sexta-feira, 24 de julho de 2020

POEMA: O FERRAGEIRO DE CARMONA - JOÃO CABRAL DE MELO NETO - COM GABARITO

Poema: O Ferrageiro de Carmona    

                 João Cabral de Melo Neto

Um ferrageiro de Carmona
que me informava de um balcão:
«Aquilo? É de ferro fundido,
foi a fôrma que fez, não a mão.

Só trabalho em ferro forjado
que é quando se trabalha ferro;
então, corpo a corpo com ele,
domo-o, dobro-o, até o onde quero.

O ferro fundido é sem luta,
é só derramá-lo na fôrma.
Não há nele a queda-de-braço
e o cara-a-cara de uma forja.

Existe grande diferença
do ferro forjado ao fundido;
é uma distância tão enorme
que não pode medir-se a gritos.

Conhece a Giralda em Sevilha?
De certo subiu lá em cima
Reparou nas flores de ferro
dos quatro jarros das esquinas?

Pois aquilo é ferro forjado.
Flores criadas numa outra língua.
Nada têm das flores de fôrma
moldadas pelas das campinas.

Dou-lhe aqui humilde receita,
ao senhor que dizem ser poeta:
o ferro não deve fundir-se
nem deve a voz ter diarreia.

Forjar: domar o ferro à força,
não até uma flor já sabida,
mas ao que pode até ser flor
se flor parece a quem o diga.

                           João Cabral de Melo Neto, in 'Serial e Antes, A Educação pela Pedra e Depois, Rio de Janeiro, 1997'

Entendendo o poema:

01 – O poema mostra:

(F) O fazer poético como um processo racional, fundamentado em modelos preexistentes.

(F) A relação criador-criatura enfocada sob uma perspectiva irônica.

(V) Uma analogia entre o ofício do ferrageiro e o do poeta.

(V) A “flor” forjada como exemplo de obra de arte criativa.

(F) A criação da poesia como um processo cuja marca é a fluência das palavras, sem controle seletivo.

(V) A verossimilhança, o efeito de verdade na obra de arte, ligada à ação persuasiva do artefato sobre objeto natural.

(V) A ação de forjar ligada à marca da pessoalidade no processo criativo, contrapondo-se ao plano do fundir, cuja marca é a ausência do sujeito.

02 – João Cabral de Melo Neto, mais conhecido como o “poeta das simetrias”, apresenta um texto exato e extremamente racionalizado. Em seus poemas, rompe com o mito da poesia de inspiração, pois prega que a poesia não está no sentimento do poeta ou mesmo na beleza dos fatos, mas na organização do texto, no rigor de sua construção. Com base no poema, analise as afirmativas a seguir:

I – O poema é construído a partir de oposições semânticas, como a que existe entre “ferro forjado” e “ferro fundido”.

II – O eu lírico valoriza o trabalho com ferro fundido e desqualifica o com ferro forjado.

III – O poema se utiliza da metáfora do trabalho do ferreiro para falar do fazer poético.

É correto o que se afirma em:

a)   Apenas I.

b)   Apenas II.

c)   I e III.

d)   Apenas a III.

03 – De que se trata o poema?

      Fala do ato de criação do fazer poético.

04 – O poeta recorre a que comparação para ilustrar sua fala?

      Ele recorre à comparação do ato de forjar o metal e o ato de engendrar as palavras.

05 – Que palavras o eu lírico usa que revela-se como autoritário, firme e austero o ato de escrever?

      Ferro, forjado, fundido.

06 – Para reproduzir a labuta do ato criativo o eu lírico recorre a quê advérbios?

      Corpo a corpo, cara a cara, a gritos, a mão.

 


POEMA: À TELEVISÃO - JOSÉ PAULO PAES - COM GABARITO

Poema: À televisão             

           José Paulo Paes


Teu boletim meteorológico

me diz aqui e agora

se chove ou se faz sol.

Para que ir lá fora?

 

A comida suculenta

que pões à minha frente

como-a toda com os olhos.

Aposentei os dentes.

 

Nos dramalhões que encenas

há tamanho poder

de vida que eu próprio

nem me canso em viver.

 

Guerra, sexo, esporte

-- me dás tudo, tudo.

Vou pregar minha porta:

já não preciso do mundo.

  PAES, J. P. Prosas seguidas de odes mínimas. São Paulo. Companhia das Letras, 1992.

Entendendo o poema:

01 – No poema, à televisão é humanizada, assumindo o papel de interlocutor do eu poético, Identifique o elemento linguístico que melhor caracteriza essa humanização e transcreva um verso em que ele apareça.

      O uso da segunda pessoa gramatical.

      Um dentre os versos: Teu boletim meteorológico / que pões à minha frente / nos dramalhões que encenas / me dás tudo, tudo.

02 – Indique o tema geral do poema e explique como ele é abordado criticamente por José Paulo Paes.

      O tema geral é a sociedade do espetáculo ou a presença da tecnologia na vida do homem.

      No texto a televisão representa esse tem geral, simbolizando a solidão humana.

 


POEMA: VIDA MENOR - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

Poema: Vida menor

          Carlos Drummond de Andrade

A fuga do real,

ainda mais longe a fuga do feérico,

mais longe de tudo, a fuga de si mesmo,

a fuga da fuga, o exílio

sem água e palavra, a perda

voluntária de amor e memória,

o eco

já não correspondendo ao apelo, e este fundindo-se,

a mão tornando-se enorme e desaparecendo

desfigurada, todos os gestos afinal impossíveis,

senão inúteis, a desnecessidade do canto, a limpeza

da cor, nem braço a mover-se nem unha crescendo.

Não a morte, contudo.

 

Mas a vida: captada em sua forma irredutível,

já sem ornato ou comentário melódico,

vida a que aspiramos como paz no cansaço

(não a morte)

vida mínima, essencial; um início; um sono;

menos que terra, sem calor; sem ciência nem ironia;

o que se possa desejar de menos cruel: vida

em que o ar, não respirando, mais envolva;

nenhum gasto de tecidos; ausência deles;

confusão entre manhã e tarde, já sem dor,

porque o tempo não mais se divide em sessões; o tempo

elidido, domado.

Não o morto nem o eterno ou o divino,

apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente

e solitário vivo.

Isso eu procuro.

                                   ANDRADE, Carlos Drummond de. In: Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 1993, p. 234-5.

Entendendo o poema:

01 – De acordo com o ideal de vida do sujeito poético, a existência humana:

(V) Deve ser simples e desapegada de valores materiais.

(F) Constitui-se um breve espaço da vida humana marcada pela vulgaridade.

(F) Tem seu verdadeiro sentido quando associada à realidade sobrenatural e divina.

(V) Deve estar isenta da preocupação com a passagem do tempo, eliminando, assim, as angústias do homem.

(V) Deve ser desvinculada de envolvimentos com a realidade social.

02 – O poema apresenta:

(V) Enumeração e reiteração de ideias, visando à expressividade.

(V) Funções emotiva e poética da linguagem.

(V) Liberdade formal.

(F) Temática de caráter social, representando bem uma arte engajada.

(F) Uma linguagem referencial, daí a objetividade no enfoque do tema.

03 – O título do poema pode ser usado como uma categoria antropológica, para quê?

      Para pensar as condições da subjetividade, em um ambiente de elevada representação histórica.


POEMA: O SERTANEJO FALANDO - JOÃO CABRAL DE MELO NETO - COM GABARITO

Poema: O Sertanejo Falando

             João Cabral de Melo Neto

A fala a nível do sertanejo engana:
as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.


Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-la na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.

                               (A educação pela pedra, 1962-1965). Fonte: www.academia.org.br O Sertanejo Falando (João Cabral de Melo Neto)

Entendendo o poema:

01 – É possível observar no poema a ocorrência de suas funções da linguagem, que são:

a)   Referencial e poética.

b)   Fática e poética.

c)   Poética e metalinguística.

d)   Emotiva e metalinguística.

02 – O poema nos revela que realidade?

      A realidade de um meio ambiente específico, da terra da educação pela pedra, terra em que “de nascença a pedra entranha a alma”, terra do martírio dos apedrejados pelas forças da natureza e pelas leis pedregosas da história.

03 – No verso: “As palavras dele vêm como rebuçadas”, o que o eu lírico quis dizer?

      Que a língua imposta é insuficiente e inadequada como instrumentos de expressão e comunicação no seu verdadeiro mundo, e por isso ele não quer obedecer às fronteiras que essa língua lhe impõe.

04 – Em que verso o eu lírico diz que é incapaz de se expressar nessa língua sem sofrer?

      “As palavras de pedra ulceram a boca”.

05 – Assinale com V (verdadeiro) ou F (falso) as seguintes afirmações sobre o poema.

(F) O eu lírico do poema é o próprio sertanejo que reflete sobre sua forma de falar.

(V) A ideia dos quatro primeiros versos da primeira estrofe é retomada nos quatro últimos da segunda; neles é descrita a melodia aparentemente doce da fala do sertanejo.

(V) Os quatro últimos versos da primeira estrofe estão relacionados aos quatro primeiros da segunda; neles é descrita a essência rude do falar sertanejo.

(F) O sertanejo falando opõe-se aos demais poemas de A educação pela pedra; nele João Cabral de Melo Neto apresenta um rigor formal, uma preocupação com a estrutura do poema, ausente no restante do livro.

A sequência correta de preenchimento dos parênteses, de cima para baixo, é:

a)   V – V – V – F.

b)   F – V – F – V.

c)   V – F – V – V.

d)   F – F – F – V.

e)   F – V – V – F.

06 – Esse poema consta na primeira parte de A educação pela pedra, considerada pelo autor sua obra máxima. Depois de uma leitura atenta, responda:

a)   Qual o contraste entre a busca da palavra e o resultado sua execução na boca do sertanejo?

A busca da palavra pelo sertanejo é, segundo o poema, um processo árduo: “As palavras de pedra ulceram a boca / o natural desse idioma fala à força”. No que se refere a sua execução na boca do sertanejo, “as palavras vêm, como rebuscadas (...), na glace / de uma entonação lisa, de adocicada”, as palavras enganam e parecem mais soltas e espontâneas do que realmente são. Dessa forma, o contraste entre a busca áspera e o resultado na execução aparentemente suave da língua pelo sertanejo fica evidente.

b)   A que se refere, no texto, a palavra ela, no primeiro verso da segunda estrofe? Justifique sua resposta.

No primeiro verso da segunda estrofe, a palavra refere-se à fala do sertanejo que, segundo o eu lírico, engana por parecer lisa e adocicada, quando é, na verdade, ao natural, “falada à força”. Trata-se de um pronome pessoal utilizado como elemento anafórico.

 





CRÔNICA: SONDAGEM - CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE - COM GABARITO

Crônica: SONDAGEM

            Carlos Drummond de Andrade

       O carteiro, conversador amável, não gosta de livros. Tornam pesada a carga matinal, que na sua opinião, e dado o seu nome burocrático, devia constituir-se apenas de cartas. No máximo algum jornalzinho leve, mas esses pacotes e mais pacotes que o senhor recebe, ler tudo isso deve ser de morte!

      Explico-lhe que não é preciso ler tudo isso, e ele muito se admira:

      -- Então o senhor guarda sem ler? E como é que sabe o que tem no miolo?

        -- Em primeiro lugar, Teodorico, nem sempre eu guardo. Às vezes dou aos amigos, quando há alguma coisa que possa interessar a eles.

        -- Mas como sabe que pode interessar, se não leu?

        Esclareço a Teodorico que não leio de ponta a ponta, mas sempre abro ao acaso, leio uma página ou umas linhas, passo os olhos no índice, e concluo.

        Meu crédito diminui sensivelmente a seus olhos. Não lhe passaria pela cabeça receber qualquer coisa do correio sem ler inteirinha.

        -- Mas, Teodorico, quando você compra um jornal se sente obrigado a ler tudo que está nele?

        -- Aí é diferente. Eu compro o jornal para ver os crimes, o resultado do seu-talão-vale-um-milhão etc. Leio aquilo que me interessa.

        -- Eu também leio aquilo que me interessa.

        -- Com o devido respeito, mas quem lhe mandou o livro desejava que o senhor lesse tudinho.

        -- Bem, faz-se o possível, mas...

        -- Eu sei, eu sei. O senhor não tem tempo.

        -- É.

        -- Mas quem escreveu, coitado! Esse perdeu o seu latim, como se diz.

        -- Será que perdeu? Teve satisfação em escrever, esvaziou a alma, está acabado.

        A ideia de que escrever é esvaziar a alma perturbou meu carteiro, tanto quanto percebo em seu rosto magro e sulcado.

        -- Não leva a mal?

        -- Não levo a mal o quê?

        -- Eu lhe dizer que nesse caso carece prestar mais atenção ainda nos livros, muito mais! Se um cidadão vem à sua casa e pede licença para contar um desgosto de família, uma dor forte, dor-de-cotovelo, vamos dizer assim, será que o senhor não escutava o lacrimal dele com todo o acatamento?

        -- Teodorico, você está esticando demais o meu pensamento. Nem todo livro representa uma confissão do autor, ainda ontem você me trouxe uma publicação do Itamaraty sobre o desenvolvimento da OPA, que drama de sentimento há nisso?

        -- Bem, nessas condições...

        -- E depois, no caso de ter uma dor moral, escrevendo o livro o camarada desabafa, entende? Pouco importa que seja lido ou não, isso é outra coisa.

        Ficou pensativo; à procura de argumento? Enquanto isso, eu meditava a curiosidade de um carteiro que se queixa de carregar muitos livros e ao mesmo tempo reprova que outros não os leiam integralmente.

        -- Tem razão. Não adianta mesmo escrever.

        -- Como não adianta? Lava o espírito.

        -- No meu fraco raciocínio, tudo é encadeado neste mundo. Ou devia ser. Uma coisa nunca acontece sozinha nem acaba sozinha. Se a pessoa, vamos dizer, eu, só para armar um exemplo, se eu escrevo um livro, deve existir um outro - o senhor, numa hipótese - para receber e ler esse livro. Mas se o senhor não liga a mínima, foi besteira eu fazer esse esforço, e isso é o que acontece com a maioria, estou vendo.

        -- Teodorico! você... escreveu um livro?

        Virou o rosto.

        -- De poesia, mas agora não adianta eu lhe oferecer um exemplar. Até segunda, bom domingo para o senhor.

        -- Escute aqui, Teodorico...

        -- Bem, já que o senhor insiste, aqui está o seu volume, não repare os defeitos, ouviu? Esvaziei bastante a alma, tudo não era possível!

(Fonte: ANDRADE, Carlos Drummond de. Sondagem. In: WERNECK, Humberto (Org.). Boa companhia: crônicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p.31-33.)

Entendendo a crônica:

01 – O carteiro questionou o narrador sobre o fato de esse não ler todos os livros que recebe, por quê?

a)   Se admirava da capacidade de leitura do narrador.

b)   Se queixava de ter que carregar o peso dos livros.

c)   Queria convencer o narrador a ler o seu livro.

d)   Queria saber se alguém lia tantos livros.

02 – Em qual frase está expressa uma opinião do narrador?

a)   “O carteiro, conversador amável, não gosta de livros”.

b)   “Esclareço a Teodorico que não leio de ponta a ponta...”.

c)   “Explico-lhe que não é preciso ler tudo isso...”.

d)   “... leio uma página ou umas linhas...”.

03 – A crônica inicia-se com a seguinte consideração do narrador. “O carteiro, conversador amável, não gosta de livro”. Explique como isso entra em contradição no final da crônica.

      No final da crônica contradiz essa afirmação, porque é revelado que o carteiro havia escrito um livro de poesias.

04 – O autor faz parte da situação narrada ou está como observador, de fora?

      Ele é narrador-personagem, pois ele participa da história e a conta na 1ª pessoa.

05 – Explique o período a seguir, tendo em vista o assunto tratado no texto: “Meu crédito diminui sensivelmente a seus olhos”.

      Significa que a boa reputação de leitor do narrador diminuiu bastante diante do carteiro Teodorico.

06 – No trecho: “Teodorico, você está esticando demais seu pensamento”, a expressão em destaque pode ser interpretado como:

      Ele está querendo muitas explicações sobre o porquê do autor não ler os livros.

07 – Ao longo do texto, percebemos que o narrador e o carteiro possuem posturas diferentes quanto à leitura de livros.

a)   Retire do texto um argumento utilizado pelo narrador na tentativa de convencer Teodorico de que mesmo que não se leia completamente um livro a experiência da escrita e válida.

O narrador argumenta que quem escreveu o texto teve satisfação em escrever, esvaziou a alma, lavou o espírito. Isso demonstra que, mesmo que ninguém o leia, vale a pena escrever o livro.

b)   Agora retire do texto um contra argumento utilizado por Teodorico que se opõe a ideia do narrador.

Teodorico pensa que tudo no mundo é encadeado, uma coisa não acontece ou acaba sozinha. Portanto, se uma pessoa escreve um livro deve haver outra que o leia.

c)   Após analisar os argumentos de ambas partes, dê sua opinião. Qual argumento você considerou o mais coerente e convincente? Explique sua resposta.

Resposta pessoal do aluno.

08 – Segundo o autor, uma pessoa só escreve para se lida? Explique.

      Não. Escreve para esvaziar a alma.

09 – Identifique algumas características do gênero crônica presentes no texto.

      - Narrativa curta;

      - Poucos personagens;

      - Fatos da vida cotidiana;

      - Linguagem simples, coloquial.

10 – O autor, para reforçar sua tese em relação à leitura dos livros que recebe, compara a leitura dos livros com a do jornal. Identifique o argumento utilizado na comparação.

      “-- Mas, Teodorico, quando você compra um jornal se sente obrigado a ler tudo que está nele?

        -- Aí é diferente. Eu compro o jornal para ver os crimes, o resultado do seu-talão-vale-um-milhão etc. Leio aquilo que me interessa.

        -- Eu também leio aquilo que me interessa.”

 

 

 

 


CRÔNICA: TER OU NÃO TER NAMORADO, EIS A QUESTÃO - ARTUR DA TÁVOLA - COM GABARITO

Crônica: Ter ou não ter namorado, eis a questão

                   Artur da Távola

     Quem não tem namorado é alguém que tirou férias não remuneradas de si mesmo. Namorado é a mais difícil das conquistas. Difícil porque namorado de verdade é muito raro. Necessita de adivinhação, de pele, saliva, lágrima, nuvem, quindim, brisa ou filosofia. Paquera, gabira, flerte, caso, transa, envolvimento, até paixão é fácil. Mas namorado mesmo é muito difícil.

    Namorado não precisa ser o mais bonito, mas ser aquele a quem se quer proteger e quando se chega ao lado dele a gente treme, sua frio, e quase desmaia pedindo proteção. A proteção dele não precisa ser parruda ou bandoleira: basta um olhar de compreensão ou mesmo de aflição.

        Quem não tem namorado não é quem não tem amor: é quem não sabe o gosto de namorar. Se você tem três pretendentes, dois paqueras, um envolvimento, dois amantes e um esposo; mesmo assim pode não ter nenhum namorado. Não tem namorado quem não sabe o gosto da chuva, cinema, sessão das duas, medo do pai, sanduíche da padaria ou drible no trabalho.

        Não tem namorado quem transa sem carinho, quem se acaricia sem vontade de virar lagartixa e quem ama sem alegria.

        Não tem namorado quem faz pactos de amor apenas com a infelicidade. Namorar é fazer pactos com a felicidade, ainda que rápida, escondida, fugidia ou impossível de curar.

        Não tem namorado quem não sabe dar o valor de mãos dadas, de carinho escondido na hora que passa o filme, da flor catada no muro e entregue de repente, de poesia de Fernando Pessoa, Vinícius de Moraes ou Chico Buarque, lida bem devagar, de gargalhada quando fala junto ou descobre a meia rasgada, de ânsia enorme de viajar junto para a Escócia, ou mesmo de metrô, bonde, nuvem, cavalo, tapete mágico ou foguete interplanetário.

        Não tem namorado quem não gosta de dormir, fazer sesta abraçado, fazer compra junto. Não tem namorado quem não gosta de falar do próprio amor nem de ficar horas e horas olhando o mistério do outro dentro dos olhos dele; abobalhados de alegria pela lucidez do amor.

        Não tem namorado quem não redescobre a criança e a do amado e vai com ela a parques, fliperamas, beira d’água, show do Milton Nascimento, bosques enluarados, ruas de sonhos ou musical da Metro.

        Não tem namorado quem não tem música secreta com ele, quem não dedica livros, quem não recorta artigos, quem não se chateia com o fato de seu bem ser paquerado. Não tem namorado quem ama sem gostar; quem gosta sem curtir quem curte sem aprofundar. Não tem namorado quem nunca sentiu o gosto de ser lembrado de repente no fim de semana, na madrugada ou meio-dia do dia de sol em plena praia cheia de rivais.

        Não tem namorado quem ama sem se dedicar, quem namora sem brincar, quem vive cheio de obrigações; quem faz sexo sem esperar o outro ir junto com ele.

        Não tem namorado quem confunde solidão com ficar sozinho e em paz. Não tem namorado quem não fala sozinho, não ri de si mesmo e quem tem medo de ser afetivo.

        Se você não tem namorado porque não descobriu que o amor é alegre e você vive pesando 200Kg de grilos e de medos. Ponha a saia mais leve, aquela de chita, e passeie de mãos dadas com o ar. Enfeite-se com margaridas e ternuras e escove a alma com leves fricções de esperança. De alma escovada e coração estouvado, saia do quintal de si mesma e descubra o próprio jardim.

        Acorde com gosto de caqui e sorria lírios para quem passe debaixo de sua janela. Ponha intenção de quermesse em seus olhos e beba licor de contos de fada. Ande como se o chão estivesse repleto de sons de flauta e do céu descesse uma névoa de borboletas, cada qual trazendo uma pérola falante a dizer frases sutis e palavras de galanteio.

        Se você não tem namorado é porque não enlouqueceu aquele pouquinho necessário para fazer a vida parar e, de repente, parecer que faz sentido.

                  (Artur da Távola. In: Joaquim Ferreira dos Santos (Org.) As cem melhores crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007, p. 244-245.)

Entendendo a crônica:

01 – Para o autor, só sabe o que é namorar quem:

a)   Cultiva o hábito de fazer poesia.

b)   Entra em sintonia com o outro no plano das sensações.

c)   Distingue o que é concreto do que é abstrato.

d)   Vivencia as sensações do amor sem se entregar.

e)   Sabe teorizar sobre os seus sentimentos.

02 – “Enlou-cresça”. O neologismo em questão sintetiza o seguinte pensamento:

a)   Só é possível crescer se a vida não fizer nenhum sentido.

b)   O sentido da vida se constrói a partir do crescimento intelectual.

c)   O crescimento e loucura são considerados processos incompatíveis.

d)   O sentido da vida se dá pela tensão entre crescimento e loucura.

e)   O sentido da vida é construído por meio da loucura.

03 – Em: “... mas aquele a quem se quer proteger e quando se chega ao lodo dele a gente treme...”, a conjunção destacada pode ser substituída, sem alteração de sentido, por:

a)   Se, já que impõem uma condição para a relação amorosa.

b)   Pois, já que introduziu uma justificativa para a emoção do ser amoroso.

c)   Logo, já que o período demonstra a determinação do ser amoroso.

d)   Entretanto, já que o período mostra uma incoerência do ser amoroso.

e)   Como, já que introduz a descrição do comportamento do ser amoroso.

04 – “Se você tem três pretendentes, dois paqueras, um envolvimento e dois amantes, mesmo assim pode não ter namorado”. Segundo as ideias do autor, sobre os termos destacados, não se pode afirmar que:

a)   Os quatro primeiros opõem-se, em significado, ao último.

b)   São vocábulos diferentes para a mesma significação.

c)   Exercem funções sintáticas distintas, de acordo com a posição.

d)   São utilizados por grupos sociais distintos para definir “namorado”.

e)   O último relaciona-se com o verbo da segunda oração na função de sujeito.

05 – No sexto parágrafo, a sequência de formas verbais, no Imperativo, denota um(a):

a)   Treinamento.

b)   Aconselhamento.

c)   Ordem.

d)   Solicitação.

e)   Ponderação.

06 – “Se você não tem um namorado é porque ainda não enlouqueceu aquele pouquinho necessário...”. Com o emprego do vocábulo destacado, neste contexto, o narrador sugere que:

a)   No momento, ele está imaturo para amar.

b)   Algumas pessoas não merecem ser amadas.

c)   Qualquer leitor(a) pode vir a ter um namorado.

d)   Todos os momentos da vida são propícios ao amor.

e)   No momento, o leitor(a) não está preparado(a) para namorar.

07 – Marque a alternativa em que a ocorrência da preposição destacada não apresenta valor gramatical.

a)   “... basta um olhar de compreensão...”.

b)   “A proteção dele não precisa...”.

c)   “... mistério do outro dentro dos olhos dele...”.

d)   “... pela lucidez do amor”.

e)   “... ruas de sonho...”.

08 – Em que alternativa um dos termos, se apresenta sintaticamente diferente dos demais?

a)   “... basta um olhar de compreensão ou mesmo de aflição”.

b)   “Não tem namorado quem não gosta de dormir...”.

c)   “... alguém que tirou férias não remuneradas...”.

d)   “... redescobre a criança própria...”.

e)   “... namorado de verdade é muito raro”.

09 – No trecho: “Quem não tem namorado é alguém que tirou férias remuneradas de si mesmo”, o sentido da expressão em destaque só não se aplica a:

a)   Privar-se de férias não pagas.

b)   Abdicar gratuitamente de si mesmo.

c)   Renunciar em vão a si mesmo.

d)   Despojar-se inutilmente de si mesmo.

e)   Esvaziar-se a troco de nada.

10 – De acordo com o texto, para conseguir namorar alguém, é necessário:

a)   Pedir autorização aos pais.

b)   Fazer pactos de amor com a infelicidade.

c)   Temer o afeto e o carinho.

d)   Escovar a alma de leve fricções de esperança e abrir o coração.

e)   Esquecer-se da sua criança própria.

11 – O trecho: “Não tem namorado quem não sabe o gosto da chuva, cinema sessão das duas, medo do pai, sanduíche de padaria ou drible no trabalho”, aponta um indício para dizer que ter namorado é:

a)   Em tempo algum ter lanchado na padaria.

b)   Jamais ter temido o pai.

c)   Nunca ter ido ao cinema à tarde.

d)   Não ter tomado chuva.

e)   “Decretar feriado” por conta própria.

12 – Em: “Namorar é fazer pactos com a felicidade, ainda que rápida, escondida, fugida ou impossível de curar”, o conectivo em destaque expressa ideia de:

a)   Condição.

b)   Concessão.

c)   Comparação.

d)   Causa.

e)   Consequência.

13 – Em: “Não tem namorado quem não redescobre a criança própria e a do amado e sai com ela para parques (...)”, as palavras sublinhadas no período referem-se ao antecedente:

a)   “Mistério”.

b)   “Criança”.

c)   “Namorado”.

d)   “Amado”.

e)   “Parques”.

14 – No trecho: “Se você ainda não tem namorado, é porque ainda não enlouqueceu aquele pouquinho necessário a fazer a vida parar e de repente parecer que faz sentido”, a “loucura” é associada a:

a)   Paixão.

b)   Coragem.

c)   Esquisitice.

d)   Desequilíbrio.

e)   Alegria.