quarta-feira, 22 de novembro de 2023

CONTO: DUBLÊ DE OGUM! CIDINHA DA SILVA - COM GABARITO

 Conto: Dublê de Ogum!

           Cidinha da Silva

        Tudo começou com uma brincadeira quando ele ainda era criança. O menino subia na cisterna com a capa de prata colada ao pescoço, espada de plástico azul em punho e gritava: pelos poderes de Graiscow. Depois pulava no chão fingindo voar. A família preocupava-se porque ele já era um moço com sombra de bigode e não abandonava o brinquedo infantil, mesmo que o desenho-animado não passasse mais na TV. Às vezes ficava emburrado, pensativo. A mãe atribuía o fato ao fim do seriado.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiVE9aEqZQHjJoE44-_r5r2Az2M3UGVGVO_oL0eTrWgX0EwUSFFaSGF_llw9X9636oytGJ0l232W5a8-FLCCAsTcvkKX0jR-bnqtn3M9UM1FdBOHVX1bdptxSjZWRGAa9tz3LsbnbPEEf3-jNUhNm6rX3Sxr1fB_6CQELAxKQ4kjPy27tngkIXWR9mBEHQ/s320/ESPADA.jpg


        Aos treze, completados em 24 de abril, muniu-se da capa e da espada e parou no portão da casa, de braços cruzados, olhar muito firme. Assim ficou por longos minutos. A avó que morava na casa de cima, disse que aquilo já passava dos limites e deveriam levá-lo a um psiquiatra. Levaram. A gota d’água para tomar tão difícil e dolorosa decisão familiar foi o dia em que o menino enfrentou um cachorro com sua espada de plástico, dizendo coisas esquisitas: “Não ouse me enfrentar, levantar a cabeça ou os olhos para me ver que sua cabeça rolará serra abaixo”.

        Marcaram a consulta com uma psiquiatra. A avó foi junto. Primeiro a médica explicou às duas mulheres como trabalhava. Disse que não existiam loucos, mas pessoas inadaptadas ao mundo em que viviam, em sofrimento mental ou espiritual. Em alguns casos havia pessoas com deficiência de certas substâncias ou excesso de outras no organismo, coisa que a medicina ortomolecular já estava tratando. O importante era ter abertura para entrar no mundo da pessoa afetada e procurar compreendê-la, sem julgamentos. Alertou também que trabalhava com os sonhos e como se tratava de um adolescente, a família precisaria concordar em participar do tratamento.

        A avó olhou para a filha, achou tudo muito estranho, principalmente o negócio dos sonhos, mas se era para o bem do menino, concordava. Como nos casos de decisões mais sérias, quem tomava a frente era a avó, estava todo mundo de acordo, leia-se, a mãe, pois o pai, sempre embriagado e ausente, nem via o que se passava.

        O menino contou um dos sonhos. Ele se vestia como o Homem de Ferro, personagem dos quadrinhos, e uma matilha de cães o atacava. Ele desembainhava a espada e cortava a cabeça de todos, um por um. Tomado por ira terrível, cortava também a cabeça dos passantes que o observavam e não lhe rendiam graças.

        Em outro, ele morava em país distante, onde todo mundo era preto e ele também. Vivia no coração da montanha mais alta e os moradores avisavam aos estrangeiros que aquela era a casa de um homem jovem, muito grande e muito forte, ferreiro de profissão. O trabalho na forja só era interrompido quando alguém subia a montanha. Ele se dirigia ao incauto e dizia: “O que te traz aqui, viajante? Por que tomaste minha estrada?” Alguns respondiam que andavam a esmo, a procura de um caminho; outros ouviram dizer que se rogassem a ele, o guardião da montanha e da forja, seus caminhos seriam abertos. Ele ria jocoso e indagava: “Como posso te abrir os caminhos se não tens um rumo a seguir?” E então explicava: “Embora aches que me procuras, buscas a ti mesmo e não te faltarei. Mas o caminho deverá ser feito por ti. Posso te conduzir em meus braços, mas a travessia será tua.” “E se eu não quiser, posso desistir?” Ele ri, dessa vez um riso estrondoso, de desdém e malícia. “Não há escolha, humano tolo e incrédulo. Quem chega até aqui é obrigado a atravessar.” “Você me chamou de humano. Você, por acaso, não é gente?”  “Não despeje mais tolice do que tua cabeça comporta. Tu vieste aqui para conhecer os teus mistérios, os meus, não te é dado saber. Prepara-te, pois vais atravessar a montanha comigo.”

        E cada pessoa que chegava a esse momento, não continha um grito de horror quando via o abismo de cerca de dois metros de largura que separava os dois lados da montanha. Como atravessar aquilo? Aquele homem sozinho até poderia fazê-lo, mas como atravessar com alguém no colo?

        Alheio às conjecturas dos viajantes o homem se concentra diante do fogo. Retira a espada da forja, mira o horizonte, corta para a direita, para o centro e para a esquerda. Coloca-a acima da cabeça, amparada pelas duas mãos, deposita-a novamente na forja. Ajoelha-se no chão, parece fazer uma prece. Abre os braços e diz palavras desconhecidas. Toma a espada outra vez e ordena ao homem que o aguarda: “Siga-me, viajante!” “Para onde?” Ele pensa. “Para o abismo?” Pergunta-se o que fora fazer ali, despede-se da vida, pois é certo que vai morrer. E se fugisse?  Impossível, conclui. O homem da espada era um potente guerreiro de um lugar chamado Ifé e o alcançaria em poucos passos. Isso se não o transformasse em pedra, bicho ou grão, por meio de algum raio, ou coisa que o valha. Poderia cortar-lhe a cabeça com a espada. Não, era mais prudente esperar a morte certeira no abismo.

        O ferreiro, muito sério e determinado, chega a menos de um metro do buraco fundo que separa os dois lados da montanha e chama o homem: “Venha, é chegada a tua hora”. Finca a espada na pedra e pega o homem de oitenta quilos em seu colo. Ele se agarra ao pescoço do ferreiro como um bebê. O ferreiro retira a espada do chão, ergue-a para o céu, flexiona os joelhos e voa para a outra margem. O homem, quando abre os olhos, já está em terra, na margem oposta. O ferreiro dá outra ordem: “Siga por aquela estrada e encontrarás o caminho! Não olhe para trás.” “Não entendo, a estrada não é o caminho de volta?” O ferreiro ri e diz que sua parte está feita.

         A médica impressiona-se com a riqueza de detalhes dos sonhos do garoto e pergunta o que eles despertam nele. O garoto diz sentir-se aquele homem, o que corta as cabeças, é de ferro e voa com uma espada na mão. Um dublê de Ogum, ela intui.

Cidinha da Silva. Do livro Cada tridente em seu lugar, de 2006.

Entendendo o conto:

01 – Qual é a idade do protagonista quando a história começa?

      Ele é descrito como um moço com sombra de bigode, indicando que já não é mais uma criança, mas não é especificada uma idade exata.

02 – O que levou a família a considerar levá-lo a um psiquiatra?

      O comportamento do menino, que incluía agir como o personagem de um desenho animado e enfrentar um cachorro com uma espada de plástico enquanto dizia coisas estranhas.

03 – Qual foi o conteúdo de um dos sonhos compartilhados pelo menino durante a consulta com a psiquiatra?

      Ele sonhou que se vestia como o Homem de Ferro e enfrentava uma matilha de cães, cortando suas cabeças. Além disso, ele também cortava as cabeças de passantes que o observavam.

04 – Qual é a reação das pessoas que encontram o homem jovem que vive na montanha em outro sonho do protagonista?

      Elas expressam horror ao se depararem com o abismo que separa os lados da montanha e questionam como seria possível atravessá-lo.

05 – O que o ferreiro faz para atravessar o abismo na história do sonho?

      Ele usa sua espada, realiza movimentos específicos com ela e, depois, carrega o homem do outro lado, voando com ele.

06 – O que é sugerido sobre o protagonista pelo final do conto?

      Ele se identifica com o homem do sonho, aquele que corta cabeças, se sente como o Homem de Ferro e é intuído como um "dublê de Ogum" pela psiquiatra.

07 – Como a família reage à sugestão da psiquiatra sobre o tratamento do menino?

      A avó concorda com o tratamento, enquanto a mãe parece estar de acordo, mas o pai, ausente e embriagado, não parece envolvido na decisão.

08 – Que explicação a psiquiatra dá sobre pessoas que são consideradas "loucas"?

      Ela afirma que não existem loucos, apenas pessoas que podem ser inadaptadas ao mundo em que vivem, sofrendo mental ou espiritualmente. Ela também menciona a possibilidade de desequilíbrios bioquímicos tratáveis pela medicina ortomolecular.

09 – Qual é o papel da avó na tomada de decisões sérias na família?

      Ela costuma liderar as decisões mais sérias, como no caso do tratamento do menino, quando todos concordam (incluindo a mãe, com a ausência do pai).

10 – O que os sonhos detalhados revelam sobre a experiência do protagonista e como ele se sente em relação a eles?

      Os sonhos detalhados revelam uma sensação de identidade e poder para o protagonista. Ele se sente conectado aos personagens dos sonhos, expressando emoções intensas e assumindo papéis de força e domínio.

 

 

CONTO: ERA NO PARAÍSO... MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: Era no Paraíso...

            Monteiro Lobato

        Era no paraíso e Deus estava contente. Tinha criado a luz, as estrelas, o ar, a água e por fim criou a Vida, semeando-a sob milhares de formas por cima da terra fresquinha e nua. E esfervilhou de viventes o orbe, aqui bactéria e mastodonte, ali musgo e baobá, além craca e baleia — a suma variedade de aspectos dentro da perfeita unidade de plano.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEikqTrOolughSvjICLIVZ9sRfBoHtVXHho3sZyhK8AmIkq-_IuWjunpK1ZdFqz6Y-NXYyFZ8L6if7OQqAPilM6ree6B_NeCh6TThI576ZWtp2hiA6a_3ImIxbHMgUdaeXS5SiuIpQnI-51xZuHapZrJs1eEcOHvFNN5vtaYorz8GgwnhJQwkNffcvUPCaM/s320/MUNDO.JPG


        E Deus, que achara aquilo bom, deliberou consolidar sua obra de vida per secula seculorum com o invento da Fome e do Amor, dois apetites tremendos engastados no âmago das criaturas à guisa de moto-contínuo da Perpetuação. E cofiando a imensa barba branca, velha como o Tempo, lançou a palavra mágica que tudo move e tudo explica:

        — Comei-vos uns aos outros e nos intervalos amai!

        Em seguida elaborou para regência da animalidade o Código da Sabedoria Ingênita.

        Não deu esse nome ao Código, visto como, no começo, não existindo homem, não existiam nomes.

        — Não existindo homens?...

        Sim, o homem não estava nos planos do Criador. Esta revelação mirífica, que ainda há de roer pelos alicerces as caducas verdades oficiais (e talvez me conquiste o prêmio Nobel), está ansiosinha por me fugir da pena. Que fuja, que se espoje no espírito do leitor. Adeus, filha!...

        Não era escrito esse Código. Lei escrita vale por pura invenção humana — donde a rapidez com que envelhecem os códigos humanos e as humanas leis. Escrever é fixar e fixar é matar. Perpétuo movimento, a vida é infixa. Entretanto, se o não escreveu, foi além Jeová: impregnou com ele cada uma das criaturas recém-formadas, de modo que ao nascer já viessem ricas da sabedoria infusa e agissem automaticamente de acordo com os imutáveis preceitos da lei natural. 

        Este saber sem aprender receberia do homem o nome de Intuição, assim como o Código Ingênito receberia o nome de Instinto. Os futuros homens se caracterizariam pelo vezo de dar nome às coisas, gozando-se da fama de sábios os que com maior entono e mais pomposamente as nomeassem. Grande doutor, o que tomasse o pulso a um doente, lhe espiasse a língua e gravibundo dissesse, tirando do nariz os óculos de ouro: polinevrite metabólica; e, grande mestre, o que apontasse o dedo para um grupo de estrelas e declarasse com voz firme: constelação do Centauro. Doença e estrelas, com ou sem nome, seguiriam o seu curso prefixo — mas nada de louvores ao médico que apenas dissesse: doença, ou ao mestre que humilde murmurasse: astros. Paga ou louvor não os teria o ignorante, isto é, o homem que não sabe nomes. Viva o nome!

        Assim, inoculou Deus em todos os seres a sabedoria da vida e pô-los no orbe como notas cromáticas do pot-pourri sinfônico de cuja audição integral somente os seus ouvidos gozariam o privilégio.

        E Deus achou que estava ótimo.

        Grandes coisas tinham feito. A gravitação dos mundos era jogo de movimentos que mais tarde derrubaria o queixo a Newton — mas não passava de mecânica pura.

        A concepção do éter, da luz, do calor, assombrosas invenções eram — mas mecânica fria.

        O bonito fora a criação da Vida, porque, obra de arte das mais autênticas, só ela dava medida completa dos imensos recursos do alto engenho de Deus.

        Quanta afinação no tumulto aparente! A bactéria às voltas com o mastodonte, o musgo em simbiose com o baobá, a craca aparasitada à baleia...

        Vida em vida, vida devorando vida, vida sobrepondo-se à vida, vida criando vida... O perpétuo ressoar dos uivos de cólera, berros de dor, guinchos de alegria, gemidos de gozo sonorizando o perpétuo agitar-se das formas — voo de ave, arranque de tigre, coleio de serpe, rabanar de peixe, tocaiar de sáurio...

        Tão pitoresca saiu a ópera VIDA que o Sumo Esteta a elegeu para recreio de sua Eterna Displicência. E, debruçado na amplidão, as longas barbas dispersas ao vento, o contemplativo Jeová antecipou a figura do sábio que no fundo dos laboratórios cisma sobre o microscópio.

        Ora, pois, certo dia de estuporante mormaço, um casal de chimpanzés dormitava beatificamente no esgalho de enorme embaúba. Digeriam as bananas comidas e prelibavam, risonhos, as bananas da manhã seguinte.

        Eram chimpanzés como os demais, sábios de sabedoria inculcada pelo Eterno, e bem-comportadinhas notas da ópera paradisíaca.

        Mas Éolo suspirou no seu antro e um forte pé de vento deu, que vascolejou com frenesi a árvore e fez o chimpanzé macho, perdido o equilíbrio, precipitar-se de ponta-cabeça ao chão.

        Seria aquilo um tombo como qualquer outro, sem consequências funestas, se a malícia da serpente não houvesse colocado ao pé da embaúba uma grande laje, na qual se chocou o crânio do infeliz desarvorado.

        Perdeu os sentidos o macaco; e a macaca, presa de grande aflição, pulou incontinenti a socorrê-lo. Rondou-lhe em torno aos guinchos, soprou-lhe nos olhos, amimou-o, beliscou-lhe as carnes insensíveis e, por fim, convencida de que estava bem morto, deu de ombros, já com a ideia na escolha de quem lhe consolasse a viuvez.

        Mas não morrera o raio do chimpanzé. Minutos depois entreabria os olhos, piscava sete vezes e levava as mãos à fronte, significando que lhe doía.

        Neste comenos funga no juncal próximo um tigre. Desde o Paraíso que os tigres “adoram” os macacos, como desde o Paraíso que os macacos arrenegam dos tigres. Em virtude de tal divergência, a fungadela felina valeu por frasco de amoníaco nas ventas do contuso. Pôs-se de pé, inda tonto e, ajudado da companheira, marinhou embaúba acima, rumo ao galho de pouso, onde, a bom recato, pudesse distrair a dor de cabeça com a linda cena que é um tigre faminto à caça de bicho que não seja chimpanzé.

        Desde essa desastrada queda nunca mais funcionou normalmente o cérebro do pobre macaco. Doíam-lhe os miolos, e ele queixava-se de vágados e de estranho mal-estar.

        É que sofrera seriíssima lesão.

        Digo isto porque sou homem e sei dar nomes aos bois; homem ignorante, porém, não vou mais longe, nem ponho nome grego à lesão. Afirmo apenas que era lesão, certo de que me entendem os meus incontáveis colegas em ignorância nomenclativa.

        Lesão grave, gravíssima, e de resultados imprevisíveis à própria presciência de Jeová.

        A Bíblia já tratou do assunto; de modo simbólico, entretanto, fugindo de tomar a Queda ao pé da letra. Moisés, redator do Gênesis, tinha veleidades poéticas — mas não previra Darwin, nem a força do prêmio Nobel como áureo pai de grandes descobertas. Moisés poetizou... Fez um Adão, uma Eva, uma serpente e um pomo, que certos exegetas declaram ser a maçã, e outros, a banana. Compôs assim uma peça com a mestria consciente de Edgar Poe ao carpinteirar O corvo, mas sem deixar, como Poe, um estudo da psicologia da composição, onde demonstrasse que fez aquilo por a + b e com bem estudada pontaria. E foi pena! Quanto papel, tinta e sangue tal esclarecimento não pouparia à humanidade, sempre rixenta na interpretação dos textos bíblicos!

        Vem daí que é o Gênesis uma peça de fina psicologia, e por igual penetrante nas cabeças duras e nas dos Pascais, permeabilíssimas; o que escasseia ao Gênesis é acordo com a verdade dos fatos. Essa verdade, mais preciosa que o diamante Cullinan, eu a achei sob o montão de cascalho das hipóteses e sem nenhum alarde aqui a estampo de graça. Já é ser generoso! Tenho nas unhas a verdade das verdades e não requeiro do Congresso um prêmio de cinquenta contos! Contento-me com um apenas...

        A partir da Queda, o nosso macaco entrou a mudar de gênio. Sua cabeça perdeu o frescor da antiga despreocupação e deu de elaborar uns mostrengozinhos, informes, aos quais, com alguma licença, caberia o nome de ideias.

        Vacilava, ele que nunca vacilara e sempre agira com os soberbos impulsos do automatismo. Entre duas bananas pateteava na escolha tomado de incompreensíveis indecisões — e por vezes perdeu ambas, iludido por monos de bote pronto que não vacilavam nem escolhiam.

        Para galgar de um ramo a outro calculava agora não só a distância como a força do salto — e errava, ele que antes da lesão nunca errara pulo.

        Até em suas relações sentimentais com a velha companheira o chimpanzé variou. Ganho de malsãs curiosidades, examinava as outras macacas do bando, comparava-as à sua e cometia o pecado de desejar a macaca do próximo.

        Como também claudicasse na escolha das frutas, comeu diversas impróprias à alimentação símia, daí provindo as primeiras perturbações gastrointestinais observadas na higidez do Paraíso — enterites, colites, disenteria ou o que seja.

        Quando iam águias pelo céu, punha-se a contemplar os seus harmoniosos voos, com vagos anseios nas tripas e muito desejo na alma de ser águia. Era a inveja a nascer, má cuscuta que vicejaria luxuriantemente na execrável descendência desse mono. Invejou as aves que dormiam em ninho fofo e os animais que moravam em boas tocas de pedra. Abandonou o viver em árvore, prescrito para os da sua laia pelo Código Ingênito, e deu de andar sobre a terra de pé sobre as patas traseiras, com as dianteiras — futuras mãos — ocupadas em construir ninho, como os via fazer às perdizes, ou toca, como as tem o tatu.

        E sempre nervoso e inquieto, e descontente com a ordem das coisas estabelecida no Éden, imaginava mudanças e “melhoramentos”. E variava e tresvariava, e malucava, arrastando consigo a pobre companheira que, sem nada compreender de tudo aquilo, em tudo o imitava passivamente, dócil e meiga.

        Aconteceu o que tinha de acontecer. A admirável disciplina reinante no Éden viu-se logo perturbada pelo estranho proceder do macaco, advindo daí murmurações e por fim queixas a Jeová. E tais e tantas foram as queixas, que o Sumo, zangado com a nota desafinadora da sua música divina, ordenou ao anjo Gabriel que pusesse no olho da rua o sustenido anárquico.

        Até esse ponto vai certo Moisés. Onde começa a fazer poesia é daí por diante. De fato, Jeová ordenou a expulsão do rebelde e são Gabriel deu para executá-la os primeiros passos. A curiosidade, porém, que dizem feminina mas aqui se vê que é divina, fez o Criador reconsiderar.

        — Suspende, Gabriel! Estou curioso de ver até que extremos irá o desarranjo mental do meu macaco.

        Era Gabriel o Sarrazani daquele jardim zoológico e, graças ao convívio com o Eterno, adquirira alguma coisa da divina presciência. Assim foi que objetou:

        — Vossa Eternidade me perdoe, mas se lá deixamos o trapalhão aquilo vira em “humanidade”...

        — Sei disso — retorquiu o Soberano Senhor de todas as coisas. — A lesão do cérebro do meu macaco põe-no à margem da minha Lei Natural e fá-lo-á discrepar da harmonia estabelecida. Nascerá nele uma doença, que seus descendentes, cheios de orgulho, chamarão inteligência — e que, ai deles! lhes será funestíssima. Esse mal, oriundo da Queda, transmitir-se-á de pais a filhos — e crescerá sempre, e terrivelmente influirá sobre a terra, modificando-lhe a superfície de maneira muito curiosa. E, deslumbrados por ela, os homens ter-se-ão na conta de criaturas privilegiadas, entes à parte no universo, e olharão com desprezo para o restante da animalidade. E será assim até que um senhor Darwin surja e prove a verdadeira origem do Homo sapiens...

        — ?!

        — Sim. Eles nomear-se-ão Homo sapiens apesar do teu sorriso, Gabriel, e ter-se-ão como feitos por mim de um barro especial e à minha imagem e semelhança.

        — ?!!

        — Os demais chimpanzés permanecerão como eu os criei; só o ramo agora a iniciar-se com a prole do lesado é que se destina a sofrer a diferenciação mórbida, cuja resultante será cair o governo da terra nas unhas de um bicho que não previ.

        — ?!!!

        — Essa inteligência se caracterizará pela ânsia de ver-me através das coisas, e para que bem a compreendas, Gabriel, te direi que será como asas sem ave, luz sem sol, dedos sem pés...

        Gabriel não compreendeu coisa nenhuma da longa definição de Jeová — e como sucederia o mesmo com os meus leitores, interrompo-a nos dedos sem pés. Até aí ainda a percepção é possível; mas no ponto em que Jeová lhe assinalou a essência última, nem Einstein pescaria um x...

        Vendo o ar aparvalhado de Gabriel, o Criador pulou da metagênese abaixo e falou fisicamente.

        — Essa inteligência apurará aos extremos a crueldade, a astúcia e a estupidez. Por meio da astúcia se farão eles engenhosos, porque o engenho não passa da astúcia aplicada à mecânica. E à força de engenho submeterão todos os outros animais, e edificarão cidades, e esfuracarão montanhas, e rasgarão istmos, destruirão florestas, captarão fluidos ambientes, domesticarão as ondas hertzianas, descobrirão os raios cósmicos, devassarão o fundo dos mares, roerão as entranhas da terra...

        Gabriel estremeceu. Apavorou-o a força futura da inteligência nascente; mas Jeová sorriu, e quando Jeová sorria Gabriel serenava.

        — Nada receies. Essa inteligência terá alguns atributos da minha, como o carvão os tem do diamante, mas estará para a minha como o carvão está para o diamante. A fraqueza dela provirá da sua jaça de origem. Inteligência sem memória, inteligência de chimpanzé, o homem esquecerá sempre. Esquecerá o que ensinei aos seus precursores peludos e esquecerá de colher a boa lição da experiência nova.

        “Seu engenho criará engenhosíssimas armas de alto poder destrutivo — e empolgados pelo ódio se estraçalharão uns aos outros em nome de pátrias, por meio de lutas tremendas a que chamarão guerras, vestidos macacalmente, ao som de músicas, tambores e cornetas — esquecidos de que não criei nem ódio, nem corneta, nem pátria.

        “E transporão mares, e perfurarão montes, e voarão pelo espaço, e rodarão sobre trilhos na vertigem louca de vencer as distâncias e chegar depressa — esquecidos de que eu não criei a pressa nem o trilho.

        “E viverão em guerra aberta com os animais, escravizando-os e matando-os pelo puro prazer de matar — esquecidos de que eu não criei o prazer de matar por matar.

        “E inventarão alfabetos e línguas numerosas, e disputarão sem tréguas sobre gramática, e quanto mais gramáticas possuírem menos se entenderão. E se entenderão de tal modo imperfeito que aclamarão o messias do entendimento geral um doutor Zamenhoff...”

        — Já sei! Um que proporá a supressão das línguas.

        — Não! Apenas o criador de mais uma. E eles elaborarão ciências e excogitarão toda a mecânica das coisas, adivinhando o átomo e o planeta invisível, e saberão tudo — menos o segredo da vida.

        “E um Pascal, muito cotado entre eles, dará murros na cabeça, na tortura de compreender os xx supremos — e os homens admirarão grandemente esses murros.

        “E criarão artes numerosas, e terão sumos artistas e jamais alcançarão a única arte que implantei no Éden — a arte de ser biologicamente feliz.

        “E organizarão o parasitismo na própria espécie, e enfeitar-se-ão de vícios e virtudes igualmente antinaturais. E inventarão o Orgulho, a Avareza, a Má-Fé, a Hipocrisia, a Gula, a Luxúria, o Patriotismo, o Sentimentalismo, o Filantropismo, a Colocação dos Pronomes — esquecidos de que eu não criei nada disso e só o que eu criei é.

        “E em virtude de tais e tais macacalidades, a inteligência do homem não conseguirá nunca resolver nenhum dos problemas elementares da vida, em contraste com os outros seres, que os terão a todos solvidos de maneira felicíssima.

        “Não saberá comer; e ao lado das minhas abelhas, de tão sábio regime alimentar — sábio porque por mim prescrito —, o homem morrerá de fome ou indigestão, ou definhará achacoso em consequência de erros ou vícios dietéticos.

        “Não saberá morar — e ao lado das minhas aranhas, tão felizes na casa que lhes ensinei, habitarão ascorosas espeluncas sem luz, ou palácios.

        “Não resolverá o problema da vida em sociedade, e experimentará mil soluções, errando em todas. E revoluções tremendas agitarão de espaço em espaço os homens no desespero de destruir o parasitismo criado pela inteligência — e as novas formas de equilíbrio surgidas afirmar-se-ão com os mesmos vícios das velhas formas destruídas. E o homem olhará com inveja para os meus animaizinhos gregários, que são felizes porque seguem a minha lei sapientíssima.

        “E não solverá o problema do governo; e mais formas de governo invente, mais sofrerá sob elas — esquecido de que não criei governo. E criará o Estado, monstro de maxilas leoninas, por meio do qual a minoria astuta parasitará cruelmente a maioria estúpida. E a fim de manter nédio e forte esse monstro, os sábios escreverão livros, os matemáticos organizarão estatísticas, os generais armarão exércitos, os juízes erguerão cadafalsos, os estadistas estabelecerão fronteiras, os pedagogos atiçarão patriotismos, os reis deflagrarão guerras tremendas e os poetas cantarão os heróis da chacina — para que jamais a guerra cesse de ser uma permanente.

        “Queres ver ao vivo, Gabriel, o que vai ser a chimpanzeização do mundo? Corre essa cortina do futuro e espia por um momento a humanidade.”

        Gabriel correu a cortina do futuro e espiou. E viu sobre a crosta da terra uma certa poeira movediça. Mas, ansioso de detalhes, Gabriel microscopou e distinguiu uma dolorosa caravana de chimpanzés pelados, em atropelada marcha para o desconhecido.

        Miserável rebanho! Uns grandes, outros pequenos; estes louros, aqueles negríssimos — nada que recordasse a perfeição somática dos outros viventes, tão iguaizinhos dentro do tipo de cada espécie. Que feia variedade! Ao lado do Apolo, o torto, o capenga, o cambaio, o corcovado, o corcunda, o raquítico, o trôpego, o careteante, o zanaga, o zarolho, o careca, o manco, o cego, o tonto, o surdo, o espingolado, o nanico... Caricaturas móveis, com os mais grotescos disparates nas feições, era impossível apanhar-lhes de pronto o tipo-padrão. E Gabriel evocou mentalmente a linda coisa que é um desfile de abelhas ou pinguins, no qual não há um só indivíduo que destoe do padrão comum.

        Da manada humana subia um rumor confuso. Gabriel desencerrou os ouvidos e pôde distinguir sons para ele inéditos: tosse, espirros, escarradelas, fungos, borborigmos, ronqueira asmática, gemidos nevrálgicos, ralhos, palavrões de insulto, blasfêmias, gargalhadas, guinchos de inveja, rilhar de dentes, bufos de cólera, gritos histéricos...

        Depois observou que à frente das multidões caminhavam seres de escol, semideuses lantejoulantes, vestidos fantasiosamente, pingentados de cristaizinhos embutidos em engastes metálicos, com penas de aves na cabeça, cordões e fitas, crachás e miçangas...

        — Quem são?

        — Os chefes, os magnatas, os reis: os condutores de povos. Conduzem-nos... não sabem para onde.

        E viu, entremeio à multidão, homens armados, tangendo o triste rebanho a golpes de espada ou vergalho. E viu uns homens de toga negra que liam papéis e davam sentenças, fazendo pendurar de forcas miseráveis criaturas, e a outras cortar a cabeça, e a outras lançar em ergástulos para o apodrecimento em vida. E viu homens a cavalo, carnavalescamente vestidos, empenachados de plumas, que arregimentavam as massas, armavam-nas e atiravam-nas umas contra as outras. E viu que depois de tremenda carnificina um grupo abandonava o campo em desordem, e outro, atolado em sangue e em carne gemebunda, cantava o triunfo num delírio orgíaco, ao som de músicas marciais. E viu que os homens de penacho organizadores das chacinas eram tidos em elevadíssima conta. Todos os aplaudiam, delirantes, e os carregavam em charolas de apoteose. E viu que a multidão caminhava sempre inquieta e em guarda, porque o irmão roubava o irmão, e o filho matava o pai, e o amigo enganava o amigo, e todos se maldiziam e se caluniavam, e se detestavam e jamais se compreendiam...

        Horrorizado, Gabriel cerrou a cortina do futuro e disse ao Criador:

        — Se vai ser assim, cortemos pela raiz tanto mal vindouro. Um chimpanzé a menos no Paraíso e estará evitado o desastre.

        — Não! — respondeu o Criador. — Tenho um rival: o Acaso. Ele criou o homem, provocando a lesão desse macaco, e quero agora ver até a que extremos se desenvolverá essa criatura aberrante e alheia aos meus planos.

        Gabriel piscou por uns momentos (catorze vezes ao certo), desnorteado pela expressão “quero ver” jamais caída dos lábios do Senhor. Haveria porventura algo fechado, ou obscuro, à presciência divina?

        E Gabriel ousou interpelar Jeová.

        — Não sois, então, Senhor, a Presciência Absoluta?

        Jeová franziu os sobrolhos terríveis e murmurou apenas:

        — Eu Sou, e se Sou, Sou também O que se não interpela.

        Gabriel encolheu-se como fulminado pelo raio e sumiu-se da presença do Eterno com pretexto de uma vista de olhos pelo Éden.

        Linda tarde! O sol moribundo chapeava debruns de cobre nos gigantescos samambaiuçus, a cuja sombra dormitavam megatérios de focinhos metidos entre as patorras.

        As arqueopterix desajeitadonas chocavam na areia seus grandes ovos.

        Um urso das cavernas catava as pulgas da companheira com a minuciosa atenção dum entomologista apaixonado, e de longe vinham urros de estegossauros perseguidos por mutucões venenosos.

        Ao fundo dum vale de avencas viçosas como bambus, dois labirintodontes amavam-se em silencioso e pacato idílio, não longe de um leão fulvo que comia a carne fumegante da gazela caçada.

        Aves gorjeavam amores nos ramos; serpes monstruosas magnetizavam monstruosas rãs; flores carnívoras abriam a goela das corolas para a apanha de animaizinhos incautos.

        Paz. Paz absoluta. Felicidade absoluta. A Vida comia a Vida e a Vida amava para que não se extinguisse a Vida — tudo rigorosamente de acordo com a senha divina.

        Só Adão, o macaco lesado, discrepava, piscando os olhinhos vivos, como a ruminar certa ideia.

        Gabriel parou perto dele e deixou-se ficar a observá-lo. Viu que Adão, de olhos ferrados numa toca de onça, raciocinava: “Ela sai e eu entro, e fecho a porta com uma pedra, e a casa fica sendo minha...”.

        Eva, a macaca ilesa, permanecia muda ao lado, embevecida no macho pensante. Não o compreendia — não o compreenderia nunca! —, mas admirava-o, imitava-o e obedecia-lhe passivamente.

        Nisto, a onça deixou o antro e foi tocaiar uma veadinha.

        — Acompanhe-me! — disse Adão à companheira, e ambos precipitaram-se para a toca da onça, cuja entrada fecharam por dentro com uma grande pedra roliça. E ficaram donos.

        Gabriel, que acompanhara toda aquela maromba, acendeu um cigarro de papiro, baforou para o céu três fumaças e murmurou:

        — Ele já é inteligência. Ela não passa de imitação. É lógico: só ele foi lesado no cérebro; mas vão ver que Eva, a instintiva, ainda acabará fingindo-se lesada...

        E o primeiro difamador da mulher foi jogar sua partida de gamão com o Todo-Poderoso.

Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2018) Escrito Iba Mendes às 12:54. Marcadores: Conto de Monteiro LobatoEra no Paraíso... 

Entendendo o conto:

01 – Qual é a premissa principal do conto?

      O conto descreve a criação da vida no paraíso e explora a introdução da inteligência no macaco Adão, causando desequilíbrio na harmonia do Éden.

02 – Como Deus instruiu inicialmente as criaturas no paraíso?

      Deus impregnou todas as criaturas com o conhecimento da sabedoria da vida, denominada intuição, e estabeleceu o Código da Sabedoria Ingênita, chamado instinto.

03 – Por que Adão, o macaco, se torna diferente das outras criaturas do paraíso?

      Adão sofre uma lesão no cérebro após uma queda, resultando em mudanças significativas em seu comportamento e no início da inteligência.

04 – Quais são algumas mudanças observadas em Adão após a lesão?

      Adão começa a ter comportamentos mais complexos, como indecisões na escolha de frutas, inveja de outras criaturas e desejo por mudanças não naturais no Éden.

05 – Por que Deus decide não expulsar imediatamente Adão do paraíso?

      Deus quer ver até que ponto a inteligência aberrante do macaco evoluirá, mesmo sabendo que essa mudança causará grandes problemas futuros.

06 – Como Gabriel, o anjo, reage ao observar o futuro da humanidade?

      Gabriel fica horrorizado ao observar a humanidade, vendo uma multidão desordenada e sofrida, liderada por indivíduos questionáveis e imersa em conflitos e maldades.

07 – Quais são algumas das previsões sombrias feitas por Deus sobre o futuro da humanidade?

      Deus prevê que a inteligência humana criará guerras, governos opressivos, sistemas destrutivos para o meio ambiente e um estado de desequilíbrio constante.

08 – Quais são as características notáveis observadas em Adão e Eva após a lesão de Adão?

      Adão demonstra comportamento mais inteligente e estratégico, enquanto Eva permanece na imitação e obediência, incapaz de compreender completamente as ideias do companheiro.

09 – Como o conto sugere a origem da humanidade a partir de Adão e Eva?

      O conto sugere que a humanidade evoluiu a partir do desequilíbrio da inteligência de Adão, que se tornou um ponto de partida para uma linhagem diferente e problemática no paraíso.

 

CONTO: O FISCO - (FRAGMENTO - 1918) - MONTEIRO LOBATO - COM GABARITO

 Conto: O FISCO – Fragmento – 1918   

            Monteiro Lobato

          Conto de Natal – PRÓLOGO  

        No princípio era o pântano, com valas de agrião e rãs coaxantes. Hoje é o Parque do Anhangabaú, todo ele relvado, com ruas de asfalto, pérgola grata a namoriscos noturnos, a Eva de Brecheret, a estátua dum adolescente nu que corre — e mais coisas. Autos voam pela via central, e cruzam-se pedestres em todas as direções. Lindo parque, civilizadíssimo.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDuVQE6POYmmxjzS67FyOP7r-rrGALNrhGEAOr_7DSVZI8ZfI_M4YYvBTejiiZNLseShxgn7WafcowIRVrZLDCh16EfVq6Xrf6XHPoFh4RUIwIVjZujRr2xnO9LCXNWY2I2DMunyB1Js5gXFYKoz4KS_4-l-l4yzCnAocXp7zI-DtJIeqv4uRrRtLfZ38/s320/pARQUE.jpg


        Atravessando-o certa tarde, vi formar-se ali um bolo de gente, rumo ao qual vinha vindo um polícia apressado.

        “Fagocitose”, pensei. A rua é a artéria; os passantes, o sangue. O desordeiro, o bêbado, o gatuno são os micróbios maléficos, perturbadores do ritmo circulatório. O soldado de polícia é o glóbulo branco — o fagócito de Metchnikoff [biólogo microbiologista e anatomista ucraniano, falecido em 1916]. Está de ordinário parado no seu posto, circunvagando olhares atentos. Mal se congestiona o tráfego pela ação antissocial do desordeiro, o fagócito move-se, caminha, corre, cai a fundo sobre o mau elemento e arrasta-o para o xadrez.

        Foi assim naquele dia.

        Dia sujo, azedo. Céu dúbio, de decalcomania vista pelo avesso. Ar arrepiado.

        Alguém perturbara a paz do jardim, e em redor desse rebelde logo se juntou um grupo de glóbulos vermelhos, vulgo passantes. E lá vinha agora o fagócito fardado restabelecer a harmonia universal.

        O caso girava em torno de uma criança maltrapilha, que tinha a tiracolo uma caixa tosca de engraxate, visivelmente feita pelas suas próprias mãos. Muito sarapantado, com lágrimas a brilharem nos olhos cheios de pavor, o pequeno murmurava coisas de ninguém atendidas. Sustinha-o pela gola um fiscal da Câmara.

        — Então, seu cachorrinho, sem licença, hein? — exclamava entre colérico e vitorioso o mastim municipal, focinho muito nosso conhecido. É um que não é um, mas sim legião, e sabe ser tigre ou cordeiro conforme o naipe do contraventor.

        A miserável criança evidentemente não entendia, não sabia que coisa era aquela de licença, tão importante, reclamada assim a empuxões brutais. Foi quando entrou em cena o polícia.

        Este glóbulo branco era preto. (...) Aproximou-se e rompeu o magote com um napoleônico “Espalha!”.

        Humildes alas se abriram àquele Sésamo, e a Autoridade, avançando, interpelou o Fisco:

        — Que encrenca é esta, chefe?

        — Pois este cachorrinho não é que está exercendo ilegalmente a profissão de engraxate? Encontrei-o banzando por aqui com estes troços, a fisgar com os olhos os pés dos transeuntes e a dizer “Engraxa, freguês”. Eu vi a coisa de longe. Vim pé ante pé, disfarçando e, de repente, nhoc! “Mostre a licença”, gritei. “Que licença?”, perguntou ele com arzinho de inocência.

        “Ah, você diz que licença, cachorro? Está me debochando, ladrão? Espera que te ensino o que é licença, trapo!” E agarrei-o. Não quer pagar a multa. Vou levá-lo ao depósito, autuar a infração para proceder de acordo com as posturas — concluiu com soberbo entono o cariado canino da Maxila Fiscal. O solene Mata-Piolho da Manopla Policial concordou.

        — É isso mesmo. Casca-lhes!

        E chiando por entre os dentes uma cusparada de esguicho, deu a sua sacudidela suplementar no menino. Depois voltou-se para os basbaques e ordenou com império de soba africana:

        — Circula, paisanada! É “purivido” ajuntamentos de mais de um.

        Os glóbulos vermelhos dispersaram-se em silêncio. O buldogue lá seguiu com o pequeno nas unhas. E o Pau de Fumo, em atitude de Bonaparte em face das pirâmides, ficou, de dedo no nariz e boca entreaberta, a gozar a prontidão com que, num ápice, sua energia resolvera o tumor maligno formado na artéria sob a sua fiscalização.

        (...)

        PEDRINHO, SEM SER CONSULTADO, NASCE

        Viram-se, ele e ela. Namoraram-se. Casaram.

        Casados, proliferaram.

        Eram dois. O amor transformou-os em três. Depois em quatro, em cinco, em seis...

        Chamava-se Pedrinho o filho mais velho.

        A VIDA

        De pé na porta a mãe espera o menino que foi à padaria. Entra o pequeno com as mãos abanando.

        — Diz que subiu; custa agora oitocentos.

        A mulher, com uma criança ao peito, franze a testa desconsolada.

        — Meu Deus! Onde iremos parar? Ontem era a lenha; hoje é o pão... Tudo sobe. Roupa, pela hora da morte. José ganhando sempre a mesma coisa. Que será de nós, Deus do céu!

        E voltando-se para o filho:

        — Vá a outra padaria, quem sabe se lá... Se for a mesma coisa, traga só um pedaço.

        Pedrinho sai. Nove anos. Franzino, doentio, sempre mal alimentado e vestido com os restos das roupas do pai.

        Trabalha este num moinho de trigo, ganhando jornal [remuneração salarial feita por dia de trabalho] insuficiente para a manutenção da família. Se não fosse a bravura da mulher, que lavava para fora, não se sabe como poderiam subsistir. Todas as tentativas feitas com o intuito de melhorarem a vida com indústrias caseiras esbarraram no óbice tremendo do Fisco. A fera condenava-os à fome. Assim escravizados, José perdeu aos poucos a coragem, o gosto de viver, a alegria. Vegetava, recorrendo ao álcool para alívio de uma situação sem remédio.

        Bendito sejas, amável veneno, refúgio derradeiro do miserável, gole inebriante de morte que faz esquecer a vida e lhe resume o curso! Bendito sejas!

        Apesar de moça, vinte e sete apenas, Mariana aparentava o dobro. A labuta permanente, os partos sucessivos, a chiadeira da filharada, a canseira sem-fim, o serviço emendado com o serviço, sem folga outra além da que o sono força, fizeram da bonita moça que fora a escanzelada besta de carga que era.

        Seus dez anos de casada... Que eternidade de canseiras!...

        Rumor à porta. Entra o marido. A mulher, ninando a pequena de peito, recebe-o com a má nova.

        — O pão subiu, sabe?

        Sem murmurar palavra o homem senta-se, apoiando nas mãos a cabeça. Está cansado.

        A mulher prossegue:

        — Oitocentos réis o quilo agora. Ontem foi a lenha; hoje é o pão... E lá? Aumentaram o salário?

        O marido esboçou um gesto de desalento e permaneceu mudo, com o olhar vago. A vida era um jogo de engrenagens de aço entre cujos dentes se sentia esmagar. Inútil resistir. Destino, sorte.

        Na cama, à noite, confabulavam. A mesma conversa de sempre. José acabava grunhindo rugidos surdos de revolta. Falava em revolução, saque. A esposa consolava-o, de esperança posta nos filhos.

        — Pedrinho tem nove anos. Logo estará em ponto de ajudar-nos. Um pouco mais de paciência e a vida melhora.

        Aconteceu que nessa noite Pedrinho ouviu a conversa e a referência à sua futura ação. Entrou a sonhar. Que fariam dele? Na fábrica, como o pai? Se lhe dessem a escolher, iria a engraxador. Tinha um tio no ofício, e em casa do tio era menor a miséria. Pingavam níqueis.

        Sonho vai, sonho vem, brota na cabeça do menino uma ideia, que cresceu, tomou vulto extraordinário e fê-lo perder o sono. Começar já, amanhã, por que não? Faria ele mesmo a caixa; escovas e graxa, com o tio arranjaria. Tudo às ocultas, para surpresa dos pais! Iria postar-se num ponto por onde passasse muita gente.

        Diria como os outros: “Engraxa, freguês!”, e níqueis haviam de juntar-se no seu bolso. Voltaria para casa recheado, bem tarde, com ar de quem as fez... E mal a mãe começasse a ralhar, ele lhe taparia a boca despejando na mesa o monte de dinheiro.

        O espanto dela, a cara admirada do pai, o regalo da criançada com a perspectiva da ração em dobro! E a mãe a apontá-lo aos vizinhos: “Estão vendo que coisa? Ganhou, só ontem, primeiro dia, dois mil-réis!”. E a notícia a correr... E murmúrios na rua quando o vissem passar: “É aquele!”.

        Pedrinho não dormiu essa noite. De manhãzinha já estava a dispor a madeira dum caixote velho sob forma de caixa de engraxate ao molde clássico. Lá a fez. Os pregos, bateu com o salto de uma velha botina. As tábuas, serrou pacientemente com um facão dentado. Saiu coisa tosca e mal-ajambrada, de fazer rir a qualquer carapina e pequena demais — sobre ela só caberia um pé de criança igual ao seu. Mas Pedrinho não notou nada disso, e nunca trabalho nenhum de carpintaria lhe pareceu mais perfeito.

        Conclusa a caixa, pô-la a tiracolo e esgueirou-se para a rua, às escondidas. Foi à casa do tio e lá obteve duas velhas escovas fora de uso, já sem pelos, mas que à sua exaltada imaginação se afiguraram ótimas. Graxa, conseguiu alguma raspando o fundo de quanta lata velha encontrou no quintal.

        Aquele momento marcou em sua vida um apogeu de felicidade vitoriosa. Era como um sonho — e sonhando saiu para a rua. Em caminho viu o dinheiro crescer-lhe nas mãos, aos montes. Dava à família parte, e o resto encafuava.

        Quando enchesse o canto da arca onde tinha suas roupas, montaria um “corredor”, pondo a jornal outros colegas. Aumentaria as rendas! Enriqueceria! Compraria bicicletas, automóvel, doces todas as tardes na confeitaria, livros de figura, uma casa, um palácio, outro palácio para os pais. Depois...

        Chegou ao parque. Tão bonito aquilo — a relva tão verde, tosadinha... Havia de ser bom o ponto. Parou perto de um banco de pedra e, sempre sonhando as futuras grandezas, pôs-se a murmurar para cada passante, fisgando-lhe os pés: — Engraxa, freguês!

        Os fregueses passavam sem lhe dar atenção. “É assim mesmo”, refletia consigo o menino; “no começo custa. Depois se afreguesam.”

        Súbito, viu um homem de boné caminhando para o seu lado. Olhou-lhe para as botinas. Sujas. Viria engraxar, com certeza — e o coração bateu-lhe apressado, no tumulto delicioso da estreia. Encarou o homem já a cinco passos e sorriu com infinita ternura nos olhos, num agradecimento antecipado em que havia tesouros de gratidão.

        Mas em vez de lhe espichar o pé, o homem rosnou aquela terrível interpelação inicial:

        — Então, cachorrinho, que é da licença?

        EPÍLOGO? NÃO! PRIMEIRO ATO...

        Horas depois o fiscal aparecia em casa de Pedrinho com o pequeno pelo braço. Bateu. O pai estava, mas quem abriu foi a mãe. O homem nesses momentos não aparecia, para evitar explosões. Ficou a ouvir do quarto o bate-boca.

        O fiscal exigia o pagamento da multa. A mulher debateu-se, arrepelou-se. Por fim, rompeu em choro.

        — Não venha com lamúrias — rosnou o buldogue —; conheço o truque dessa aguinha nos olhos. Não me embaça, não. Ou bate aqui os vinte mil-réis, ou penhoro toda esta cacaria.

        Exercer ilegalmente a profissão! Ora dá-se! E olhe cá, madama, considere-se feliz de serem só vinte. Eu é de dó de vocês, uns miseráveis; senão, aplicava o máximo. Mas se resiste dobro a dose!

        A mulher limpou as lágrimas. Seus olhos endureceram, com uma chispa má de ódio represado a faiscar. O Fisco, percebendo-o, motejou:

        — Isso. É assim que as quero — tesinhas, ah, ah. Mariana nada mais disse. Foi à arca, reuniu o dinheiro existente — dezoito mil-réis ratinhados havia meses, aos vinténs, para o caso dalguma doença, e entregou-os ao Fisco.

        — É o que há — murmurou com tremura na voz. O homem pegou o dinheiro e gostosamente o afundou no bolso, dizendo:

        — Sou generoso, perdoo o resto. Adeuzinho, amor!

        E foi à venda próxima beber dezoito mil-réis de cerveja. Enquanto isso, no fundo do quintal, o pai batia furiosamente no menino.

Monteiro Lobato.

Entendendo o conto:

01 – Quem são os personagens principais no conto?

      Pedrinho, sua família, o fiscal da Câmara e o policial.

02 – Qual é o conflito principal enfrentado por Pedrinho e sua família?

      Pedrinho é acusado de exercer ilegalmente a profissão de engraxate, enfrentando multas e abuso de autoridade.

03 – Como é retratada a atuação do fiscal da Câmara?

      O fiscal é representado como alguém abusivo e implacável, impondo multas pesadas e sem piedade, mesmo diante da situação precária da família de Pedrinho.

04 – Quais são as expectativas e sonhos de Pedrinho ao iniciar seu trabalho como engraxate?

      Ele sonha em prosperar financeiramente, ajudar a família, enriquecer, comprar coisas luxuosas e impressionar os pais com seu sucesso.

05 – Qual é a reação da mãe de Pedrinho diante da situação imposta pelo fiscal?

      Inicialmente, ela se debate e tenta argumentar, mas acaba cedendo à pressão e entregando todo o dinheiro que tinham guardado para emergências.

06 – Como é retratado o estado emocional e físico da família de Pedrinho ao longo do conto?

      Eles enfrentam dificuldades financeiras, desânimo, cansaço físico e emocional devido à situação de pobreza e à pressão do fiscal.

07 – Qual é a atitude do policial diante da situação com Pedrinho?

      O policial, representado como um "glóbulo branco" na analogia do conto, aparece como alguém que intervém para dispersar a situação, mas não para proteger Pedrinho.

08 – Como é caracterizado o comportamento do fiscal e sua relação com a família de Pedrinho?

      O fiscal é retratado como arrogante, abusivo e sem compaixão, tratando a família de Pedrinho com desprezo e exigindo dinheiro mesmo sabendo da difícil situação deles.

09 – Que reflexões sobre a burocracia, abuso de poder e as dificuldades enfrentadas por famílias pobres são apresentadas no conto?

      O conto explora a burocracia impiedosa, o abuso de poder e a maneira como as famílias pobres são exploradas, mesmo quando estão em situações desesperadoras.

10 – Qual é o sentimento predominante ao final do conto?

      O sentimento predominante é de injustiça, impotência e desespero, já que Pedrinho e sua família são vítimas de abuso de poder e da falta de compaixão das autoridades.