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quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

CONTO: DESENREDO - JOÃO GUIMARÃES ROSA - COM GABARITO

Conto: Desenredo
            
                João Guimarães Rosa

        Do narrador a seus ouvintes:
        — Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja. Tinha o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó Joaquim apareceu.
        Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tangida a vela e vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.
        Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo abismo é navegável a barquinhos de papel.
        Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano.
        Até que — deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas. Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que de leve a ferira, leviano modo.
        Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se de vê-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e preta amplitude.
        Ela — longe — sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele exercitava-se a aguentar-se, nas defeituosas emoções.
        Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O tempo é engenhoso.
        Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou — ela sutil como uma colher de chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo popular, por que forma fosse.
        Mas.
        Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios.
        Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino.
        Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado. Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio da barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro. Era o seu um amor meditado, a prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.
        Mais.
        No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível? Sábio sempre foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim, a felicidade — ideia inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira. Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se desafaz. Ele queria apenas os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma. Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cena do mundo, de caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o, amatemático, contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O que não era tão fácil como refritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem insistência, principalmente.
        O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisas, acronologia miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim, genial, operava o passado — plástico e contraditório rascunho. Criava nova, transformada realidade, mais alta. Mais certa?
        Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção manifesta. Haja o absoluto amar — e qualquer causa se irrefuta.
        Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências, o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima. Todos já acreditavam. Jó Joaquim primeiro que todos.
        Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.
        Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.
        E pôs-se a fábula em ata.

Rosa, João Guimarães. Tutameia (Terceiras estórias). 9.ed.
Rio de Janeiro: J. Olympio, 1967, p. 38-40.

Entendendo a conto:

01 – Observe que o conto contém muitas palavras e expressões ligadas à navegação e ao Direito.
a)   Copie, no seu caderno, as palavras que podem estar relacionadas a esses dois campos.
·        Navegação: “Ulysses”; “nau tangida a vela e vento”; “todo abismo é navegável a barquinhos de papel”; “desmastreio”; “frágio da barca”.

·        Direito: “Criminoso, reincidente”; “abusufrutos”; “decúbito dorsal”; “testemunho”; “evidência”; “justa e averiguada”; “em ata”.

b)   Por que a escolha desses campos semânticos é importante para a temática tratada?
Navegar é percorrer, tocar para a frente. Provavelmente, a redação esteja no fato de que as noções do que seja “direito” se relativizam no “navegar” da vida e do tempo.

02 – Leia o que Guimarães Rosa escreveu sobre a linguagem:
        “Meus romances e ciclos de romances são na realidade contos nos quais se unem a ficção poética e a realidade. Sei que daí pode facilmente nascer um filho ilegítimo, mas justamente o autor deve ter um aparelho de controle: sua cabeça. Escrevo, e creio que este é o meu aparelho de controle: o idioma português, tal como usamos no Brasil: entretanto, no fundo, enquanto vou escrevendo, extraio de muitos outros idiomas. Disso resultam meus livros, escritos em um idioma próprio, meu, e pode-se deduzir daí que não me submeto à tirania da gramática e dos dicionários dos outros. A gramática e a chamada filosofia, ciência linguística, foram inventadas pelos inimigos da poesia.”
                               In: Guimarães Rosa. São Paulo: Abril educação, 1982, p. 102.

a)   Observe que o conto é composto, também, por originais criações linguísticas, como “abusufruto”; “franciscanato”; “frágio” e “ufanático”. Que palavras as originaram?
·        Abusufruto: abuso + usufruto (direito de usufruir de algo);

·        Franciscanato: relativo aos franciscanos, no contexto, é uma alusão à vida de frade do personagem;

·        Frágio: redução de naufrágio (observar que também sugere a fragilidade do personagem);

·        Ufanático: ufano (que se orgulha de algo) + fanático.

b)   Que efeitos produzem no texto?
Conferem melodia à sintaxe, condensam significados.

03 – Provérbios e máximas (frases que sintetizam uma verdade, uma ideia) foram explorados por Guimarães Rosa em vários de seus contos. Modificados, suprimidos, parafraseados e parodiados, os provérbios populares constituem uma pausa para um comentário do narrador e, além disso, conferem ritmo e melodia poéticos à prosa. Observe: “Esperar é reconhecer-se incompleto”; “O trágico não vem a conta-gotas”.
a)   Que outros exemplos podem ser citados?
“Todo abismo é navegável a barquinhos de papel”; “O tempo é engenhoso”; “de sofrer e amar, a gente não se desafaz”.

b)   Qual é o provérbio original da seguinte reconstrução “A bonança nada tem a ver com a tempestade”?
Depois da tempestade, vem a bonança.

04 – Os nomes escolhidos, no conto “Desenredo”, não foram escolhidos ao acaso.
a)   A que outro personagem remete o nome Jó? Qual é a principal característica desse personagem?
Ao Jó bíblico, conhecido por sua paciência.

b)   A mulher de “Desenredo” é citada através de quatro nomes diferentes: Livíria, Rivília, Irlívia e, por fim, Vilíria. Que relação pode ser estabelecida entre os muitos nomes dados a ela e às suas atitudes?
Os relacionamentos da personagem eram inconstantes: quatro amantes foram citados, quatro foram os nomes dados a ela.

05 – Observe que o conto poderia dar-se por encerrado duas vezes: na primeira, quando o primeiro marido morre e Jó, então, casa-se com ela. Na segunda, quando Jó, já casado, descobre a traição da mulher, expulsa-a e, com o tempo, a conformar-se.
a)   Que palavras marcam, em cada caso, a continuidade da narrativa?
As palavras “mas” e “mais”.

b)   Considere que a história guarda marcas da oralidade, ou seja, é narrada como se fosse um “causo”, uma história real, quase uma fofoca. Como o narrador garante a atenção da história?
As palavras “mas” e “mais” aparecem isoladas em um parágrafo, como se o narrador, fizesse uma pausa, antes de continuar a narrar a história. Assim, cria expectativa na plateia (e no leitor), garantindo sua atenção.

06 – Desenredo é o ato de desfazer o enredo, desembaraçar a trama. Que relação há entre a atitude de Jó Joaquim e o título do texto?
      Jó Joaquim “desenreda”, desmancha a história de traição da mulher amada e recria o passado, refaz a história.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

CONTO: FAMIGERADO - JOÃO GUIMARÃES ROSA - COM QUESTÕES GABARITADAS

Conto: Famigerado
Fonte da imagem - https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjIP8tqe4ScolwJ52gjkbF3aLGOXnMNOSUi6nupNFTSnN1ge3H5VULI7YveB23C3nyNdmNiX26mCUnhs4XzIFeSyhTSaijejDEmxX5Fw6DJFqgNejLPT3C71HP8ClHkUsbz2jR5aiqNrcY/s320/FAMIGERADO.jpg
          João Guimarães Rosa

        Foi de incerta feita – o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pé nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranquilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.
        Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse – o oh-homem-oh – com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto, pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.
        Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.
        Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:
        -- “Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada…”
        Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas — e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.
        — “Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras… Estou vindo da Serra…”
        Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:
        — “Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso… Saiba que estou com ele à revelia… Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade… O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado…”
        Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.
        O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, insequentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá:
        — “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado… faz-megerado… falmisgeraldo… familhas-gerado…?
        Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?
        — “Saiba vosmecê que saí ind’hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro…”
        Se sério, se era. Transiu-se-me.
        — “Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro que aprende as palavras…
        É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias… Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam… A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?”
        Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
        — Famigerado?
        — “Sim senhor…” — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara.
        — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:
        — “Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho…”
        Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.
        — Famigerado é inóxio, é “célebre”, “notório”, “notável”…
        — “Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?”
        — Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos…
        — “Pois… e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?”
        — Famigerado? Bem. É: “importante”, que merece louvor, respeito…
        — “Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?”
        Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:
        — Olhe: eu, como o sr. Me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!…
        — “Ah, bem!…” — soltou, exultante.
        Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — “Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição…” — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d’água. Disse: — “Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!” Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: — “Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não…” Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — “A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças… Só pra azedar a mandioca…” Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.

                                          ROSA, João Guimarães. Famigerado. In: Primeiras estórias. 15. ed.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001, p. 56-61.
Entendendo o conto:

01 – Quem conta a história?
      Um narrador em primeira pessoa que, vai se saber mais tarde, tem o “poder” da linguagem. Tal como o autor do texto.

02 – Como a história começa?
      Com a chegada de quatro homens a cavalo.

03 – Observe como, no início do conto, o narrador estuda o valentão. O que a aparência do visitante denota?
      Rudeza, violência, esperteza, braveza, perversidade.

04 – Todos os visitantes tinham a mesma aparência? Explique.
      Não. Os outros três pareciam ser prisioneiros do primeiro.

05 – Depois da identificação do visitante, o personagem-narrador ficou mais ou menos apreensivo?
      Ficou com muito mais medo. Afinal, o visitante era conhecido como homem perigosíssimo, já havia matado muita gente.

06 – O que queria o valentão?
      Saber o significado de uma palavra: famigerado.

07 – O que pensava o visitante sobre o significado da palavra?
      Pensava ele que poderia ser uma ofensa.

08 – Qual foi sua atitude quando soube do real significado da palavra?
      Sorriu, libertou seus prisioneiros, agradeceu e foi embora.

09 – “Certa vez” é uma fórmula muito usada para iniciar contos populares. De que maneira o autor inverte essa expressão?
      Utilizando a expressão “incerta feita”.

10 – Releia a seguinte frase: “Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado.” Observe que a frase aproxima-se da poesia. Por quê?
      Por causa da rima, da organização rítmica e das relações originais que o autor estabelece entre as palavras.

11 – A expressão “O medo me miava” foi criada pelo autor. A leitura do conto, porém, permite atribuir-lhe sentido. Que significado pode ser dado a tal expressão?
      Fiquei com muito medo. A expressão intensifica o medo do personagem narrador.

12 – A expressão “cabismeditado” também é uma criação linguística do autor. O que pode significar?
      Cabisbaixo, o personagem meditava.

13 – “Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-me-gerado... famisgerado... familhasgerado...?” Observe a criatividade linguística de Damázio: não dominando o sentido da palavra, ele a desdobra em várias possibilidades de significação. Relacione a palavra “famanasse” com o sentido de famigerado.
      “Famanasse” se relaciona com “fama”.

14 – “Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes.” O que sugere essa frase sobre o estado de espírito do narrador?
      Medo e indecisão. Por um triz, ele poderia ser morto por Damázio.

15 – Observe que, depois do pedido de Damázio para que o narrador explicasse o sentido da palavra, o narrador pergunta duas vezes: “Famigerado?” Por que faz isso?
      O narrador procura encontrar formas para retardar a sua explicação.

16 – “Não há como que as grandezas manchas duma pessoa instruída.” Essa frase foi um elogio ao narrador? Explique.
      Sim. Damázio louva o poder de linguagem do narrador, o qual considera uma “grandeza macha”.

17 – O narrador analisa os gestos, atitudes e expressões faciais do valentão. Não só o que ele diz, mas também como diz significa muito. De que forma essa ideia também pode ser aplicada à literatura?
      Na literatura, também importa o como se dizem as coisa.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

CONTO: SORÔCO, SUA MÃE, SUA FILHA - JOÃO GUIMARÃES ROSA - COM GABARITO

CONTO: SORÔCO, SUA MÃE, SUA FILHA
                 João Guimarães Rosa


  Aquele carro parara na linha de resguardo, desde a véspera, tinha vindo com o expresso do Rio, e estava lá, no desvio de dentro, na esplanada da estação. Não era um vagão comum de passageiros, de primeira, só que mais vistoso, todo novo. A gente reparando, notava as diferenças. Assim repartido em dois, num dos cômodos as janelas sendo de grades, feito as de cadeia, para os presos. A gente sabia que, com pouco, ele ia rodar de volta, atrelado ao expresso daí de baixo, fazendo parte da composição. Ia servir para levar duas mulheres, para longe, para sempre. O trem do sertão passava às 12h45m.
        As muitas pessoas já estavam de ajuntamento, em beira do carro, para esperar. As pessoas não queriam poder ficar se entristecendo, conversavam, cada um porfiando no falar com sensatez, como sabendo mais do que os outros a prática do acontecer das coisas. Sempre chegava mais povo – o movimento. Aquilo quase no fim da esplanada, do lado do curral de embarque de bois, antes da guarita do guarda-chaves, perto dos empilhados de lenha. Sorôco ia trazer as duas, conforme. A mãe de Sorôco era de idade, com para mais de uns setenta. A filha, ele só tinha aquela. Sorôco era viúvo. Afora essas, não se conhecia dele o parente nenhum.
        A hora era de muito sol – o povo caçava jeito de ficarem debaixo da sombra das árvores de cedro. O carro lembrava um canoão no seco, navio. A gente olhava: nas reluzências do ar, parecia que ele estava torto, que pontas se empinava. O borco bojudo do telhadilho dele alumiava em preto. Parecia coisa de invento de muita distância, sem piedade nenhuma, e que a gente não pudesse imaginar direito nem se acostumar de ver, e não sendo de ninguém. Para onde ia, no levar as mulheres, era para um lugar chamado Barbacena, longe. Para o pobre, os lugares são mais longe.
        O agente da estação apareceu, fardado de amarelo, com o livro de capa preta e as bandeirinhas verde e vermelha debaixo do braço. – “Vai ver se botaram água fresca no carro...” – ele mandou. Depois, o guarda-freios andou mexendo nas mangueiras de engate. Alguém deu aviso: --- “Eles vêm! ...” Apontavam, da Rua de Baixo, onde morava Sorôco. Ele era um homenzão, brutalhudo de corpo, com a cara grande, uma barba, fiosa, encardida em amarelo, e uns pés, com alpercatas: as crianças tomavam medo dele; mais, da voz, que era quase pouca, grossa, que em seguida se afinava. Vinham vindo, com o trazer da comitiva.
        Aí, paravam. A filha – a moça – tinha pegado a cantar, levantando os braços, a cantiga não vigorava certa, nem no tom nem no se-dizer das palavras – o nenhum. A moça punha os olhos no alto, que nem os santos e os espantados, vinha enfeitada de disparates, num aspecto de admiração. Assim com panos e papéis, de diversas cores, uma carapuça em cima dos espalhados cabelos, e enfunada em tantas roupas ainda de mais misturas, tiras e faixas, dependuradas – virundangas: matéria de maluco. A velha só estava de preto, com um fichu preto, ela batia com a cabeça nos docementes. Sem tanto que diferentes, elas se assemelhavam.
        Sorôco estava dando o braço a elas, uma de cada lado. Em mentira, parecia entrada em igreja, num casório. Era uma tristeza. Parecia enterro. Todos ficavam de parte, a chusma de gente não querendo afirmar as vistas, por causa daqueles trasmodos e despropósitos, de fazer risos, e por conta do Sorôco – para não parecer pouco caso. Ele hoje estava calçado de botinas, e de paletó, com chapéu grande, botara sua roupa melhor, os maltrapos. E estava reportado e atalhado, humildoso. Todos diziam a ele seus respeitos, de dó. Ele respondia: --- “Deus vos pague essa despesa ...”.
        O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco aguentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Saí, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências, de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se seguir.
        De repente, a velha se desapareceu do braço de Sorôco, foi se sentar no degrau da escadinha do carro. – “Ela não faz nada, seo Agente...” – a voz de Sorôco estava muito branda: --- “Ela não acode, quando a gente chama...” A moça, aí, tornou a cantar, virada para o povo, o ao ar, a cara dela era um repouso estatelado, não queria dar-se em espetáculo, mas representava de outrora grandezas, impossíveis. Mas a gente viu a velha olhar para ela, com um encanto de pressentimento muito antigo – um amor extremoso. E, principiando baixinho, mas depois puxando pela voz, ela pegou a cantar, também, tomando o exemplo, a cantiga mesma da outra, que ninguém não entendia. Agora elas cantavam junto, não paravam de cantar.
        Aí que já estava chegando a horinha do trem, tinham de dar fim aos aprestes, fazer as duas entrar para o carro de janelas enxequetadas de grades. Assim, num consumiço, sem despedida nenhuma, que elas nem haviam de poder entender. Nessa diligência, os que iam com elas, por bem-fazer, na viagem comprida, eram o Nenêgo, despachado e animoso, e o José Abençoado, pessoa de muita cautel, estes serviam para ter mão nelas, em toda juntura. E subiam também no carro uns rapazinhos, carregando as trouxas e malas, e as coisas de comer, muitas, que não iam fazer minguá, os embrulhos de pão. Por derradeiro, o Nenêgo ainda se apareceu na plataforma, para os gestos de que tudo ia em ordem. Elas não haviam de dar trabalhos.
        Agora, mesmo, a gente acorçoo do canto, das duas, aquela chirimia, que avocava: que era um constado de enormes diversidades desta vida, que podiam doer na gente, sem jurisprudência de motivo nem lugar, nenhum, mas pelo antes, pelo depois.
        Sorôco.
        Tomara aquilo se acabasse. O trem chegando, a máquina manobrando sozinha para vir pegar o carro. O trem apitou, e passou, se foi, o de sempre.
        Sorôco não esperou tudo se sumir. Nem olhou. Só ficou de chapéu na mão, mais de barba quadrada, surdo – o que nele mais espantava. O triste do homem, lá, decretado, embargando-se de poder falar algumas suas palavras. Ao sofrer o assim das coisas, ele, no oco sem beiras, debaixo do peso, sem queixa, exemploso. E lhe falavam: --- “O mundo está dessa forma...” Todos, no arregalado respeito, tinham as vistas neblinadas. De repente, todos gostavm demais de Sorôco.
        Ele se sacudiu, de um jeito arrebentado, desacontecido, e virou, para ir-s’embora. Estava voltando para casa, como se estivesse indo para longe, fora de conta.
        Mas, parou. Em tanto que se esquisitou, parecia que ia perder o de si, parar de ser. Assim num excesso de espírito, fora de sentido. E foi o que não se podia prevenir: quem ia fazer siso naquilo? Num rompido – ele começou a cantar, alteado, forte, mas sozinho para si – e era a cantiga, mesma, de desatino, que as duas tanto tinham cantado. Cantava continuando.
        A gente se esfriou, se afundou – um instantâneo. A gente... E foi sem combinação, nem ninguém entendia o que se fizesse: todos, de uma vez, de dó de Sorôco, principiaram também a acompanhar aquele canto sem razão. E com as vozes tão altas! Todos caminhando com ele, Sorôco, e canta que cantando, atrás dele, os mais de detrás quase que corriam, ninguém deixasse de cantar. Foi um caso sem comparação.
        A gente estava agora o Sorôco para a casa dele, de verdade. A gente, com ele, ia até aonde que ia aquela cantiga.

                                         João Guimarães Rosa. Primeiras estórias.
                                    Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 61-4.
Atrelado: preso.
Esplanada: terreno plano e descoberto.
Porfiar: discutir, debater.
Borco: parte externa do que está de barriga para baixo.
Chusma: multidão.
Enfunado: inchado, cheio de.
Fichu: lenço de cabeça e ombros.
Reluzência: brilho.
Vigorar: ter sentido.
Acorçoo: alento.
Alteado: levantado, soerguido.
Animoso: corajoso.
Aprestes: aprontamentos; provisões.
Atalhado: reportado.
Avocar: chamar a si a responsabilidade, o direito.
Chirimia: palavras desconexas.
Diligência: providência; medida.
Enxequetado: enxadrezado.
Juntura: circunstância.
Jurisprudência: conjunto de leis.
Mercê: favor; beneficio; benevolência.
Remir: resgatar.
Reportado: moderado, prudente, cauteloso.
Decretado: parado.
Embargado: reprimido, contido.


Interpretação do texto:
1 – Por que as duas mulheres estavam sendo levadas para Barbacena?
      Para serem internadas em um hospital psiquiátrico (hospício).

2 – Na opinião do povo, a partida dessas mulheres representava um alívio para Sorôco. Por quê?
      Sorôco não tinha mais condição de cuidar das duas sozinho, precisa sempre recorrer ao auxílio de outras pessoas.

3 – Quando ambas as mulheres começam a cantar, fica evidente o desequilíbrio entre os dois grupos de personagens: essas mulheres e as demais pessoas. Mesmo a partida do trem não resolve o mal-estar. Como o equilíbrio é reestabelecido no conto, em sua opinião?
      Após a partida do trem, Sorôco, na volta para casa, começa a cantar a cantiga das duas mulheres e a comunidade também. Ou seja, as personagens recuperam o equilíbrio à medida que aderem à manifestação de loucura das mulheres.

4 – Através da cantiga, as duas mulheres exteriorizavam seus sentimentos. Caracterize, com suas palavras, o teor dessa cantiga.
      A grosso modo, a cantiga expressava as adversidades da vida das mulheres.

5 – Que efeito o trecho “[...] não se conhecia dele o parente nenhum [...]” provoca na construção da figura de Sorôco?
      Em nossa leitura, a informação acentua a dramaticidade da partida das duas mulheres, a solidão de Sorôco.

6 – A cantiga, de início, é a expressão da loucura das mulheres. No final, assume outra função no conto. Qual?
      A cantiga permite a manifestação da solidariedade do povo a Sorôco.

7 – Copie em seu caderno palavras ou expressões do texto equivalentes a:
      a – Aglomeração de pessoas;
      “De ajuntamento”.

      b – O povo procurava jeito;
      “O povo caçava jeito”.

      c – Olhar fixamente;
      “Afirmar as vistas”.

      d – Meneava a cabeça.
      “Batia com a cabeça”.


segunda-feira, 2 de outubro de 2017

TEXTO LITERÁRIO: UM DIA TODOS SE ENCONTRAM(FRAGMENTO) - JOÃO GUIMARÃES ROSA - COM GABARITO

TEXTO LITERÁRIO: UM DIA TODOS SE ENCONTRAM
                                         João Guimarães Rosa

        De repente lá vinha um homem a cavalo. Eram dois. Um senhor de fora, o claro da roupa. Miguilim saudou, pedindo a bênção. O homem trouxe o cavalo cá bem junto. Ele era de óculos, corado, alto, com um chapéu diferente, mesmo.
        --- Deus te abençoe, pequeninho. Como é teu nome?
        --- Miguilim. Eu sou irmão do Dito.
        --- E seu irmão Dito é o dono daqui?
        --- Não, meu senhor. O Ditinho está em glória.
        O homem esbarrava o avanço do cavalo, que era zelado, manteúdo, formoso como nenhum outro. Redizia:
        --- Ah, não sabia, não. Deus o tenha em sua guarda... Mas, que é que há, Miguilim?
        Miguilim queria ver se o homem estava mesmo sorrindo para ele, por isso é que o encarava.
        --- Por que você aperta os olhos assim? Você não é limpo de vista? Vamos até lá. Quem é que está em tua casa?
        ---É mãe, e os meninos...
        Estava Mãe, estava Tio Terêz, estavam todos. O senhor alto e claro se apeou. O outro, que vinha com ele, era um camarada. O senhor perguntava à Mãe muitas coisas do Miguilim. Depois perguntava a ele mesmo: --- “Miguilim, espia daí: quantos dedos da minha mão você está enxergando? E agora?”.
        Miguilim espremia os olhos. Drelina e a Chica riam. Tomezinho tinha ido se esconder.
        --- Este nosso rapazinho tem a vista curta. Espera aí, Miguilim...
        E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito.
        --- Olha, agora!
        Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meus Deus, tanta coisa, tudo... O senhor tinha retirado dele os óculos, e Miguilim ainda apontava, falava, contava tudo como era, como tinha visto. Mãe esteve assim assustada; mas o senhor dizia que aquilo era do modo mesmo, só que Miguilim também carecia de usar óculos, dali por diante. O senhor bebia café com eles. Era o doutor José Lourenço, do Curvelo. Tudo podia. Coração de Miguilim batia descompasso, ele careceu de ir lá dentro, contar à Rosa, à Maria Pretinha, à Mãitina. A Chica veio correndo atrás, mexeu: --- “, Miguilim você é piticego...” E ele respondeu: --- “Donazinha...”.
        Quando voltou, o doutor José Lourenço já tinha ido embora.
        --- “Você está triste, Miguilim?” --- Mãe perguntou.
        Miguilim não sabia. Todos eram maiores do que ele, as coisas reviravam sempre dum modo tão diferente, eram grandes demais.
        --- Pra onde ele foi?
        --- A foi p’ra a Vereda do Tipã, onde os caçadores estão. Mais amanhã ele volta, de manhã, antes de ir s’embora para a cidade. Disse que, você querendo, Miguilim, ele junto te leva... --- O doutor era homem muito bom, levava o Miguilim, lá ele comprava uns óculos pequenos, entrava para a escola, depois aprendia ofício. --- “Você mesmo quer ir?”.
         Miguilim não sabia. Fazia peso para não soluçar. Sua alma, até ao fundo, se esfriava. Mas Mãe disse:
         --- Vai, meu filho. É a luz dos teus olhos, que só Deus teve poder para te dar. Vai. Fim do ano, a gente puder, faz a viagem também. Um dia todos se encontram...

        João Guimarães Rosa. Campo geral. In: Manuelzão e Miguilim.
                                Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. p. 139-40.

1 – “O Ditinho está em glória”; “Você não é limpo de vista?”; “Você é piticego...” Você já tinha ouvido expressões como essas? Onde? Como será o lugar retratado pelo autor? Explique o que levou você a fazer essa suposição.
        Resposta pessoal do aluno. O aluno deve perceber que se trata de um linguajar interiorano.

2 – Miguilim pôde ver em detalhes um mundo que, para ele, até então não existia. Essa conquista, todavia, teve um preço alto. Terá valido a pena?
      Sim. As separações costumam ser dolorosas, mas muitas vezes contribuem para nosso próprio crescimento e amadurecimento.

3 – “Todos eram maiores do que ele, as coisas reviravam sempre dum modo tão diferente, eram grandes demais.” Com essas palavras o autor tenta demonstrar o que se passa no interior de Miguilim. Explique você, com suas palavras, o que o garoto estava sentindo.
      Resposta pessoal do aluno. Observar que o menino se sente dividido.

4 – Como está o estado interior de Miguilim a chance de tentar uma nova vida?
      Miguilim é uma criança que sente nos acontecimentos uma força contra a qual não pode lutar em sua fragilidade infantil. Por isso, e para não preocupar ainda mais a mãe, esforça-se por não chorar.

5 – O que demonstra a atitude da mãe de Miguilim?
     Demonstra desprendimento. Embora ela esteja sofrendo com a possível separação, esforça-se para se controlar.

6 – Faça um comentário sobre o modo de narrar do autor do texto “Um dia todos se encontram”.
      Neste texto, o substantivo comum mãe é transformado em próprio porque ele funciona mesmo como um nome. A personagem não é apenas mãe de Miguilim. Ela encarna a função de mãe na família e desempenha papel fundamental na história.

7 – Afinal, o que dói tanto numa separação?
      Resposta pessoal do aluno.