Conto: Por
que não?
Edson Gabriel Garcia
-- Vamos
sair, Salsichão?
-- Não, não
quero.
-- Um dia você acorda e vai perceber
que não é mais gente... que virou livro.
Esbocei, ameacei e segurei um sorriso.
-- Exagero.
-- Exagero meu!? Você passa a maior
parte do tempo metido no seu quarto, com seus livros, seus cadernos, suas
ideias, seus óculos, suas espinhas...
-- Eu gosto.
-- Só disso?
-- Não, claro que não.
-- Mas parece. Vista uma roupa mais
arejada, cara, e vamos sair.
-- Não, hoje não.
-- Cequisabe, Salsichão.
Meu nome não é Salsichão. É Paulo. Mas
também pudera, pareço mesmo mais um salsichão do que gente. E ainda por cima,
os óculos. Coitados dos óculos, não têm culpa; culpa têm meus olhos que gostam
tanto de ler e enxergam pouco. E, além dos óculos, as espinhas. Pode?! Pode.
Mas isso não me aborrece tanto quanto poderia aborrecer uma pessoa normal. Às
vezes, acho que eu não sou uma pessoa normal.
-- Paulo, sai um pouco.
-- Não quero, pai. Prefiro ficar em
casa.
-- Você acha normal um rapaz da sua
idade passar a maior parte do tempo disponível dentro de casa, no meio dos
livros, dos cadernos...?
-- Bem... não sei o que você acha que é
normal ou anormal... Normal pra mim é ter uma preferência... Posso?
-- Claro... claro. Não quis dizer isso.
Eu sei, cada um tem sua preferência, seu prazer... mas eu acho que falta alguma
coisa pra você.
-- Você sabe que não falta. Tenho
vocês, tenho amigos, livros e tenho...
-- Suas poesias!
-- É. Tenho minhas poesias.
Meu pai desistiu de continuar a
conversa. É quase sempre assim. A gente engata um papo, com ele dá pra conversar
tranquilamente, mas quando toco no assunto das minhas poesias tudo acaba sem
meias palavras. Por que será? Ninguém me responde. Tá na cara que sou poeta
menor, sem talento, desajeitado com as palavras. Mas e daí? Poeta nasce feito?
Poesia não dá dinheiro? Poesia não dá camisa pra ninguém, como dizem todos que
eu conheço e que não gostam de poesia?
-- Você ainda perde tempo com isso,
Salsichão?
-- Com isso o quê?
-- Poesia.
-- Não sei se perco tempo... Uso parte
do tempo rabiscando versos, pensando palavras, ideias, talhando estrofes...
-- Chiiii... Vai mal.
-- Não se preocupe: palavras não
mordem. Até já disseram uma vez que literatura não derruba governo.
-- Governo aqui, ninguém derruba... Quando
cai, cai sozinho...
-- Pois é. Por que o medo da poesia?
-- Não é medo, Salsichão! Ê... que é
isso? Tô achando é meio sem graça ficar o tempo todo mexendo com essa coisa de
fazer verso, rima. Parece coisa de...
-- ... de quê?!
-- Coisa de menina apaixonada!
Por falar em menina apaixonada, eu
andei fazendo uns versos românticos, umas estrofes meio desmanchadas... até
estranhei um pouco esse meu lado. Bom... também não é só porque faço versos de
protesto que nunca vou arriscar um chorinho carinhoso. Não mostrei pra ninguém.
Me lembrei de uma vez em que eu estava na praia e li, no muro de uma casa
qualquer, uma pichação que fazia um jogo com as palavras “éter”, “eterna”,
“mente” e “eternamente”. Eu emendei de primeira, costurei aqui e ali, até sair
alguma coisa razoável. Quando terminar, vou mostra-la pros meus amigos. Vale a
pena. Principalmente porque esses bocós pensam que eu não tenho olhos pra
meninas. Mal sabem eles que pra elas eu tenho olhos, coração e versos. Nada
mau, hein?
[...] O tempo passou um pouco depressa.
Tão ou mais depressa que o tempo de escrever duas linhas, de ler três versos.
Eu continuo com a poesia. Inda agora há pouco, terminei uma que diz:
“Só
à noite
O
telefone louco
Não
para um pouco.
Chama
insistente
E
eu digo alô
Para
alguém silente.
Mas
sei que é você,
Sabe
por quê?
Seu
perfume danado
Escapa
de seu corpo
E
corre apressado
Trazendo
notícia
De
um coração
Que
bate acelerado.”
Fiz para Ciça, de novo. Ando com ela no
coração e a poesia no bolso. Pra todo mundo ver, mesmo que ela, Ciça, não
entenda. Não precisa entender, basta gostar.
-- Outra poesia pra mim, Salsichão?
-- Mais ou menos. Quer ver?
-- Quero.
-- Gostou?
-- Gostei. Parece mesmo que leva
jeito... poeta!
No peito a alegria explode, o verso
toma conta de tudo. A poesia derrama emoção na minha certeza: nunca mais paro
de fazer poesia.
GARCIA, Edson Gabriel.
Cochichos e sussurros; conto. São Paulo, Atual, 1988. p. 54-9.
Entendendo o conto:
01 – Qual o significado das
palavras abaixo, se necessário utilize o dicionário?
·
Cequisabe: você é
quem sabe.
·
Talhando: esculpindo,
moldando.
·
Versos de protesto: versos
que protestam contra injustiças sociais.
·
Éter: composto
químico, espaço celeste.
02 – No primeiro bloco do
texto lido, há um diálogo entre Paulo e alguém da intimidade dele (amigo ou
irmão). Que indícios nos revelam essa proximidade?
O interlocutor de
Paulo critica-o por passar a maior parte do tempo metido no quarto, com seus
livros e cadernos, fazendo referência a seus óculos e suas espinhas, trata-o
por “cara”, chama-o pelo apelido e o convida para saírem juntos.
03 – Que expressão Paulo usa
para dizer que gosta muito de ler?
“... meus olhos que gostam tanto de
ler...”
04 – Paulo se sente uma
pessoa normal?
Sim, mas às vezes
desconfia não ser normal pelo fato de as pessoas questionarem seu gosto por
livros.
05 – No terceiro bloco de
diálogos alguém diz a Paulo que fazer poesia é perder tempo. Ele concorda com
isso? Qual é a resposta dele?
Paulo não
concorda muito com isso, e diz que usa “parte do tempo rabiscando versos,
pensando palavras, ideias, talhando estrofes...”
06 – Vamos ver se você se
lembra do que já viu sobre poema.
a)
Paulo afirma que rabisca versos. Que é verso?
É cada uma das linhas de um poema.
b)
Diz que talha estrofes. Que é estrofe?
É um grupo de versos.
07 – Explique o que o
narrador quer dizer com as expressões:
a)
“Andei fazendo [...] umas estrofes meio
desmanchadas”.
Andei fazendo umas estrofes excessivamente românticas, apaixonadas.
b)
“Pensam que eu não tenho olhos pras meninas”.
Pensam que eu não observo, não presto atenção às meninas.
08 – Uma importante
característica da linguagem poética é ser repleta de significações, isto é, pode
provocar no leitor emoções totalmente novas. Na pichação que impressionou
Paulo, que palavras estavam contidas em “eternamente”?
“Éter”, “eterna”,
“mente”.
09 – A capacidade de
reinventar a língua empregada no dia-a-dia, de criar novas imagens com maior
poder de expressão, é uma característica importante da linguagem poética.
Encontre no poema que Paulo escreve para Ciça exemplos desse recurso e explique
qual a “liberdade” que o poeta se permitiu. Nós damos o primeiro exemplo e você
continua:
Na
linguagem poética
- Na
linguagem usual
Telefone louco - Só pessoas ou
animais podem
ficar loucos.
Perfume corre apressado -
Perfume não corre nem
tem pressa.
Perfume trazendo
notícia - Perfume não
traz notícia.