GABRIELA, CRAVO E CANELA
Jorge Amado
Só Gabriela
parecia não sentir a caminhada, seus pés como que deslizando pela picada muitas
vezes aberta na hora a golpes de facão, na mata virgem. Como se não existissem
as pedras, os tocos, os cipós emaranhados. A poeira dos caminhos da caatinga a
cobrira tão por completo que era impossível distinguir seus traços. Nos cabelos
já não penetrava o pedaço de pente, tanto era pó se acumulara. Parecia uma
demente perdida nos caminhos. Mas Clemente sabia como ela era deveras e o sabia
em cada partícula de seu ser, na ponta dos dedos e na pele do peito. Quando os
dois grupos se encontraram, no começo da viagem, a cor do rosto de Gabriela e
de suas pernas era ainda visível e os cabelos rolavam sobre o cangote,
espalhando perfume. Ainda agora, através da sujeira a envolve-la, ele a
enxergava como a vira no primeiro dia, encostada numa árvore, o corpo esguio, o
rosto sorridente, mordendo uma goiaba.
--- Tu parece
que nem veio de longe...
Ela riu:
--- A gente tá
chegando. Tá pertinho. Tão bom chegar.
Ele fechou ainda mais o rosto sombrio:
--- Num acho não.
--- E por que
tu não acha? – levantou para o rosto severo do homem seus olhos ora tímidos e
cândidos, ora insolentes e provocadores. – Tu não saiu para vir trabalhar no
cacau, ganhar dinheiro? Tu não fala noutra coisa.
--- Tu sabe por
quê – resmungou ele com raiva. – Pra mim esse caminho podia durar a vida toda.
Num me importava...
No riso dela
havia certa mágoa, não chegava a ser tristeza, como se estivesse conformada com
o destino:
--- Tudo que é
bom, tudo que é ruim também termina por acabar.
Uma raiva subia
dentre dele, impotente. Mais uma vez, controlando a voz, repetiu a pergunta que
lhe vinha fazendo pelo caminho e nas noites insones:
--- Tu não quer
mesmo ir comigo pras matas? Botar uma roça, plantar cacau junto nós dois? Com
pouco tempo a gente vai ter roçado seu, começar a vida.
A voz de
Gabriela era cariciosa mas definitiva:
--- Já te disse minha tenção. Vou ficar na
cidade, não quero mais viver no mato. Vou me contratar de cozinheira, de
lavadeira ou pra arrumar casa dos outros...
Acrescentou
numa lembrança alegre:
--- Já andei de
empregada em casa de gente rica, aprendi cozinhar.
--- Aí tu não
vai progredir. Na roça, comigo, a gente ia fazendo seu pé-de-meia, ia tirando
pra frente...
Ela não
respondeu. Ia pelo caminho quase saltitante. Parecia uma demente com aquele
cabelo desmazelado, envolta em sujeira, os pés feridos, trapos rotos sobre o
corpo. Mas Clemente a via esguia e formosa, a cabeleira solta e o rosto fino,
as pernas altas e o busto levantado. Fechou ainda mais o rosto, queria tê-la
com ele para sempre. Como viver sem o calor de Gabriela?
AMADO, Jorge.
Gabriela, cravo e canela. São Paulo, Martins, s.d. p. 82-3.
Cangote: nuca.
Insolente: atrevido, ousado, arrogante.
Tenção: intenção, plano.
1 – O que fazia com que Gabriela parecesse uma “demente
perdida nos caminhos”?
O fato de ela estar toda suja, coberta pela poeira da
caatinga.
2 – Os olhos de Gabriela são reveladores de algumas de suas
características. Que características são essas? Responda, utilizando
substantivos abstratos.
Candura, timidez, insolência e provocação.
3 – Por que Clemente sentia raiva?
Porque
Gabriela não queria ficar com ele no campo: ela queria mesmo era tentar a vida
na cidade.
4 – Transcreva do texto as expressões que demonstram a
sensualidade de Gabriela.
“Os
cabelos rolavam sobre o cangote, espalhando perfume”; “o corpo esguio”; “A voz
de Gabriela era cariciosa”; “Clemente a via esguia e formosa, a cabeleira solta
e o rosto fino, as pernas altas e o busto levantado”.