Texto: Amor à primeira vista – Iracema cap. II
José de Alencar
Além, muito além daquela serra, que
ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel,
que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais longos que seu
talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu
sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a ema selvagem, a
morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu?" onde campeava sua
guerreira tribo da grande nação tabajara, o pé grácil e nu, mal roçando alisava
apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.
Um dia, ao pino do sol, ela repousava em
um claro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do
que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre os
úmidos cabelos Escondidos na folhagem os pássaros ameigavam o canto
Iracema saiu do banho; o aljôfar d'água
ainda a roreja, como à doce mangaba que corou em manhã de chuva Enquanto
repousa, empluma das penas do gará as flechas de seu arco, e concerta com o
sabiá da mata, pousado no galho próximo, o canto agreste
A graciosa ará, sua companheira e amiga,
brinca junto dela. Às vezes sobe aos
ramos da árvore e de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o uru te palha
matizada, onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá, as
agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que matiza o algodão.
Rumor suspeito quebra a doce harmonia
da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista
perturba-se.
Diante dela e todo a contemplá-la, está
um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta. Tem
nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste das
águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
Foi rápido, como o olhar, o gesto de
Iracema. A flecha embebida no arco partiu Gotas de sangue borbulham na face do
desconhecido.
De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu
sobre a cruz da espada, mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião
de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d'alma que da
ferida.
O
sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei eu. Porém a virgem
lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da mágoa
que causara.
A mão que rápida ferira, estancou mais
rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha
homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo a ponta farpada.
O guerreiro falou:
— Quebras comigo a flecha da paz?
— Quem te ensinou, guerreiro branco, a
linguagem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, que nunca viram outro
guerreiro como tu?
— Venho de bem longe, filha das
florestas. Venho das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus.
— Bem-vindo seja o estrangeiro aos
campos dos tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana de Araquém, pai de
Iracema.
ALENCAR,
José de. Iracema. São Paulo: Moderna.
Entendendo o texto:
01 – “Iracema, a virgem dos
lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna e mais
longos que seu talhe de palmeira.” Observe que, para realçar a beleza de
Iracema, o autor compara seu corpo a elementos da natureza brasileira. Essa
forma de descrever Iracema é usada em outras passagens do texto. Aponte-as.
Por exemplo: “O
favo do jati não era doce como seu sorriso, nem a baunilha recendia no bosque
como seu hálito perfumado.”
02 – Iracema é colocada num
cenário natural de grande beleza, estando perfeitamente integrada nesse meio,
pois a própria natureza parece rodeá-la de cuidados e carinhos. Destaque pelo
menos uma passagem do texto em que isso se observa.
“Banhava-lhe o
corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da
acácia silvestre esparziam flores sobre os úmidos cabelos.”
03 – Que fato vem quebrar “a
doce harmonia da sesta”?
A chegada do
desconhecido guerreiro branco de estranha aparência.
04 – Como se explica a
reação violenta de Iracema?
Ele sentiu-se
ameaçada com a chegada do estranho guerreiro.
05 – Que fato revela o
caráter nobre de Martim?
O fato de não ter
reagido; o respeito à mulher foi mais forte que a dor e o impulso de revidar a
agressão.
06 – Que gesto de Iracema
também revela sua nobreza de caráter?
O gesto de
estancar o sangue que sua flecha fizera correr.
07 – Transcreva fala de
Martim em que ele revela ser um inimigo da tribo de Iracema.
“Venho das terras
que teus irmãos já possuíram, e hoje têm os meus.”
08 – O que teria feito com
que Iracema se arrependesse de haver atirado a flecha?
O sentimento
expresso no rosto e através dos olhos de Martim.