sábado, 13 de julho de 2019

POEMA: DE GRAMÁTICA E DE LINGUAGEM - MÁRIO QUINTANA - COM QUESTÕES GABARITADAS

POEMA: De Gramática e de Linguagem            
                             Mário Quintana

E havia uma gramática que dizia assim:
"Substantivo (concreto) é tudo quanto indica
Pessoa, animal ou cousa: João, sabiá, caneta".
Eu gosto das cousas. As cousas sim !...
As pessoas atrapalham. Estão em toda parte. Multiplicam-se em excesso.

As cousas são quietas. Bastam-se. Não se metem com ninguém.
Uma pedra. Um armário. Um ovo, nem sempre,
Ovo pode estar choco: é inquietante...)
As cousas vivem metidas com as suas cousas.
E não exigem nada.
Apenas que não as tirem do lugar onde estão.
E João pode neste mesmo instante vir bater à nossa porta.
Para quê? Não importa: João vem!
E há de estar triste ou alegre, reticente ou falastrão,
Amigo ou adverso...João só será definitivo
Quando esticar a canela. Morre, João...
Mas o bom mesmo, são os adjetivos,
Os puros adjetivos isentos de qualquer objeto.
Verde. Macio. Áspero. Rente. Escuro. luminoso.
Sonoro. Lento. Eu sonho
Com uma linguagem composta unicamente de adjetivos
Como decerto é a linguagem das plantas e dos animais.
Ainda mais:
Eu sonho com um poema
Cujas palavras sumarentas escorram
Como a polpa de um fruto maduro em tua boca,
Um poema que te mate de amor
Antes mesmo que tu saibas o misterioso sentido:
Basta provares o seu gosto...

(QUINTANA, Mário. Prosa & verso.2.ed. Porto Alegre, Globo, 1980. p.94)

Entendendo o poema

1)   Considerando-se o título e os sentidos propostos no poema, é correto afirmar sobre os versos que se trata de quê?
De gramática e de linguagem.

2)   Analise o termo grifado: “Os puros adjetivos isentos de qualquer objeto”.
Complemento Nominal

3)   Observe que o eu poético refere-se às coisas como substantivos concretos. Que diferença de classificação há entre os substantivos concretos apresentados e o substantivo João?
João, além de ser um substantivo concreto, é um substantivo próprio.

4)   Que características são apresentadas para as coisas?
As coisas são quietas, bastam-se e não exigem nada.

5)   Que características são apresentadas para João?
João pode estar triste e alegre, reticente ou falastrão, amigo ou adverso.

6)   Segundo o poema, qual a única forma de João ser como as coisas?
Segundo o texto, a única forma de João se assemelhar as coisas é “esticar a canela” ou morrer, porque assim será definitivo, ou seja, não terá vida como as coisas não têm.

7)   Analise sintaticamente o termo em destaque: “Os adjetivos são necessários à poesia.
Complemento Nominal.

8)   Releia os primeiros versos do poema e responda:
a)   O que a gramática apresenta sobre os substantivos?
A gramática afirma que substantivo é tudo quanto indica pessoa, animal ou coisa: João, sabiá, caneta.

b)   Qual é a preferência do eu poético em relação às coisas e às pessoas?
O eu poético gosta das coisas, mas não gosta das pessoas, porque, segundo ele, atrapalham, estão em toda parte e multiplicam-se.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

POEMA: TIA-AVÓ - ZIRALDO - COM QUESTÕES GABARITADAS

POEMA: TIA-AVÓ
  
                                           Ziraldo

A minha mãe tinha uma tia-avó
e, para mim, mamãe sempre dizia:
a tia-avó é muito mais que avó
e, certamente, é muito mais que tia.

A tia é tia. E basta: é tia só.
E mesmo a avozinha é só avó.

Se ser titia é bom, esta avozinha
multiplica por três tal alegria;
pois além de ser tia da tal sobrinha
é tia de uma mãe ou de uma tia.

Se o verdadeiro amor de uma avó
é bem maior que toda fantasia
de quem pensa que ama; e se o xodó
maior que tem no mundo é o da tia,
de que tamanho será que teria
de ser o coração – me digam só –
daquela avó que é avó e tia,
daquela tia que é tia-avó?

                   Ziraldo. Tantas Tias. 2. ed. São Paulo: Editora Melhoramentos, 1996. p.14.

ENTENDENDO O POEMA
1)   Que palavras indicam, nesse poema, as pessoas que pertencem à família?
As palavras que indicam as pessoas da família são: mãe, tia-avó, mamãe, avó, tia, avozinha, titia, sobrinha.

2)   Leia os versos:
“Se ser titia é bom, esta avozinha
multiplica por três tal alegria.”

O substantivo alegria é concreto ou abstrato? Justifique a  sua resposta.
O substantivo alegria é abstrato porque depende de outros seres para existir.

3)   Marque a alternativa correta para a questão: quem é a sua tia-avó?
a)   É a sua tia e avó de sua prima.
b)   É a irmã de sua avó e tia de sua mãe.
c)   É a avó de sua mãe e tia da sua prima.
d)   É a avó de seu pai e tia de sua mãe.


TEXTO: AMOR DE MADRASTA - MARIE CLAIRE - COM GABARITO

TEXTO: AMOR DE MADRASTA

[...]

        Madrasta tem má no nome e os dicionários retratam claramente o preconceito contra ela. Apesar de significar "a mulher casada, em relação aos filhos que o marido teve de casamento anterior", também pode querer dizer "mãe ou mulher descartável" ou, ainda, "mulher má, ingrata, pouco carinhosa". Nas histórias infantis, é apresentada como uma figura sem coração. É o mito que envolve as mulheres que casam com homens que são pais.
*  
"Elas enfrentam muitos desafios. O primeiro é o próprio homem, que carrega a experiência de um casamento que acabou e vive com o dilema de como criar os filhos sem a mãe biológica por perto. Depois, as crianças, às vezes confusas com a separação dos pais. E, por último, a ex-mulher dele, que, por melhor que seja, está presente nessa situação. Não é pouca coisa.", diz Vera Iaconelli, psicóloga e psicoterapeuta.

Amor de madrasta. Marie Clarie. São Paulo: Abril, n.145, 2003.p.96-7

ENTENDENDO O TEXTO

1)   O que retratam os dicionários ao mostrarem o significado da palavra madrasta, de acordo com o texto?
Os dicionários retratam claramente o preconceito contra ela. Madrasta: é a mulher casada, em relação aos filhos que o marido teve de matrimônio anterior.

2)   Dentre os desafios que as madrastas enfrentam, qual o primeiro, de acordo com o texto?
O primeiro desafio é a convivência com um homem que carrega um casamento que acabou e o dilema de como deve criar os filhos sem a mãe biológica.

3)   Além do pai, das crianças, que outro desafio enfrentam aquelas que se casam com homens que já são pais?
A ex-mulher, que, por melhor que seja, está envolvida em toda a situação.



quarta-feira, 10 de julho de 2019

CRÔNICA: O VERBO FOR - JOÃO UBALDO RIBEIRO - COM GABARITO

Crônica: O Verbo For
               João Ubaldo Ribeiro

        Vestibular de verdade era no meu tempo. Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo; meu e dos outros coroas. Acho inadmissível e mesmo chocante (no sentido antigo) um coroa não ser reacionário. Somos uma força histórica de grande valor. Se não agíssemos com o vigor necessário — evidentemente o condizente com a nossa condição provecta —, tudo sairia fora de controle, mais do que já está. O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora e talvez até desapareça, mas julgo necessário falar do antigo às novas gerações e lembrá-lo às minhas coevas (ao dicionário outra vez; domingo, dia de exercício).
        O vestibular de Direito a que me submeti, na velha Faculdade de Direito da Bahia, tinha só quatro matérias: português, latim, francês ou inglês e sociologia, sendo que esta não constava dos currículos do curso secundário e a gente tinha que se virar por fora. Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira. Tudo escrito tão ruybarbosianamente quanto possível, com citações decoradas, preferivelmente. Os textos em latim eram As Catilinárias ou a Eneida, dos quais até hoje sei o comecinho.
        Havia provas escritas e orais. A escrita já dava nervosismo, da oral muitos nunca se recuperaram inteiramente, pela vida afora. Tirava-se o ponto (sorteava-se o assunto) e partia-se para o martírio, insuperável por qualquer esporte radical desta juventude de hoje. A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino (dicionário, dicionário), o mestre não perdoava.
        — Traduza aí quousque tandem, Catilina, patientia nostra — dizia ele ao entanguido vestibulando.
        — "Catilina, quanta paciência tens?" — retrucava o infeliz.
        Era o bastante para o mestre se levantar, pôr as mãos sobre o estômago, olhar para a plateia como quem pede solidariedade e dar uma carreirinha em direção à porta da sala.
        — Ai, minha barriga! — exclamava ele. — Deus, oh Deus, que fiz eu para ouvir tamanha asnice? Que pecados cometi, que ofensas Vos dirigi? Salvai essa alma de alimária. Senhor meu Pai!
        Pode-se imaginar o resto do exame. Um amigo meu, que por sinal passou, chegou a enfiar, sem sentir, as unhas nas palmas das mãos, quando o mestre sentiu duas dores de barriga seguidas, na sua prova oral. Comigo, a coisa foi um pouco melhor, eu falava um latinzinho e ele me deu seis, nota do mais alto coturno em seu elenco.
        O maior público das provas orais era o que já tinha ouvido falar alguma coisa do candidato e vinha vê-lo "dar um show". Eu dei show de português e inglês. O de português até que foi moleza, em certo sentido. O professor José Lima, de pé e tomando um cafezinho, me dirigiu as seguintes palavras aladas:
        — Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!
        — As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.
        — Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?
        — Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...
        — Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!
        Quis o irônico destino, uns anos mais tarde, que eu fosse professor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia e me designassem para a banca de português, com prova oral e tudo. Eu tinha fama de professor carrasco, que até hoje considero injustíssima, e ficava muito incomodado com aqueles rapazes e moças pálidos e trêmulos diante de mim. Uma bela vez, chegou um sem o menor sinal de nervosismo, muito elegante, paletó, gravata e abotoaduras vistosas. A prova oral era bestíssima. Mandava-se o candidato ler umas dez linhas em voz alta (sim, porque alguns não sabiam ler) e depois se perguntava o que queria dizer uma palavra trivial ou outra, qual era o plural de outra e assim por diante. Esse mal sabia ler, mas não perdia a pose. Não acertou a responder nada. Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir". Pronto, pensei. Se ele distinguir qual é o verbo, considero-o um gênio, dou quatro, ele passa e seja o que Deus quiser.
        — Esse "for" aí, que verbo é esse?
        Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente.
        — Verbo for.
        — Verbo o quê?
        — Verbo for.
        — Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
        — Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.
        Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas. Vestibular, no meu tempo, era muito mais divertido do que hoje e, nos dias que correm, devidamente diplomado, ele deve estar fondo para quebrar. Fões tu? Com quase toda a certeza, não. Eu tampouco fonho. Mas ele fõe.
                                              João Ubaldo Ribeiro. "O Conselheiro Come", Ed Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 2000, pág. 20-23.

Entendendo a crônica:

01 – Na primeira frase do texto, o narrador faz uma afirmação que sugere sua idade. Copie no caderno o trecho que faz essa sugestão e explique por que você o selecionou.
      “No meu tempo”. A afirmação indica que ele é de outra época, anterior à da narração.

02 – Em seguida, ele afirma: “[...] Já estou chegando, ou já cheguei, à altura da vida em que tudo de bom era no meu tempo [...]”
a)   Por que o autor valoriza o passado e nega o presente?
Ele parece se sentir velho demais para aprender as novidades do presente.

b)   A expressão “à altura da vida” parece autorizar o narrador a dizer tudo o que pensa. Comente o significado dessa expressão.
Quer dizer que ele chegou a um tempo em que pode ser dito, pois já está velho.

03 – O vestibular evoca, na memória do narrador, seu tempo de juventude, o tempo em que o vestibular era de “verdade”. Quais são as palavras ou expressões que marcam, no texto, saudade daquela época?
      “O vestibular, é claro, jamais voltará ao que era outrora”.

04 – Destaque do texto dois trechos que sinalizam que o vestibular do passado era mais difícil que o de hoje.
      “Nada de cruzinhas, múltipla escolha ou matérias que não interessassem diretamente à carreira”; “Havia provas escritas e orais”.

05 – Copie o trecho em que o narrador conta o que fazia os alunos sentirem medo do mestre Evandro Baltazar de Silveira.
      “A oral de latim era particularmente espetacular, porque se juntava uma multidão, para assistir à performance do saudoso mestre de Direito Romano Evandro Baltazar de Silveira. Franzino, sempre de colete e olhar vulpino, o mestre não perdoava”.

06 – Observe o seguinte fragmento:
        “— Dou-lhe dez, se o senhor me disser qual é o sujeito da primeira oração do Hino Nacional!
        — As margens plácidas — respondi instantaneamente e o mestre quase deixa cair a xícara.
        — Por que não é indeterminado, "ouviram, etc."?
        — Porque o "as" de "as margens plácidas" não é craseado. Quem ouviu foram as margens plácidas. É uma anástrofe, entre as muitas que existem no hino. "Nem teme quem te adora a própria morte": sujeito: "quem te adora." Se pusermos na ordem direta...
        — Chega! — berrou ele. — Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!”.

a)   Copie no caderno a passagem do trecho em que se pode perceber que o professor acreditava ter feito uma pergunta difícil.
“Dou-lhe dez, se [...]”.

b)   Por que o professor interrompe a resposta do aluno?
Porque o aluno já havia acertado a resposta e demonstrou ter muito conhecimento sobre o assunto.

c)   O que ele quis dizer com “Dez! Vá para a glória! A Bahia será sempre a Bahia!”.
Ele sugere que os baianos são inteligentes.

07 – Quando era professor, o narrador considerava a prova oral “bestíssima”. Por que ele tinha essa opinião?
      Porque a prova se limitava à leitura de um trecho em voz alta para saber se o candidato sabia ler. Depois, faziam-se perguntas simples sobre vocabulário.

08 – Releia a frase: “Então, eu, carrasco fictício, peguei no texto uma frase em que a palavra "for" tanto podia ser do verbo "ser" quanto do verbo "ir".” Por que o narrador se qualifica como “carrasco fictício”?
      Anteriormente, o narrador já havia dito que tinha injustamente fama de ser um professor carrasco. No trecho transcrito, ele mostra que não era carrasco, já que fez uma pergunta muito simples.

09 – A pergunta correspondente ao verbo “for” foi respondida prontamente? Copie no caderno a passagem que justifica sua resposta.
      Não. “Ele considerou a frase longamente, como se eu estivesse pedindo que resolvesse a quadratura do círculo, depois ajeitou as abotoaduras e me encarou sorridente”.

10 – Observe o trecho: “—Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo”.
a)   Qual é a palavra indicativa de informalidade na frase?
É a palavra .

b)   Por que o professor foi mais informal ao fazer a pergunta?
Porque a resposta anterior do rapaz estava errada, não existe o verbo for, portanto ele não poderia ser conjugado.

11 – No último parágrafo, o narrador se apropria do erro do candidato para promover uma brincadeira com a linguagem.
a)   A que expressão corresponde “fondo para quebrar”?
Ele compara essa expressão a “pondo para quebrar”.

b)   Que sentido está implícito na expressão acima citada?
Apesar de o candidato não estar preparado, deve ocupar um alto cargo no governo.

12 – Releia o diálogo:
        “— Verbo for.
         — Verbo o quê?
         — Verbo for.
         — Conjugue aí o presente do indicativo desse verbo.
         — Eu fonho, tu fões, ele fõe - recitou ele, impávido. — Nós fomos, vós fondes, eles fõem.”

a)   O que provoca riso no trecho destacado?
Quando o narrador pede ao rapaz que ele conjugue o verbo for, espera-se que ele perceba o erro que havia cometido; mas não, ele conjuga com segurança o verbo.

b)   Explique o tom irônico usado pelo narrador para descrever o candidato.
Ao utilizar o adjetivo impávido, o narrador sugere que o moço estava tão seguro de sua resposta que não percebeu o seu erro.

13 – No último parágrafo da crônica, o narrador apresenta outra característica do vestibular de seu tempo. Que característica é essa?
      O narrador diz que o vestibular no tempo dele era muito mais divertido do que hoje.

14 – Agora releia o final da crônica: “Não, dessa vez ele não passou. Mas, se perseverou, deve ter acabado passando e hoje há de estar num posto qualquer do Ministério da Administração ou na equipe econômica, ou ainda aposentado como marajá, ou as três coisas.”
a)   Explique a crítica que está implícita no trecho.
A crítica é a de que os funcionários públicos não estão bem preparados para a função que exercem e, além disso, ganham salários altos.

b)   Em sua opinião, o final da crônica manteve o humor dado à narrativa?
Sim, pois a situação inesperada apresentando no final manteve humor.




CRÔNICA: O MÉDICO E O MONSTRO - PAULO MENDES CAMPOS - COM QUESTÕES GABARITADAS


Crônica: O MÉDICO E O MONSTRO 

                 Paulo Mendes Campos

      Avental branco, pincenê vermelho, bigodes azuis, ei-lo, grave, aplicando sobre o peito descoberto duma criancinha um estetoscópio, e depois a injeção que a enfermeira lhe passa.
   O avental na verdade é uma camisa de homem adulto a bater-lhe pelos joelhos; os bigodes foram pintados por sua irmã, a enfermeira; a criancinha é uma boneca de olhos cerúleos, mas já meio careca, que atende pelo nome de Rosinha; os instrumentos para exame e cirurgia saem duma caixinha de brinquedos.
        Ela, seis anos e meio; o doutor tem cinco. Enquanto trabalham, a enfermeira presta informações:
        -- Esta menina é boba mesmo, não gosta de injeção, nem de vitamina, mas a irmãzinha dela adora. 
        O médico segura o microscópio, focaliza-o dentro da boca de Rosinha, pede uma colher, manda a paciente dizer aaá. Rosinha diz aaá pelos lábios da enfermeira. O médico apanha o pincenê, que escorreu de seu nariz, rabisca uma receita, enquanto a enfermeira continua:
        -- O senhor pode dar injeção que eu faço ela tomar de qualquer jeito, porque é claro que se ela não quiser, né, vai ficar muito magrinha que até o vento carrega. 
        O médico, no entanto, prefere enrolar uma gaze em torno do pescoço da boneca, diagnosticando: 
        -- Mordida de leão.
        -- Mordida de leão? – pergunta, desapontada, a enfermeira, para logo aceitar este faz-de-conta dentro do outro faz-de-conta. – Eu já disse tanto, meu Deus, para essa garota não ir na floresta brincar com Chapeuzinho Vermelho...
        Novos clientes desfilam pela clínica: uma baiana de acarajé, um urso muito resfriado, porque só gostava de neve, um cachorro atropelado por lotação, outras bonecas de vários tamanhos, um Papai Noel, uma bola de borracha e até mesmo o pai e a mãe do médico e da enfermeira. 
        De repente, o médico diz que está com sede e corre para a cozinha, apertando o pincenê contra o rosto. A mãe se aproveita disso para dar um beijo violento no seu amor de filho e também para preparar-lhe um copázio de vitaminas: tomate, cenoura, maçã, banana, limão, laranja e aveia. O famoso pediatra, com um esgar colérico, recusa a formidável droga.
        -- Tem de tomar, senão quem acaba no médico é você mesmo, doutor. 
        Ele implora em vão por uma bebida mais inócua. O copo é levado com energia aos seus lábios, a beberagem é provada com uma careta. Em seguida, propõe um trato: 
        -- Só se você depois me der um sorvete.
        A terrível mistura é sorvida com dificuldade e repugnância, seus olhos se alteram nas órbitas, um engasgo devolve o restinho. A operação durou um quarto de hora. A mãe recolhe o copo vazio com a alegria da vitória e aplica no menino uma palmadinha carinhosa, revidada com a ameaça dum chute. Já estamos a essa altura, como não podia deixar de ser, presenciando a metamorfose do médico em monstro. 
        Ao passar zunindo pela sala, o pincenê e o avental são atirados sobre o tapete com um gesto desabrido. Do antigo médico resta um lindo bigode azul. De máscara preta e espada, Mr. Hyde penetra no quarto, onde a doce enfermeira continua a brincar, e desfaz com uma espadeirada todo o consultório: microscópio, estetoscópio, remédios, seringa, termômetro, tesoura, gaze, esparadrapo, bonecas, tudo se derrama pelo chão. A enfermeira dá um grito de horror e começa a chorar nervosamente. O monstro, exultante, espeta-lhe a espada na barriga e brada:
        -- Eu sou o Demônio do Deserto! 
        Ainda sob o efeito das vitaminas, preso na solidão escura do mal, desatento a qualquer autoridade materna ou paterna, com o diabo no corpo, o monstro vai espalhando terror a seu redor: é a televisão ligada ao máximo, é o divã massacrado sob os seus pés, é uma corneta indo tinir no ouvido da cozinheira, um vaso quebrado, uma cortina que se despenca, um grito, um uivo, um rugido animal, é o doce derramado, a torneira inundando o banheiro, a revista nova dilacerada, é, enfim, o flagelo à solta no sexto andar dum apartamento carioca. 
        Subitamente, o monstro se acalma. Suado e ofegante, senta-se sobre os joelhos do pai, pedindo com doçura que conte uma história ou lhe compre um carneirinho de verdade.
        E a paz e a ternura de novo abrem suas asas num lar ameaçado pelas forças do mal.
   Paulo Mendes Campos. O médico e o monstro. Em: Fernando Sabino e outros.
Crônicas 2. 19. ed. São Paulo: Ática, 2003. p. 20-22.

Entendendo a crônica:

01 – No início do texto, o nome e a idade das personagens são desconhecidos. No entanto, é possível perceber que o médico é uma criança. Que expressões do primeiro parágrafo indicam a pouca idade dele?
      “Pincenê vermelho” e “bigodes azuis”. A inusitada associação de cores e a escolha de um objeto em total desuso denunciam a pouca idade da personagem.

02 – No segundo parágrafo, que revelações confirmam que as personagens são crianças?
      O avental é uma camisa de homem, os bigodes foram pitados pela irmã do protagonista, a criancinha é uma boneca e os instrumentos médicos são brinquedos.

03 – A crônica apresenta um fato que faz parte do cotidiano de uma família. Que fato é esse?
      As crianças brincaram de médico.

04 – Releia este trecho.
        “[...] enquanto a enfermeira continua:
         -- O senhor pode dar injeção que eu faço ela tomar de qualquer jeito, porque é claro que se ela não quiser, né, vai ficar muito magrinha que até o vento carrega.”

a)   Essa fala, da menina de 6 anos que brinca de enfermeira, revela opiniões típicas de uma criança? Justifique sua resposta.
Não. Normalmente, às crianças não são defensoras de injeções.

b)   Em sua opinião, quem a menina está imitando ao revelar a preocupação de que a paciente fique magrinha?
Provavelmente, ela está imitando a mãe. Assim como a mãe força o menino a tomar o copo de vitamina de frutas, ainda que a contragosto, para não ficar doente, a menina também, pelo mesmo motivo, força a boneca a tomar injeção.

05 – O pequeno médico dispensa a injeção e, em lugar dela, aplica um curativo em torno do pescoço da paciente fictícia, diagnosticando “mordida de leão”. Sua irmã aceita a reviravolta na brincadeira e diz: “Eu já disse tanto, meu Deus, para essa garota não ir na floresta brincar com Chapeuzinho Vermelho...”. Que característica(s) da infância esse trecho destaca?
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A capacidade da criança de aceitar um faz de conta dentro de outro faz de conta, emendando indefinidamente uma brincadeira na outra.

06 – O narrador faz referência a seis ações realizadas pela mãe do protagonista. No caderno, enumere-as.
1 – Aproveita-se da entrada do filho na cozinha para lhe dar um violento beijo no rosto.
2 – Prepara-lhe um cardápio de vitaminas.
3 – Obriga-o a tomar, mesmo ele não gostando, alegando que é importante para a saúde.
4 – Leva o copo com energia aos lábios.
5 – Recolhe o copo vazio com a alegria da vitória.
6 – Aplica no menino uma palmadinha carinhosa.

07 – Em sua opinião, essas ações são exclusivas da mãe retratada na crônica lida ou são comuns às mães em geral?
      Resposta pessoal do aluno.

08 – O menino transforma-se subitamente em um “monstro” e põe a casa inteira de pernas para o ar.
a)   Que fato provoca essa metamorfose?
O fato de tomar, obrigado, a vitamina preparada pela mãe.

b)   O menino faz alguma coisa para tentar evita-lo?
Sim. Primeiro, ele implora que a bebida seja trocada por outra. Depois, não sendo atendido, negocia uma recompensa posterior: ganhar um sorvete.

c)   Transcreva uma passagem do texto que comprove que, ao terminar a vitamina, o menino já estava disposto a vingar-se por seu desgosto.
“A mãe recolhe o copo vazio com a alegria da vitória e aplica no menino uma palmadinha carinhosa, revidada com a ameaça dum chute”.

d)   Você conhece crianças que reagem dessa maneira quando contrariadas?
Resposta pessoal do aluno.

09 – Observe que o narrador descreve uma brincadeira entre os irmãos, sem nomeá-la. Copie, no caderno, as palavras que revelam ao leitor qual era a brincadeira.
      Estetoscópio, injeção, enfermeira, instrumentos para exame, cirurgia, entre outras.

10 – Como era o espaço onde as crianças brincavam?
      Eles brincavam em um quarto, onde havia uma caixa de brinquedos da qual elas tiravam objetos para a brincadeira de médico. Havia também bonecos de vários tamanhos e uma bola de borracha.

11 – O que esse espaço revela sobre as características das personagens?
      A transformação do quarto em consultório médico todo aparelhado revela o quanto as crianças são imaginativas e se deixam envolver pelo mundo do faz de conta.

12 – Releia a cena em que o menino bebe a vitamina.
a)   Quais palavras e expressões caracterizam a vitamina?
“Formidável droga”, “beberagem” e “terrível mistura”.

b)   Como o menino ingeriu?
Com dificuldade e repugnância, seus olhos se alteraram nas órbitas, ele engasgou.

c)   O que a resposta anterior revela sobre os sentimentos e as sensações do menino?
Que ele se sentiu agredido e raivoso.