Conto: Maria Angula
Jorge Renan de la Torre
(Equador)
Maria Angula era uma menina alegre e
viva, filha de um fazendeiro de Cayambe. Era louca por uma fofoca e vivia
fazendo intrigas com os amigos para jogá-los uns contra os outros. Por isso
tinha fama de leva-e-traz, linguaruda, e era chamada de moleca fofoqueira.
Assim viveu Maria Angula até os
dezesseis anos, dedicada a armar confusão entre os vizinhos, sem ter tempo para
aprender a cuidar da casa e a preparar pratos saborosos.
Quando Maria Angula se casou começaram seus
problemas. No primeiro dia, o marido pediu-lhe que fizesse uma sopa de pão com
miúdos, mas ela não tinha a menor ideia de como prepará-la.
Queimando as mãos com uma mecha
embebida em gordura, ascendeu o carvão e levou ao fogo um caldeirão com água,
sal e colorau, mas não conseguiu sair disso: não fazia ideia de como continuar.
Maria lembrou-se então de que na casa
vizinha morava dona Mercedes, cozinheira de mão-cheia, e, sem pensar duas vezes,
correu até lá.
-- Minha cara vizinha, por acaso a senhora
sabe fazer sopa de pão com miúdos?
-- Claro, dona Maria. É assim: primeiro
coloca-se o pão de molho em uma xícara de leite, depois despeja-se este pão no
cavalo e, antes que ferva, acrescentam-se os miúdos.
-- Só isso?
-- Só, vizinha.
-- Ah – disse Maria Angula – mas isso
eu já sabia!
-- E voou para sua cozinha a fim de não
esquecer a receita.
No dia seguinte, como o marido lhe
pediu que fizesse um ensopado de batatas com toicinho, a história se repetiu:
-- Dona Mercedes, a senhora sabe como
se faz o ensopado de batatas com toicinho?
E como da outra vez, tão logo a sua boa
amiga lhe deu todas as explicações, Maria Angula exclamou:
-- Ah! É só? Mas isso eu já sabia! – E correu
imediatamente para a casa a fim de prepará-lo.
Como isso acontecia todas as manhãs,
dona Mercedes acabou se enfezando. Maria Angula vinha sempre com a mesma
história: "Ah é assim que se faz o arroz com carneiro? Mas isso eu já
sabia! Ah, é assim que se prepara a dobradinha? Mas isso eu já sabia!" Por
isso a mulher decidiu dar-lhe uma lição e, no dia seguinte...
-- Dona Mercedinha!
-- O que deseja, Dona Maria?
-- Nada, querida. Só que o meu marido
quer comer no jantar caldo de tripas e bucho e eu...
-- Ah! Mas isso é fácil demais! – Disse
dona Mercedes. E antes que Maria Angula a interrompesse, continuou:
-- Veja: vá ao cemitério levando um
facão bem afiado. Depois espere chegar o último defunto do dia, e sem que
ninguém a veja, retire as tripas e o estômago dele. Ao chegar em casa, lave-os
muito bem e cozinhe-os com água, sal e cebolas. Depois que ferver uns dez
minutos, acrescente alguns grãos de amendoim e está pronto. É o prato mais
saboroso que existe.
-- Ah! – disse como Maria Angula – É só?
Mas isso eu já sabia!
E, num piscar de olhos, estava ela no
cemitério, esperando pela chegada do defunto mais fresquinho. Quando já não
havia mais ninguém por perto, dirigiu-se em silêncio à tumba escolhida. Tirou a
terra que cobria o caixão, levantou a tampa e... Ali estava o pavoroso
semblante do defunto! Teve ímpetos de fugir, mas o próprio medo a deteve ali.
Tremendo dos pés à cabeça, pegou o facão e cravou-o uma, duas, três vezes na
barriga do finado e, com desespero, arrancou-lhe as tripas e o estômago. Então
voltou correndo para casa. Logo que conseguiu recuperar a calma, preparou a
janta macabra que, sem saber, o marido comeu lambendo os beiços.
Nessa mesma noite, enquanto Maria
Angula e o marido dormiam, escutaram-se uns gemidos nas redondezas.
Ela acordou sobressaltada. O vento
zumbia misteriosamente nas janelas, sacudindo-as, e de fora vinham uns ruídos
muito estranhos, de meter medo a qualquer um.
De súbito, Maria Angula começou a ouvir
um rangido nas escadas. Eram os passos de alguém que subia em direção ao seu
quarto, com um andar dificultoso e retumbante, e que se deteve diante da porta.
Fez-se um minuto eterno de silêncio e logo depois Maria Angula viu o resplendor
fosforescente de um fantasma. Um grito surdo e prolongado paralisou-a.
-- Maria Angula, devolva minhas tripas
e o meu estômago, que você roubou da santa sepultura!
Maria Angula sentou-se na cama,
horrorizada, e, com os olhos esbugalhados de tanto medo, viu a porta se abrir,
empurrada lentamente por essa figura luminosa e descarnada.
A mulher perdeu a fala. Ali, diante
dela, estava o defunto, que avançava mostrando-lhe o seu semblante rígido e o
seu ventre esvaziado.
-- Maria Angula, devolva as minhas
tripas e o meu estômago, que você roubou da minha santa sepultura!
Aterrorizada, escondeu-se debaixo das
cobertas para não vê-lo, mas imediatamente sentiu umas mãos frias e ossudas
puxarem-na pelas pernas e arrastarem-na gritando:
-- Maria Angula, devolva as minhas
tripas e o meu estômago, que você roubou da minha santa sepultura!
Quando Manuel acordou, não encontrou
mais a esposa e, muito embora tenha procurado por ela em toda parte, jamais
soube do seu paradeiro.
TORRE, Jorge Renán de la. Trad. Maria
Angula.
In: Contos de
assombração. São Paulo, Ática, 1987. p. 33-40.
Entendendo o conto:
01 – Quem é o personagem
principal da história? Como ele é apresentado no início do texto?
Maria Angula. É
uma garota fofoqueira, que gosta de provocar as pessoas e de arrumar confusão.
02 – Durante a narrativa,
Maria Angula enfrenta um problema. Qual é ele? Como ela o resolve?
Ela não sabe preparar
os pratos pedidos pelo marido. Ela pede ajuda para vizinha, dona Mercedes.
03 – De que forma Maria Angula reage após a ajuda que recebe da vizinha?
Ela não se mostra
agradecida pelas receitas recebidas, chegando mesmo a ser antipática com a vizinha.
04 – Qual o significado das
palavras abaixo, se necessário utilize-se de um dicionário.
·
Intriga: mexerico,
traição.
·
Miúdos: entranhas de
animais (coração, fígado, etc.).
·
Tumba: túmulo.
·
Ímpetos: impulsos
instantâneos.
·
Deteve: segurou.
·
Macabra: fúnebre,
tétrica.
·
Sobressaltada: assustada.
·
Retumbante: barulhento.
·
Resplendor: brilho
intenso.
05 – Que atitude dona
Mercedes toma diante do pouco-caso de Maria Angula? Por que age assim?
Ela resolve dar
uma receita macabra para Maria Angula. Seu objetivo era vingar-se da vizinha,
fazendo com que ela passasse por boba.
06 – O que Maria Angula
devia fazer para preparar o caldo de tripas e bucho?
Ela devia ir ao
cemitério e retirar do defunto mais fresco suas tripas e seu estômago. Depois
cozinhar tudo com água, sal e cebola e acrescentar amendoins.
07 – O que ocorreu na noite
em que Maria Angula preparou o macabro jantar para seu marido?
O defunto foi até
a casa de Maria Angula em busca de suas tripas e de seu estômago e ela
desapareceu para sempre.
08 – Selecione uma passagem
do texto que demonstre ser esta uma narrativa fantástica.
Resposta pessoal
do aluno. Sugestão: “Fez-se um minuto eterno de silêncio e logo depois Maria Angula viu o resplendor fosforescente de um fantasma.”