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domingo, 5 de novembro de 2023

PEÇA TEATRAL: O RAPTO DAS CEBOLINHAS - MARIA CLARA MACHADO - COM GABARITO

 Peça Teatral: O Rapto das Cebolinhas

Maria Clara Machado

Um ato em três cenas sem intervalo

 

 Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgzQzNiDazU2NrKWkbPnUmSw39mQwBaV3JHnnlTVWsfQy9SKBGaxoK6ci9IDHZX10Pah01SSoyJg8X5eTW5DOCwo88jhh5HoYC4BJfU1zF7CUWAaXJ0Bb1SsNDC9RdMpcZsgwMYerTdolArTTThtNALwCgjapPb9ZpngprHWfAzL9sael_RYPpHxh73WWc/s1600/cebolinhas.jpg

        Personagens: Vovó Felícia – Maneco – Lúcia – Gaspar – o cão – Florípedes – a gata – Simeão – o burro – Camaleão Alface – Médico.

        Cenário Único – O cenário representa a horta da VOVÓ FELÍCIA.  São vistos três pezinhos de planta.  Girassóis. À frente da horta, uma cerca bem baixinha. Um espantalho. Uma árvore. Um banco na frente da árvore. Uma casa de cachorro no proscênio à direita.

        Primeira Cena  

        Vovó Felícia – (entra olhando o céu) Ah que bela noite! Que sono! (bate o relógio) Nossa já são 3 horas! É hora de dormir! Todos já se recolheram, agora sou eu (boceja). Boa noite queridas cebolinhas! (fala para o público) Estas cebolinhas são preciosas! Quem as possuir é feliz para toda vida. Elas podem trazer para cada um, maravilhosos sentimentos como a CORAGEM (amarelo), a ALEGRIA (azul), o RESPEITO (verde) e o AMOR (vermelho). (A medida que fala mostra cada uma das cebolinhas de cor diferente que podem também ter o nome dos sentimentos escrito). Ah!!! (boceja) Fiquem ai direitinho minhas cebolinhas!!! Até amanhã (sai).

        (É madrugada. Vê-se passar pela cena uma figura envolta numa capa preta, com um grande chapéu. (Os passos devem ser acompanhados do barulho de lixa raspando, reco-reco e pente de arame num tambor.) Olha para todos os lados, penetra pela porteira da cerca, olha de novo para todos os lados, procura no chão, descobre o que queria, faz o gesto de arrancar, cobre o que arrancou com a capa e, pulando a cerca, desaparece de cena, sempre escondendo o rosto. Pausa. Começa a clarear, ouvem-se o galo cantar e passarinhos. A VOVÓ FELÍCIA entra cantando alegremente, carregando regador.  Entra na horta, para e grita.

        VOVÓ FELÍCIA: Roubaram! Socorro! Socorro! Roubaram o pé de cebolinha da VOVÓ FELÍCIA Felício. Roubaram! (“Pausa”.) Quem terá sido? Quem teve coragem de roubar o pé da mais preciosa cebolinha que existe no Brasil? Onde está o Gaspar? (“À parte”.) Gaspar é o vigia da horta. (“Chamando”.) Gaspar! Gaspar!...

        “Ouve-se um latido, e em seguida aparece Gaspar, um enorme cachorrão”.

        VOVÓ FELÍCIA: Gaspar, quem roubou o meu pé de cebolinha?

        GASPAR: (“que não fala, mas late com expressão humana, dando as inflexões necessárias”) Uau... uau... (“Corre até os últimos pés de cebolinha e cheira-os ruidosamente”.)

        VOVÓ FELÍCIA: Foi você quem comeu a minha cebolinha? “Gaspar late que não”.

        VOVÓ FELÍCIA: Palavra de cachorro? “Gaspar late que sim”.

        VOVÓ FELÍCIA: (“à parte”) Estou na dúvida se cachorro tem ou não tem palavra. (“Para Gaspar”.) Então quem foi?

        GASPAR: (“meio apavorado”) Uau... uau... (“Indica a direita com o focinho”.)

        VOVÓ FELÍCIA: Foi Florípedes?

        GASPAR: Uau... uau... (“Diz que não”.)

        VOVÓ FELÍCIA: Foi Simeão?

        GASPAR: Au... au... (“Diz que não”.)

        VOVÓ FELÍCIA: Gaspar, vá correndo chamar Florípedes e Simeão. Quero todo mundo aqui.

        “Sai Gaspar”.

        VOVÓ FELÍCIA: Ah! Preciso descobrir o ladrão. Quem teria a coragem de fazer uma coisa destas? (“Chamando”.) Lúcia, Maneco! Onde estão os meus netos? Maneco, anda cá, seu maroto. Lúcia, acorda, menina. O avô foi roubado!

        “Entram Lúcia e Maneco, aflitos”.

        MANECO: Você chamou, vovó?

        LÚCIA: O que é que aconteceu, você está tão nervosa!

        VOVÓ FELÍCIA: Vocês não podem imaginar o que aconteceu? Olhem lá dentro. (“Aponta para dentro da cerca. Os dois meninos entram no cercado”.)

        MANECO: Oh!

        LÚCIA: Que horror! Pobre vovó! (“Para a plateia”.) Arrancaram o pé de cebolinha. (“Para a vovó.) Quem foi?

        MANECO: Quem foi o ladrão, hem, vovó?

        VOVÓ FELÍCIA: Não sei ainda. Temos que descobrir. Ainda ficaram 3 pés. Os últimos. (“Chorando”.) Ai, meu Deus! Estou tão triste que nem posso pensar direito. Dois anos criando essas cebolinhas, e agora...

        LÚCIA: Fique mais calmo, vovó. Não se amole tanto. Mandaremos vir outras mudas iguais e elas vão crescer que nem capim.

        VOVÓ FELÍCIA: (“indignada”) Lúcia, minha neta, não torne a dizer esse absurdo. Você sabe muito bem que estas cebolinhas são diferentes. Quem toma chá dessas cebolinhas tem coragem, respeito, alegria e amor! E estas são as últimas que existem no Brasil...

        MANECO: (“interrompendo”) Fale mais baixo, vovó. Você quer que outros ladrões apareçam para roubar as 3 que sobraram?

        VOVÓ FELÍCIA: É mesmo, meu filho. Todo o cuidado agora é pouco. Irei até a cidade contratar um detetive para descobrir o ladrão. Prestem bem atenção no pessoal daqui. Todo mundo é suspeito. Vou me vestir e já volto. (“Sai”.)

        MANECO: Pobre vovó. Quem teria sido o ladrão?

        “Ouve-se um miado, um relincho e um latido, e em seguida entram os bichos”.

        MANECO: Aí vêm os bichos. Florípedes, venha cá.

        “Ela se aproxima de Maneco, dengosa”.

        MANECO: Foi você quem roubou as cebolinhas da vovó?

        “Florípedes, assustada, vai até o canteiro, olha, mia, volta para junto de Simeão e, miando com convicção, faz que não, ofendida, como dizendo: "Isso é pergunta que se faça”?".

        MANECO: Simeão, venha cá.

        “Simeão se aproxima com medo”.

        MANECO: Foi você quem roubou as cebolinhas da vovó?

        SIMEÃO: (“com receio”) Hiiiiii. (“Faz que não”.)

        MANECO: Mas vocês dormem aqui fora. Devem ter visto alguma coisa durante a noite.

        “A gatinha e o burro dão miados e relinchos significativos de que viram alguma coisa, sim”.

        MANECO: Então viram o ladrão? (“Miam e relincham que sim”.) Como era ele? (“Os dois se olham um pouco, e depois passam pela cena imitando o andar do ladrão”.) Que andar mais esquisito. E você, Gaspar, não viu nada? Não vigiou a horta durante a noite, como era o seu dever? (“Gaspar abaixa a cabeça”.)

        LÚCIA: Vamos, Gaspar, explique-se. É para o seu próprio bem. Onde é que você passou a noite?

        “Gaspar indica que passou a noite na sua casinha. Entra na casa”.

        MANECO: E não viu nada? Ninguém entrar?

        GASPAR: Uau... uau... uau... (“Faz que não, e mostra que estava dormindo”.)

        MANECO: Como assim? Dormindo! É assim que você toma conta da horta? É assim que você é amigo da vovó? (“Para a plateia”.)

        “Gaspar, aflitíssimo, dá latidos de tristeza”.

        LÚCIA: (“indignada”) Não ofende o Gaspar, Maneco; quem sabe não deram remédio para ele dormir?

        “Gaspar, ao ouvir isso, anima-se e dá saltos significando que sim”.

        MANECO: (“intrigado”) Será possível? Então o caso está se tornando mais grave. Muito mais grave.

        LÚCIA: (“ao ouvido de Maneco”) Florípedes e Simeão viram tudo.

        MANECO: (“dirigindo-se para os dois”) Florípedes e Simeão, respondam: o ladrão era alto ou baixo? (“Os dois olham-se espantados, pensam um pouco; e depois, ao mesmo tempo, Florípedes sobe no banco e faz um gesto, indicando que o ladrão era muito alto, miando prolongado, e Simeão se abaixa relinchando, indicando que o ladrão era muito baixo”.) Que negócio é este? Cada um viu diferente? (“Os dois se olham, percebem a contradição e desmancham rapidamente o gesto. Florípedes desce do banco”.)

        LÚCIA: Era gordo ou magro?

        “Novamente os dois ao mesmo tempo indicam, Florípedes que era muito gordo e Simeão que era muito magro; hesitam um pouco e se olham com medo, percebem o erro e, muito sem graça, desmancham o gesto”.

        MANECO: Vocês estavam era sonhando. Ora essa, vocês não servem para nada. Vão-se embora.

        “Florípedes dá miados aflitos procurando chamar a atenção dos meninos para lhes dizer algo”.

        LÚCIA: (“notando Florípedes”) Espera, parece que Florípedes quer dizer alguma coisa.

        “Florípedes diz que sim”.

        MANECO: Vamos, Flor, explique-se.

        “Junto com Lúcia, corre para a gatinha. Os dois meninos a animam exageradamente. Florípedes, vendo-se dona da situação, afasta-se e começa a mímica. Imita o andar do ladrão e depois finge que desmaia, dando miadinhos finos”.

        LÚCIA: Você desmaiou quando viu o ladrão? (“Florípedes diz que sim, e Simeão mostra ao mesmo tempo que correu para socorrê-la”.) Ah, e você correu para socorrê-la quando ela desmaiou? (“Simeão faz que sim, levanta Florípedes e os dois saem correndo”.)

        MANECO: E... depois foram embora correndo?

        “Simeão faz que não, volta sozinho ao meio do palco, tenta mostrar por mímica que quem saiu correndo foi o ladrão”.

        LÚCIA: Ah!... e o ladrão fugiu?

        “Os dois respondem que sim”.

        MANECO: (“ao ouvido de Lúcia”) Ih!... Estou muito desconfiado. (“Para Florípedes e Simeão.) Podem ir agora. (“Florípedes e Simeão saem”.) Mas tratem de abrir bem os olhos e os ouvidos. (“Gaspar sai. Maneco grita na direção em que os bichos saíram”.) Todo mundo aqui é suspeito!  E essa história que os dois contaram não combinava nada. É bom espiar bem esses bichos. Eles são muito sabidos.

        VOZ DE FORA: Ó de casa!

        MANECO: (“para a plateia”) É o vizinho novo, seu Camaleão Alface.

        “Entra Camaleão Alface, de culote, chapéu de explorador e grandes bigodes. Leva nas costas uma mochila de onde tirará os objetos necessários para a ação.

        CAMALEÃO: (“ainda de fora”) Onde está a VOVÓ FELÍCIA? (“Vai entrando muito aflito”.) Onde está a VOVÓ FELÍCIA? Preciso falar com a VOVÓ FELÍCIA.

        LÚCIA: Vovó está se vestindo, seu Camaleão Alface. Ele vai à cidade para...

        CAMALEÃO: O que aconteceu?

        MANECO: Roubaram um dos pés de cebolinha.

        CAMALEÃO: (“correndo para o local do roubo”) Não é possível! Como foi isso?

        MANECO: Não sabemos ainda de nada. Vovó vai à cidade contratar um detetive.

        CAMALEÃO: Detetive?

        VOVÓ FELÍCIA: (“aparece pronto para sair e emenda a fala com a do Camaleão.) ... um detetive para descobrir o raio do ladrão que levou minha cebolinha. (“Pega a mão do Camaleão e começa a sacudi-la vigorosamente enquanto fala”.) Como vai o senhor? Como vai a Associação Protetora das Plantas?

        “Camaleão tenta falar, mas não consegue”.

        VOVÓ FELÍCIA: O senhor continua o presidente? Farei uma comunicação do roubo na próxima reunião. Agora vou à cidade contratar um detetive. (“Sai andando”.)

        CAMALEÃO: Um detetive? (“Corre atrás do VOVÓ FELÍCIA e o detém”.) Um detetive para quê, minha amiga? (“Com ar de grande superioridade”.) Então não sabe que eu sou formado detetive?

        VOVÓ FELÍCIA: O senhor?

        CAMALEÃO: (“andando lentamente no palco e muito convencido”) Passei três anos numa universidade dos Estados Unidos. (“Parado, para a plateia, e com malícia”.) Sou especialista em raptos de verduras, brotinhos, coisinhas tenras e desprotegidas.

        MANECO: Mas o senhor tem diploma, seu Camaleão?

        CAMALEÃO: Aqui está.

        “Puxa ostensivamente da mochila um enorme diploma. Maneco e Lúcia começam a abri-lo. É tão grande o diploma que Maneco precisa trepar no banco e Lúcia se ajoelhar no chão para abri-lo completamente. A VOVÓ FELÍCIA passa os olhos, encantado, pelo documento e o lê em inglês ruim. Enquanto isso, Camaleão, se transforma num detetive tirando da mochila capa com estrela, gravata borboleta e uma enorme lente”.

        VOVÓ FELÍCIA: Seu diploma é enorme, seu Camaleão Alface. (“Vai para junto dele”.) O senhor está nomeado meu detetive. Pagarei o que quiser.

        CAMALEÃO: Não cobrarei nada do senhor (“Adulador”.) Só quero a sua amizade. (“Empunha a lente e vai para o canteiro”.) Vejamos primeiro as pistas. (“Consigo mesmo, examinando o local”.) Comecemos pelo... começo. Vamos agir. Todos são suspeitos. (“Examina a avó e, logo depois, as duas crianças, que levam grande susto”.) Todos, ouviram? (“Passeia pelo palco examinando tudo com a lente, e acaba observando a ponta de sua própria bota. Vai subindo com a lente e, quando percebe o que está fazendo, diz”:) Quase todos! (“Para a VOVÓ FELÍCIA”.) Vamos, tenho um plano. (“Para os meninos”.) Que ninguém saia de casa esta noite. Ordem do detetive Camaleão Alface. (“Quase desaparecendo”.) Ninguém!

        “Os meninos examinam o diploma. Camaleão torna a aparecer e tira o diploma dos meninos”.

        CAMALEÃO: Com licença, meninos. (“Para a plateia”.) É o diploma que faz o detetive. (“Sai, solene”.)

        “Lúcia e Maneco saem atrás, Maneco irritado, Lúcia com grande admiração. Voltam logo depois”.

        MANECO: Não gostei nada dele. Achei tudo muito esquisito. Você acha que um detetive anda sempre de diploma, medalha? Ele estava com cara de quem já sabia de tudo. Mas também tenho um plano. Ainda ficaram 3 pés de cebolinhas. O ladrão na certa voltará para roubar o resto.

        LÚCIA: Ué, por que é que ele há de voltar, ora!

        MANECO: (“categoricamente”) Um ladrão volta sempre ao local do crime, Lúcia. (“Baixo”.)

        LÚCIA: É mesmo, Maneco. (“Espantada”.) Então ele é capaz de voltar esta noite. O que é que vamos fazer? Quantos suspeitos você já tem?

        MANECO: (“pensativo”) Florípedes e Simeão podem ser os ladrões. Gaspar também. Seu Camaleão Alface também pode ser o ladrão. Todo mundo pode ser o ladrão.

        LÚCIA: Ah, isso é que não! Não consigo ver o Gaspar roubando cebolinhas. Tão bom que ele é... Nem Florípedes, nem Simeão, nem seu Camaleão Alface... (“Para a plateia”.) Afinal, ele é um grande detetive!

        MANECO: (“implicando”) Você é muito boazinha, Lúcia. Por isso não serve para detetive. Um detetive tem que ser que nem eu: durão!

        LÚCIA: Ah seu bobo! Como é que você pode desconfiar dos pobres bichinhos da vovó (dá-lhe uma corrida e Maneco sai e Lúcia se esconde ao ouvir barulhos, entra Gaspar. Fareja todos os lados, dirige-se para o canteiro, cheira as cebolinhas com grande cuidado e sai. Lúcia observam-no escondidos”.

        LÚCIA: Oh!!!

        (Entra Florípedes puxando Simeão pela mão. Sobe no banco e com pequenos miados e grandes gestos procura convencer Simeão, falando-lhe ao ouvido. Simeão não parece concordar. Por fim, fica irritado e sai para o meio do palco, mostrando claramente que não concorda. Florípedes não desiste e vai atrás dele, puxando-o pelo rabo até o canteiro. Argumenta novamente. Simeão vira-lhe as costas mostrando de novo que não concorda. Florípedes tenta mais uma vez convencê-lo, usando de seus encantos felinos. Mas nada demove Simeão de sua decisão. Afinal, Florípedes, irritada, desiste, e resolve executar seu projeto sozinha. Simeão, apavorado de perdê-la, sai correndo atrás dela”.

        LÚCIA: (“que assistiu a toda a cena escondida) Oh, oh!... (“Sai correndo, chamando”.) Maneco... Maneco... Maneco...

        Segunda Cena

        Escurece bastante. É noite. Entra Maneco envolvido por uma grande capa preta, até o chão, e por um grande chapéu preto. Pé ante pé (exageradamente), com grandes flexões de joelho, olhando para todos os lados, para um momento diante da cebolinha e, fazendo que ouve um barulho (barulho do camaleão), corre e se esconde atrás do espantalho. Logo depois entra Camaleão Alface, vestido da mesma maneira, andando identicamente. Vai até a cebolinha, para um instante, atravessa a cena e ouvindo barulho dos bichos esconde-se no lugar de onde saiu. Em seguida, entram Florípedes e Simeão, ela na frente, vestidos também como os outros. Andando sempre como Maneco e Camaleão Alface, dirigem-se os dois para a cebolinha, param um instante e encaminham-se para trás da árvore, onde se escondem. Torna a voltar Camaleão, vai novamente até a cebolinha, arranca uma disfarçadamente e continua a volta pelo palco. Ao passar pelo espantalho é seguido, sem o saber, por Maneco; este, por Florípedes e Simeão. Os quatro dão uma volta por todo o palco no mesmo ritmo. A certa altura ouve-se o coaxar de um sapo. Param todos ao mesmo tempo (estão em fila indiana) e olham cada um por sua vez para trás. Recomeçam a andar e depois de uns instantes ouvem novamente o sapo. Param juntos. Camaleão volta-se e dá com os outros. Grande confusão e correria, gritos, miados, relinchos. Todo o andar dos personagens deve ser seguido do barulho de lixa, reco-reco, tambor etc.

        MANECO: Peguei o ladrão!

        CAMALEÃO: Me larga, menino, sou Camaleão, o detetive, e o ladrão é você.

        “Mais gritos, miados e relinchos até que entra a VOVÓ FELÍCIA, de ceroulas, segurando um lampião e dando a mão a Lúcia. A cena se ilumina e VOVÓ FELÍCIA vê o detetive agarrado em Maneco. Florípedes e Simeão, morrendo de medo, observam num canto”.

        VOVÓ FELÍCIA: (“entra gritando”) Que barulho medonho é este? Parem de gritar. (“Vendo a cena”.) Meu Deus, quantos ladrões! (“Ilumina cada ladrão com o lampião. Lembra-se das cebolinhas e corre para o canteiro.) Roubaram o meu segundo pé de cebolinha!! (“Senta-se desolada no banco”.)

        CAMALEÃO: (“tirando o disfarce”) Pode ficar certa, VOVÓ FELÍCIA, que o ladrão está por aqui. Pus este disfarce para ver se confundia o larápio, e o senhor há de perceber que aqui há dente-de-coelho.

        MANECO: (“também tirando o disfarce”) Também pus o disfarce para o ladrão se confundir, vovó.

        VOVÓ FELÍCIA: (“irônico, levanta-se e dirige-se aos bichos”) É, e vocês dois aí no canto, também puseram o disfarce para ver se pegavam o ladrão mais facilmente, não é?

        “Florípedes e Simeão, aterrorizados, meneiam a cabeça dizendo que sim”.

        VOVÓ FELÍCIA: (“senta-se novamente e diz, lamuriosa”) É assim que me ajudam? O que vocês estão fazendo é ajudar o ladrão. Com isso ele roubou minha segunda cebolinha.

        CAMALEÃO: (“indo para o meio do palco e tomando conta da situação”) Todos os presentes são suspeitos. Desobedeceram à minha ordem de não sair à noite. Vamos, quero vocês aí enfileirados para uma inspeção. (“Todo amável com o VOVÓ FELÍCIA”.) A cebolinha raptada não deve estar muito longe.

        “Maneco recusa-se a obedecer.  Lúcia empurra o Maneco para o lugar e este fica emburrado”.

        CAMALEÃO: Abram a boca e Mostrem as mãos. (“Ele examina. Puxa a VOVÓ FELÍCIA para o centro do palco e diz-lhe confidencialmente:”). Talvez o suspeito tenha engolido a cebolinha na hora da confusão, e o cheiro deixado na boca será uma pista preciosa. (“Volta aos bichos e cheira a boca de Simeão e Florípedes. Torna a cheirar Florípedes, Florípedes mia de medo. Ouvem-se latidos sofredores cada vez mais fortes”.)

Entendendo a peça teatral:

01 – Qual é o cenário da peça?

      O cenário da peça é a horta da Vovó Felícia.

02 – Quem são os personagens principais da peça?

      Os personagens principais são Vovó Felícia, Maneco, Lúcia, Gaspar (o cão), Florípedes (a gata), Simeão (o burro) e Camaleão Alface (o detetive).

03 – Por que as cebolinhas da Vovó Felícia são consideradas especiais?

      As cebolinhas da Vovó Felícia são especiais porque são capazes de transmitir sentimentos como coragem, alegria, respeito e amor para quem as possui.

04 – O que acontece na primeira cena da peça?

      Na primeira cena, a Vovó Felícia percebe que uma de suas cebolinhas especiais foi roubada, e ela convoca seus netos, Maneco e Lúcia, para ajudar a descobrir quem foi o ladrão.

05 – Quem são os suspeitos iniciais do roubo?

      Os suspeitos iniciais do roubo são os animais da horta: Gaspar, Florípedes e Simeão.

06 – Quem é o detetive que se oferece para ajudar a Vovó Felícia a descobrir o ladrão?

      Camaleão Alface se oferece para ser o detetive e ajudar a resolver o caso.

07 – Por que os suspeitos começam a usar disfarces na segunda cena?

      Os suspeitos, incluindo Maneco e Camaleão Alface, usam disfarces para tentar confundir o ladrão e capturá-lo.

08 – Como a Vovó Felícia reage à confusão criada pelos suspeitos?

      A Vovó Felícia fica desolada e frustrada com a confusão e a falta de ajuda dos suspeitos, já que a segunda cebolinha também é roubada.

09 – Qual é a sugestão do detetive Camaleão Alface para encontrar a cebolinha roubada?

      Camaleão Alface sugere que todos os suspeitos sejam inspecionados, inclusive suas bocas, para verificar se a cebolinha foi ingerida durante a confusão.

10 – Como os suspeitos reagem à inspeção do detetive?

      Os suspeitos reagem com desconfiança e relutância em cooperar com o detetive durante a inspeção.

11 – Por que os animais da horta começam a latir e miar durante a cena noturna?

      Durante a cena noturna, os animais começam a latir e miar devido a algum barulho ou movimento suspeito que percebem na horta.

12 – O que acontece com a segunda cebolinha roubada no final da segunda cena?

      A segunda cebolinha é roubada durante a confusão e não é encontrada, agravando a situação e deixando a Vovó Felícia ainda mais triste.

 

sábado, 10 de setembro de 2022

PEÇA TEATRAL: MÚSICA PARA CORTAR OS PULSOS - RAFAEL GOMES - COM GABARITO

 Peça teatral: Música para cortar os pulsos

        Cena 1: Nomes

        Ricardo
        O nome dele é Felipe.

        Felipe
        O nome dela é Isabela.

        Isabela
        O nome dela é Rosalind.

        Ricardo

        “Quando eu te vi/ eu te amei/ e você sorriu/ porque você soube.”

        Isabela

        “Ri das cicatrizes quem nunca foi ferido.”

        Ricardo

        “Existe amor que não seja à primeira vista?” 

        Quando o Felipe entrou na sala, eu sabia que o amaria.

        Porque eu sou fraco demais para pessoas apaixonantes e o Felipe era apaixonante. (Pausa) Depois que ele conversou comigo e saiu da sala, eu já tinha certeza.

        Felipe

        O nome disso é desalento: quando você não se interessa realmente por ninguém e se sente oco e não se sente bem porque se sente assim. Eu não sou solitário, nem tenho qualquer problema de relacionamento. Pelo contrário, eu tenho vários amigos, encontro pessoas o tempo todo. E eu acabo convivendo com um monte de meninas em volta de mim, meninas muito bonitas e interessantes, por quem eu me sinto atraído. E eu fico com elas e é legal e... E é isso. Depois eu não consigo sentir realmente mais nada.

        Eu terminei recentemente um namoro de um certo tempo. Eu gostava dela, mas era como se nunca tivesse de verdade dentro daquilo, como se nessa hora eu fosse o dublê de mim mesmo. (Tentando explicar.) Funciona assim: eu sou o galã, o personagem principal da minha vida. Eu falo o texto do jeito certo, sou verdadeiro, carismático, razoavelmente inteligente e sedutor – na verdade, eu sou tímido, mas é incrível como as pessoas se sentem atraídas por isso. Só que nas sequências de perigo sentimental, o menor que seja, eu mando chamar meu dublê. Quem vê o filme pensa que sou eu mesmo ali, vivendo aquilo. Mas eu sei que não.

        Ricardo
        O nome disso é projeção. Eu sou esse cara que se apaixona por um monte de gente, o tempo todo, mas eu juro que são coisas diferentes, de jeitos específicos. Amores dentro de mim são como meios de transporte, cada um tem o seu lugar – a água para os barcos, o céu para os aviões, as estradas para os carros... Eu namorava há dois anos quando o Felipe apareceu. E eu precisava me apaixonar de novo, porque eu sou assim... E porque existe essa coisa dentro da gente, muito grande e muito consciente, mas que a gente não controla, que nunca esquece a delícia que é começar. Então eu projetei nele todos os meus novos começos: ele era um cara descobrindo um monte de coisas que eu achava que já sabia e que me lembrava outras que eu já tinha esquecido. E eu me via nele, eu via ele em mim.

        O nome disso é identificação. Porque na verdade a gente quer preencher nossos vazios não com o que nos falta ou completa por ser diferente, mas com o que é confortavelmente familiar.

        Isabela

        O nome disso é substituição. A Rosalind é a maior das personagens esquecidas de todos os tempos. Quase ninguém sabe, mas ela está ali escondida na peça Romeu e Julieta, de Shakespeare, que todo mundo conhece. Agora, quem lembra que Romeu era apaixonado pela Rosalind, antes de conhecer a Julieta, se nem ele mesmo lembra? E eu não tô falando de um tempo longo, não, eu tô falando de minutos. Ele ama a Rosalind, mas, quando a Julieta aparece, uma nova realidade surge – é um Big Bang do amor, como se não tivesse existido nada antes. Mas tinha a Rosalind. Isso não tem nem nome: a rapidez com que o Romeu simplesmente aniquila a Rosalind da cabeça dele é quase desumana. E o pior é que nós, como público, não nos preocupamos com o que sente a Rosalind, porque ela já é apresentada como um acessório na história do Romeu. Ela já nasce esquecida.

        Eu ousaria acreditar que o mundo é feito das Rosalinds, que sofrem bem mais, do que das Julietas, que se deliciam na volúpia das noites de paixão. Metade do mundo, pelo menos. A outra metade é de Romeus, que estão infinitamente confusos e em conflito entre uma e outra – sejam esses Romeus homens ou mulheres.

        Ricardo

        Dizem que o amor é cego e eu acho que essa frase tem mais de uma leitura. Ele é cego não porque não enxerga ou não percebe a natureza do que está na sua frente, mas também porque é capaz de ser seletivo e não misturar paisagens que estão lado a lado. Existem ali caminhos que não se acessam. Nem todo mundo acredita, mas eu continuei amando realmente meu namorado depois que eu também já tinha me apaixonado pelo Felipe. A água para os barcos, o ar para os aviões... Eu não sei se isso tem nome.

        Felipe

        “Se o amor é cego, ele não acerta o alvo.”

        [...]

        Isabela

        Então essa palavra “amor” na verdade define o quê? O amor nunca é só amor. O amor é um monte de outros sentimentos misturados. Que, às vezes, tem nome, às vezes não. Mas é uma mistura ilusionista, nunca um elemento puro. Como a luz branca. Ou... (jogando fora...) sei lá, a Coca-Cola!

        Felipe
        Mês passado eu fui à festa de aniversário de oito anos da minha priminha. Na hora do “com quem será” começou uma confusão enorme. Falaram vários nomes ao mesmo tempo e os meninos começaram a brigar pela posição de pretendente oficial. Aquilo se estendeu, e eu e meus outros primos mais velhos demos corda pras crianças. Só sei que em dado momento eram uns quatro em cima da garota falando coisas como “eu, eu, escolhe eu!”, “fica comigo”, “eu gosto muito mais de você”, e eles se batiam e se empurravam... Oito anos. OITO. Isso poderia fazer da minha prima a garota mais popular e cobiçada da escola, mas ela estava odiando tudo aquilo com uma sinceridade tão intensa. Claramente, o que ela mais desejava era ficar em paz. O amor, eu vi, pode doer desde cedo.

        Mas, mais do que isso, desde sempre ele vai precisar de espaço pra brotar.

        Ricardo
        Quanto tempo você precisa pra gostar de alguém? Quanto tempo você precisa pra deixar alguém?

        Isabela

        “Ora, rapaz! Incêndio a incêndio cura./ Uma dor faz minguar a mais antiga./ Desvirar do virar sara a tontura./ Um desespero a velha dor mitiga./ Deixa os olhos pegar nova infecção,/ para que da velha possas ficar são.”

        Ricardo
        O nome disso é substituição?

        Isabela
        Então o nome da Rosalind está lá escrito pra gente lembrar que tudo começa em algum lugar, tudo tem um antes. Que há coisas que passam despercebidas e pessoas que ficam pelo caminho. Eu imagino a Rosalind chegando em casa de volta do baile em que o Romeu conhece a Julieta, toda descabelada e com a maquiagem borrada, dizendo pra mãe dela: “Eu nunca mais vou amar ninguém!”.

        Foi mais ou menos isso o que eu fiz, quando Gabriel me deixou. Ele era o meu Romeu.

        Ricardo
        Romeu, Mercúcio, Rosalind, Julieta...

        Felipe
        O meu nome é Felipe.

        Ricardo
        O meu nome é Ricardo.

        Isabela
        O meu nome é Isabela. Eu tenho um coração partido e eu nunca mais vou amar ninguém.

GOMES, Rafael. Música para cortar os pulsos: monólogos sentimentais para corações juvenis. São Paulo: Leya, 2012. p. 13-21.

       Fonte: Língua Portuguesa – Se liga na língua – Literatura, Produção de texto, Linguagem – 2 Ensino Médio – 1ª edição – São Paulo, 2016 – Moderna – p. 204-7.

Entendendo a peça teatral:

01 – A primeira cena da peça apresenta ao público sentimentos íntimos de cada um dos personagens. Que sentimentos são esses?

      Felipe sofre porque nunca se apaixonou de verdade, tendo vivido apenas relacionamentos superficiais; Ricardo está apaixonado por Felipe; Isabela está magoada porque Gabriel rompeu o namoro.

02 – Em lugar de apresentar um dos personagens da peça, como fazem Ricardo e Felipe, Isabela cita Rosalind.

a)   Quem é Rosalind?

Uma personagem da peça de Shakespeare. Romeu era apaixonado por ela antes de conhecer Julieta.

b)   Na encenação, em que momento você acha que o público entende por que essa personagem ocupa a atenção de Isabela? Justifique.

No final da cena, Isabela associa explicitamente o sofrimento de Rosalind ao fim de seu namoro com Gabriel, mas é possível intuir isso antes, quando se percebe sua empatia com a personagem shakesperiana.

03 – Ao explicar seus sentimentos, Felipe faz referência a elementos que são típicos do universo do cinema. Identifique os tipos de personagem de ficção que ele cita e explique por que o representam.

      Felipe cita o galã e o dublê. Ele é o primeiro na maior parte do tempo, quando consegue a atenção das pessoas por seu charme pessoal; no entanto, assume a figura do dublê quando deseja evitar um comprometimento emocional maior.

04 – Explique a relação que Ricardo faz entre seu comportamento amoroso e os meios de transporte.

      Ricardo entende que pode experimentar vários sentimentos simultânea e separadamente, porque estes lembram os meios de transporte: cada um ocupa um espaço próprio.

05 – Embora um texto teatral seja criado para ser encenado e, portanto, não necessite de títulos, o dramaturgo optou por usá-los. Justifique a escolha de “Nomes” para a primeira cena.

      Além de propor um jogo com o nome dos personagens, que ora apresentam um ao outro ora a si mesmos, o texto trata da aplicação dos nomes “desalento”, “projeção”, “identificação” e “substituição” para explicar as experiências afetivas vividas por eles.

06 – Volte à página 205 e observe a foto desta cena feita em uma das apresentações de Música para cortar os pulsos.

a)   O subtítulo da peça é “Monólogos sentimentais para corações juvenis”. O que é um monólogo?

É uma cena de peça em que o ator fala consigo mesmo ou se dirige ao público para expressar seus pensamentos. Não há diálogo com outros personagens.

b)   O cenário e a expressão corporal dos atores na foto confirmam a ideia de que a peça é formada por monólogos? Por quê?

Embora ocupem o mesmo palco, os atores estão em espaços individualizados, marcados por cores diferentes. O corpo está voltado para a frente, sugerindo que falam para o público e não entre si, algo que é reforçado pela presença dos microfones.

c)   As falas da primeira cena também criam essa impressão? Justifique.

Sim. Nas falas, os jovens referem-se a outros personagens, mas nunca interagem com eles.

07 – Observe novamente os elementos da foto da página 205. Se você fosse o diretor da encenação, faria alguma alteração no cenário, no figurino ou na disposição dos atores? Se a resposta for positiva, indique qual(is). Se for negativa, justifique por que considerou ideal a forma escolhida.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A encenação fotografada reforça alguns aspectos importantes do texto, como a solidão dos personagens e o fato de estarem envolvidos em um processo de reflexão sobre os próprios sentimentos. As alterações sugeridas precisarão levar em conta esses aspectos.

 

domingo, 19 de junho de 2022

PEÇA TEATRAL: O NOVIÇO (FRAGMENTO) - MARTINS PENA - COM GABARITO

 Peça teatral: O noviço (Fragmento)

                     Martins Pena

CENA VII

        Carlos, com hábito de noviço, entra assustado e fecha a porta.

        EMÍLIA, assustando-se — Ah, quem é? Carlos!

        CARLOS — Cala-te

        EMÍLIA — Meu Deus, o que tens, por que estás tão assustado? O que foi?

        CARLOS — Aonde está minha tia, e o teu padrasto?

        EMÍLIA — Lá em cima. Mas o que tens?

        CARLOS — Fugi do convento, e aí vêm eles atrás de mim.

        EMÍLIA — Fugiste? E por que motivo?

        CARLOS — Por que motivo? pois faltam motivos para se fugir de um convento? O último foi o jejum em que vivo há sete dias... Vê como tenho esta barriga, vai a sumir-se. Desde sexta-feira passada que não mastigo pedaço que valha a pena.

        EMÍLIA — Coitado!

        CARLOS — Hoje, já não podendo, questionei com o D. Abade. Palavras puxam palavras; dize tu, direi eu, e por fim de contas arrumei-lhe uma cabeçada, que o atirei por esses ares.

        EMÍLIA — O que fizestes, louco?

        CARLOS — E que culpa tenho eu, se tenho a cabeça esquentada? Para que querem violentar minhas inclinações? Não nasci para frade, não tenho jeito nenhum para estar horas inteiras no coro a rezar com os braços encruzados. Não me vai o gosto para aí... Não posso jejuar; tenho, pelo menos três vezes ao dia, uma fome de todos os diabos. Militar é que eu quisera ser; para aí chama-me a inclinação. Bordoadas, espadeiradas, rusgas é que me regalam; esse é o meu gênio. Gosto de teatro, e de lá ninguém vai ao teatro, à exceção de Frei Maurício, que frequenta a plateia de casaca e cabelereira para esconder a coroa.

        EMÍLIA — Pobre Carlos, como terás passado estes seis meses de noviciado!

        CARLOS — Seis meses de martírio! Não que a vida de frade seja má; boa é ela para quem a sabe gozar e que para ela nasceu; mas eu, priminha, eu que tenho para tal vidinha negação completa, não posso!

        EMÍLIA — E os nossos parentes quando nos obrigam a seguir uma carreira para a qual não temos inclinação alguma, dizem que o tempo acostumar-nos-á.

        CARLOS — O tempo acostumar! Eis aí porque vemos entre nós tantos absurdos e disparates. Este tem jeito para sapateiro: pois vá estudar medicina... Excelente médico! Aquele tem inclinação para cômico: pois não senhor, será político... Ora, ainda isso vá. Esse outro só tem jeito para caiador ou borrador: nada, é ofício que não presta... Seja diplomata, que borra tudo quanto faz. Aqueloutro chama-lhe toda a propensão para a ladroeira; manda o bom senso que se corrija o sujeitinho, mas isso não se faz; seja tesoureiro de repartição fiscal, e lá se vão os cofres da nação à garra... Esse outro tem uma grande carga de preguiça e indolência e só serviria para leigo de convento, no entanto vemos o bom do mandrião empregado público, comendo com as mãos encruzadas sobre a pança o pingue ordenado da nação.

        EMÍLIA — Tens muita razão; assim é.

        CARLOS — Este nasceu para poeta ou escritor, com uma imaginação fogosa e independente, capaz de grandes cousas, mas não pode seguir a sua inclinação, porque poetas e escritores morrem de miséria, no Brasil. E assim o obriga a necessidade a ser o mais somenos amanuense em uma repartição pública e a copiar cinco horas por dia os mais soníferos papéis. O que acontece? Em breve matam-lhe a inteligência e fazem do homem pensante máquina estúpida, e assim se gasta uma vida? É preciso, é já tempo que alguém olhe para isso, e alguém que possa.

        [...]

 PENA, Martins. O noviço. Apresentação, comentários e notas de José de Paula Ramos Jr. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996. p. 62-5.

Fonte: Língua portuguesa 2 – Projeto ECO – Ensino médio – Editora Positivo – 1ª edição – Curitiba – 2010. p. 115-6.

Entendendo a peça teatral:

01 – Quais os motivos alegados por Carlos para ter fugido do convento?

      A obrigação de jejuar, a discussão com o Abade, que terminou em agressão física, o fato de ter a cabeça “esquentada” por não ter nascido para a vida religiosa, querer ser militar e, por fim, o fato de gostar de teatro, divertimento ao qual poucos religiosos se dedicam – o Frei Maurício tem mesmo que se disfarçar para poder frequentar o teatro.

02 – Segundo Carlos, a vida de frade é má ou boa?

      Para ele, a vida de frade é boa para quem tem vocação. No caso dele, que não tem, é um martírio.

03 – Há uma crítica direta, na fala do noviço, contra o costume de os parentes escolherem a carreira dos jovens. Quais seriam os prejuízos desse costume?

      Segundo Carlos, esse costume faria com que se perdessem ótimas vocações e surgissem maus profissionais: um que tem vocação para sapateiro sairia um péssimo médico.

04 – Uma das funções da comédia de costumes é criticar a sociedade por meio do riso. Para tanto, um dos recursos usados por Martins Pena é a ironia. Explique a ironia presente no trecho: “Aquele tem inclinação para cômico: pois não, senhor, será político... Ora, ainda isso vá”.

      A ironia do trecho está no fato de Carlos afirmar que um cômico, ou seja, um comediante que se torne político seria aceitável, o que deixa implícito uma crítica à política, vista como uma farsa, uma comédia, algo a não ser levado a sério, ou seja, uma piada.

05 – A crítica ao patronato – o uso da riqueza, da influência e/ou do poder para favorecimento de um protegido, independentemente do mérito do candidato – é uma das marcas centrais da peça “O noviço”. Localize e explique uma crítica ao patronato presente na fala de Carlos.

      Há o exemplo da pessoa com vocação para caiador que vira diplomata, “borrando”, ou seja, manchando tudo o que faz; o exemplo do ladrão que se torna tesoureiro, que denuncia a propensão à corrupção: em vez de punir os desvios, muitas vezes a sociedade acaba por “premiar” aqueles que demonstram desonestidade, desde que tenham relações de patronato que os favoreça. Por fim, os preguiçosos que viram empregados públicos, engordando às custas da nação, ou seja, pouco trabalhando, mas sendo sustentados com o dinheiro público.

06 – Levando em consideração as críticas propostas por Carlos, você as considera atuais? Por quê?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Algumas das críticas presentes na peça continuam atuais: muitos pais ainda interferem na escolha profissional de seus filhos, ainda há resquícios de patronato e favorecimento em nossa sociedade, etc.