. O Pai deixou
sair um riso pelo nariz, de puro desdém. Um riso pelo nariz! Jimmy repassou a
cena em sua cabeça uma dezena de vezes, e de cada vez era como se morresse.
Indiana não podia continuar. Tinha que ser substituído. Mas quem poderia
substituir Indiana Jones?
Jimmy ficou remoendo o assunto nas duas
tardes que se seguiram. Foi mais rude do que de costume com sua irmã menor,
Susu.
[…]
Tentou de tudo, nada funcionava. Foi se
sentindo cada vez pior, minúsculo e inútil. Chateado e sem nada melhor para
fazer, Jimmy desenhou a si mesmo minúsculo e inútil. Uma lâmpada acendeu- se na
sua cabeça como acontece nos quadrinhos quando um personagem tem uma ideia.
Acrescentou uma máscara negra e uma capa ao seu personagem minúsculo e inútil.
O resultado deixava a desejar. Transformou a máscara num capuz. Olhou para o
personagem que acabava de criar e ficou arrepiado. Inventara um herói com
potencialidade de vir a ser o maior de todos saídos do seu traço. Tão minúsculo
e inútil na aparência, faria os vilões acreditarem que poderiam matá-lo
facilmente. Poderiam pegá-lo, torturá-lo, passar com carros em cima dele,
até com tanques. Mas ninguém, ninguém seria capaz de
derrotar Mini-man!
Jules Feiffer. O homem no teto. São Paulo: Companhia das Letras,1995. p.16-23.
Fonte: Livro-
PORTUGUÊS: Linguagens – Willian R. Cereja/Thereza C. Magalhães – 6ª Série –
Atual Editora -2002 – p. 33-6.
Entendendo o texto:
01 – De acordo com o texto,
qual o significado das palavras abaixo:
·
Desdém: desprezo.
·
Estupefato: muito surpreso, pasmo.
·
Rebate
e arremesso: jogadas do
beisebol.
02 – O texto apresenta um
problema de relacionamento entre Jimmy, protagonista e narrador dessa
história, e seu pai. Um não corresponde à expectativa do outro.
a)
Segundo o texto, que tipo de garoto o pai de
Jimmy gostaria de ter como filho?
Um garoto que se interessasse por esportes.
b)
Jimmy não tinha as qualidades esperadas pelo
pai, mas tinha outras, para ele até mais importantes, que gostaria que o pai
percebesse e valorizasse. Quais são elas?
A capacidade de desenhar muito bem, o dom de ser artista.
03 – O narrador afirma: “[…]
ele não deixava de ser um pai, não deixava de pagar pela comida e pelas roupas
[…]. Era um bom pai, visto por este ângulo”. Esse trecho permite supor que,
para Jimmy, existiam outros ângulos pelos quais a figura paterna poderia ser
vista.
a)
De que ponto de vista o pai de Jimmy
desempenha bem seu papel?
Do material; o papel de pai responsável pelas necessidades materiais
do filho.
b)
De que ponto de vista o pai de Jimmy falha em
seu papel?
Do afetivo; o papel de pai que participa dos interesses do filho.
04 – Apesar desses
desencontros, Jimmy ama o pai e chega a colocá-lo como herói em suas histórias
em quadrinhos. Assim, o menino tem em mente duas figuras paternas: o pai real,
que é frio e indiferente ao filho, e o pai ideal, o Indiana Jones de suas
histórias em quadrinhos. Observe os quadrinhos que o menino desenhou.
a)
Que tipo de sentimento o pai Indiana Jones
desperta no filho Bob?
Segurança, confiança.
b)
Que diferenças há entre o pai Indiana Jones e
o pai real de Jimmy?
O pai de Bob é participante e estimula o filho a confiar nele; o pai
de Jimmy, ao contrário, despreza os desenhos do filho e, assim, tira-lhe a
confiança.
05 – Lisi, a irmã de Jimmy,
inocentemente mostra os desenhos do irmão ao pai. O que Jimmy mais desejava
era que o pai os visse com carinho, mas o garoto não fica feliz.
a)
Com que o pai mais se preocupa?
Apenas com a semelhança física entre ele e Indiana Jones.
b)
Apesar de saber que é super-herói de uma
história em quadrinhos feita por seu próprio filho, o pai deixa de reconhecer o
mais importante: o significado que ele tem para o garoto. Qual é esse
significado?
O pai representa um herói para o filho, e isso é uma demonstração de
amor e carinho, própria da idade de Jimmy.
06 – Com a decepção que
teve, Jimmy fica arrasado. Indiana Jones está morto e é preciso começar tudo
outra vez, de forma diferente, mas ele se sente sem forças. Releia o último
parágrafo do texto e responda:
a)
Jimmy faz um desenho de si mesmo. Como ele se
retrata?
Minúsculo e inútil.
b)
Que relação tem a forma como ele se retrata
com a reação que o pai teve diante do seu desenho?
Foi assim que Jimmy se sentiu perante o comportamento do pai:
pequeno, inútil, incapaz de fazer as coisas direito.
07 – Projetando sua própria
fragilidade no papel, Jimmy cria um novo herói, Mini-man, que possui
semelhanças com seu criador.
a)
O que quer dizer Mini-man em português?
Mini-homem.
b)
Que semelhanças físicas há entre os dois?
Jimmy se sente diminuído, tão minúsculo quanto o herói.
c)
Mini-man não aparenta, mas possui uma grande
força interior. Você acha que isso também ocorre no caso de Jimmy? Justifique
sua resposta.
Sim, porque Jimmy foi capaz de superar a decepção com a atitude do
pai e criou uma nova personagem, mantendo-se como artista.