Romance/Literatura: Infância (Fragmento I)
Graciliano Ramos
[...] Aos nove anos, eu era quase
analfabeto. E achava-me inferior aos Mota Lima, nossos vizinhos, muito
inferior, construído de maneira diversa. Esses garotos felizes, para mim eram
perfeitos: andavam limpos, riam alto, frequentavam escola decente e possuíam
máquinas que rodavam na calçada como trens. Eu vestia roupas ordinárias, usava
tamancos, enlameava-me no quintal, engenhando bonecos de Barro, falava pouco.
Na minha escola de ponta de rua, alguns
desgraçadinhos cochilavam em bancos estreitos e sem encosto, que às vezes se
raspavam e lavavam. [...]
O lugar de estudos era isso. Os alunos
se imobilizavam nos bancos: cinco horas de suplício, uma crucificação. Certo
dia vi moscas na cara de um, roendo o canto de olho, entrando no olho. E o olho
sem mexer, como se o menino estivesse morto. Não há prisão pior que uma escola
primária do interior. A imobilidade e a insensibilidade me aterraram. Abandonei
os cadernos e as auréolas, não deixei que as moscas me comessem. Assim, aos
nove anos ainda não sabia ler.
Ora, uma noite, depois do café, meu pai
mandou buscar um livro que deixara na cabeceira da cama. Novidade: meu velho
nunca se dirigir a mim. E eu, engolido o café, beijava-lhe a mão, porque isto
era praxe, mergulhava na rede e adormecia. Espantado, entrei no quarto, peguei
com repugnância o antipático objeto e voltei a sala de jantar. Aí recebi ordem
para me sentar e abrir o volume. Obedeci, engulhando, com a vaga esperança de
que uma visita me interrompesse. Ninguém nos visitou naquela noite
extraordinária.
Meu pai determinou que eu principiasse
a leitura. Principiei. Mastigando as palavras, gaguejando, gemendo uma
cantilena medonha, indiferente à pontuação, saltando linhas e repisando linhas,
alcancei o fim da página, sem ouvir gritos. Parei surpreendido, virei a folha,
e continue arrastar-me na gemedeira, como um carro em estrada cheia de buracos.
Com certeza o negociante recebera
alguma dívida perdida: no meio do capítulo pôs-se a conversar comigo,
perguntou-me se eu estava compreendendo o que lia. Explicou-me que se tratava
de uma história, um romance, exigiu atenção e resumiu a parte já lida. Um casal
com filhos andava numa floresta, em uma noite de inverno, perseguidos por
lobos, cachorros selvagens. Depois de muito correr, essas criaturas chegavam à
cabana de um lenhador. Era eu ou não era? Traduziu-me em linguagem de cozinha
diversas expressões literárias.
Animei-me a parolar. Sim, realmente
havia alguma coisa no livro, mas era difícil conhecer tudo. [...].
RAMOS, Graciliano.
Infância. Rio de Janeiro: Record, 2006.
Fonte: Livro – Tecendo Linguagens – Língua Portuguesa – 7º
ano – Ensino Fundamental – IBEP 5ª edição – São Paulo, 2018, p. 162-3.
Entendendo o romance:
01 – O que você imagina que aconteceu com ele naquele lugar?
Resposta
pessoal do aluno.
02 – Será que ele aprendeu
a ler?
Resposta
pessoal do aluno.
03 – E você, como foi sua experiência com as primeiras leituras?
Resposta pessoal do aluno.
04 – No início do primeiro parágrafo e no fim do terceiro, o menino fala
sobre um problema que o incomoda. Qual é esse problema?
Ele não sabia ler.
05 – Quem é o narrador do texto, ou seja, quem conta a história?
O menino.
06 – O que você pensa a respeito da escola em que o menino estudava?
Resposta pessoal do aluno.
07 – Você acha que existem escolas como aquela em que o garoto do texto
estudava? Converse com a turma e com o professor(a) sobre esse assunto.
Resposta pessoal do aluno.