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segunda-feira, 16 de agosto de 2021

CONTO: A ORELHA DE VAN GOGH (FRAGMENTO) - MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

 CONTO: A orelha de Van Gogh (fragmento)


 Moacyr Scliar

       Estávamos, como de costume, à beira da ruína. Meu pai, dono de um pequeno armazém, devia a um de seus fornecedores importante quantia. E não tinha como pagar.

    Mas, se lhe faltava dinheiro, sobrava-lhe imaginação... Era um homem culto, inteligente, além de alegre. Não concluíra os estudos [...]. Os fregueses gostavam dele, entre outras razões porque vendia fiado e não cobrava nunca. Com os fornecedores, porém, a situação era diferente. Esses enérgicos senhores queriam seu dinheiro. O homem a quem meu pai devia no momento era conhecido como um credor particularmente implacável.

      Outro se desesperaria. Outro pensaria em fugir, em se suicidar até. Não meu pai. Otimista como sempre, estava certo de que daria um jeito. Esse homem deve ter seu ponto fraco, dizia, e por aí o pegamos. Perguntando daqui e dali, descobriu algo promissor. O credor, que na aparência era um homem rude e insensível, tinha uma paixão secreta por Van Gogh. [...]

        Meu pai retirou na biblioteca um livro sobre Van Gogh e passou o fim de semana mergulhado na leitura. Ao cair da tarde de domingo, a porta de seu quarto se abriu e ele surgiu, triunfante:

       – Achei!

       Levou-me para um canto – eu, aos doze anos, era seu confidente e cúmplice – e sussurrou, os olhos brilhando:

       – A orelha de Van Gogh. A orelha nos salvará.

       O que é que vocês estão cochichando aí, perguntou minha mãe, que tinha escassa tolerância para com o que chamava de maluquices do marido. Nada, nada, respondeu meu pai, e para mim, baixinho, depois te explico.

       Depois me explicou. O caso era que o Van Gogh, num acesso de loucura, cortara a orelha e a enviara à sua amada. A partir disso meu pai tinha elaborado um plano: procuraria o credor e diria que recebera como herança de seu bisavô, amante da mulher por quem Van Gogh se apaixonara, a orelha mumificada do pintor. Ofereceria tal relíquia em troca do perdão da dívida e de um crédito adicional.

       – Que dizes?

Minha mãe tinha razão: ele vivia em um outro mundo, um mundo de ilusões.

[...] A questão, contudo, era outra: – E a orelha?

      – A orelha? – olhou-me espantado, como se aquilo não lhe tivesse ocorrido.

Sim, eu disse, a orelha do Van Gogh, onde é que se arranja essa coisa. Ah, ele disse, quanto a isso não há problema, a gente consegue uma no necrotério. O servente é meu amigo, faz tudo por mim.

        No dia seguinte, saiu cedo. Voltou ao meio-dia, radiante, trazendo consigo um embrulho que desenrolou cuidadosamente. Era um frasco com formol, contendo uma coisa escura, de formato indefinido. A orelha de Van Gogh, anunciou, triunfante.

       E quem diria que não era? Mas, por via das dúvidas, ele colocou no vidro um rótulo: Van Gogh – orelha.

       À tarde, fomos à casa do credor. Esperei fora, enquanto meu pai entrava. Cinco minutos depois voltou, desconcertado, furioso mesmo: o homem não apenas recusara a proposta, como arrebatara o frasco de meu pai e o jogara pela janela.

        – Falta de respeito!

      Tive de concordar, embora tal desfecho me parecesse até certo ponto inevitável. Fomos caminhando pela rua tranquila, meu pai resmungando sempre: falta de respeito, falta de respeito. De repente parou, olhou-me fixo:

      – Era a direita ou a esquerda?

      – O quê? – perguntei, sem entender.

      – A orelha que o Van Gogh cortou. Era a direita ou a esquerda?

     – Não sei – eu disse, já irritado com aquela história. Foi você quem leu o livro. Você é quem deve saber. [...]

      - mas não sei – disse ele, desconsolado. – Confesso que não sei.

      Ficamos um instante em silencio. Uma dúvida me assaltou naquele momento, uma dúvida que eu não ousava formular, porque sabia que a resposta poderia ser o fim da minha infância. Mas:

      E a do vidro? – Perguntei. – Era a direita ou a esquerda?

      Mirou-me aparvalhado.

      - Sabe que não sei? – Murmurou numa voz fraca, rouca. – Não sei.

     E prosseguimos, rumo à nossa casa. Se a gente olhar bem uma relha – qualquer orelha, seja ela de Van Gogh ou não -  Verá que seu desenho se assemelha ao de um labirinto. Nesse labirinto eu estava perdido. Eu nunca mais sairia dele.

Disponível em http://www.academia.org.br/abl/media/RB53%20-%20Prosa.pdf. Acesso em: 19 mai.2012.

Fonte: Livro – Geração Alpha LP, 7º ano, Edições SM Ltda, 2ª ed.,2018, p. 13-15.

Entendendo o texto

1.   Após a leitura do conto, retome as hipóteses formuladas no boxe o que vem a seguir. O que você e os colegas imaginaram antes da leitura se confirmou?

Resposta pessoal.

2.   Quem é o autor do conto A ORELHA DE VAN GOGH?

Moacyr Scliar.

 3.   Quem é o narrador do conto, isto é, quem conta a história?

O filho de um pequeno comerciante, dono de um armazém.

ANOTE AÍ

O autor é quem cria e escreve as narrativas. O narrador é a voz adotada pelo autor para contar os acontecimentos em uma história. O autor é uma pessoa real, enquanto o narrador existe apenas na história contada, podendo ou não participar dos acontecimentos narrados.

4.   O narrador do conto que você leu participa dos acontecimentos? Justifique.

Sim o narrador participa dos acontecimentos e os narra como alguém que acompanhou a ideia e a execução do plano do pai. Essa participação é evidenciada pela alternância entre a 1ª pessoa do plural e da 1ª pessoa do singular. “Ficamos um instante em silêncio” e “Levou-me para um canto, eu, aos doze anos, era seu confidente [...]

5. Descreva algumas características das personagens.

PAI   culto, inteligente, alegre, imaginativo, otimista.

MÃE prática, impaciente, pouco tolerante.

CREDOR implacável, rude, insensível.

6.Conhecemos as personagens do conto por meio das impressões do narrador sobre elas. E, quanto ao narrador, que característica de sua personalidade você pode perceber? Justifique sua resposta.

O narrador é bastante próximo ao pai, como ele mesmo define “era seu confidente e cúmplice”. Além disso, é narrador observador e reflexivo, e ao final do conto essa característica fica mais evidente.

7. Releia o trecho:

“Mas, se lhe faltava dinheiro, sobrava-lhe imaginação. Era um homem culto, inteligente, além de alegre. Não concluíra os estudos; o destino o confinara no modesto de secos e molhados, onde ele, entre paios e linguiça, resistia bravamente aos embates da existência.”

a) O que você entende da expressão “embate da existência”?

     Resposta pessoal.

b) nesse trecho, parece opor duas formas de viver. Quais são essas formas de viver que estão em oposição?

     O narrador opõe uma forma mais prática e pragmática de viver de uma forma mais ligada ao mundo da imaginação.

8. Sobre o espaço e o tempo desse conto, responda as questões a seguir.

a) em que espaço se desenvolvem as ações narradas no conto?

     Em duas casas, a da família do narrador e do credor.

b) Procure determinar em que período de tempo se deram essas ações.

    Aparentemente ocorre em três dias, no final de semana, o pai estuda e formula o plano; na segunda-feira obtém a orelha e vai a casa do credor.

9. No conto lido, há um conflito presente desde o primeiro parágrafo é em torno dele que se desenvolve a narrativa. Qual é esse conflito?

 A dívida com o credor.

10. Sobre o conflito, responda as questões.

a) Que solução o pai encontra para resolvê-lo?

    Presentear o credor com a orelha de Van Gogh, que, segunda sua invenção, teria sido deixado de herança de seu bisavô, amante da mulher por quem o pintor se apaixonara. Ele ofereceria a réplica em perdão da dívida e de um crédito adicional.

b) O pai teve sucesso no seu plano? Por quê?

    O pai não teve sucesso em seu plano. A narrativa não deixa evidente o motivo do fracasso.

c) Em sua opinião, por que isso aconteceu?

     Resposta pessoal.

11. Ao longo da história, conhecemos alguns sentimentos que o narrador experimenta em relação ao pai e à forma que ele encontra para resolver a dívida com seu credor. Esses sentimentos sofrem alguma mudança? Explique.

Sim. No início do conto, prevalecem sentimentos positivos em relação ao pai, sobretudo em relação à capacidade imaginativa, admirada pelo filho. No final do conto, o filho decepciona com o pai e mostra certa impaciência e inquietude, pois o pai não sabe de detalhes da história do pintor.

12. Relei a trecho.

“ Ficamos um instante em silencio. Uma dúvida me assaltou naquele momento, um dúvida que eu não ousava formular, porque sabia que a resposta poderia ser o fim da minha infância. Mas:

    -  E a do vidro? – perguntei – Era a direita ou a esquerda?

a) Qual é o significado da palavra assaltou nesse trecho?

      Assaltou, neste contexto, significa “ocorrer repentinamente”.

b) Por que há repetição da palavra dúvida nessa passagem?

     Para enfatizar o estado de incerteza do narrador.

c) Em sua opinião, por que o narrador diz que a resposta do pai à sua dúvida poderia significar o fim de sua infância?

     Resposta pessoal.

13. Releia o último parágrafo do conto.

“E prosseguimos, rumo à nossa casa. Se a gente olhar bem uma relha – qualquer orelha, seja ela de Van Gogh ou não -  Verá que seu desenho se assemelha ao de um labirinto. Nesse labirinto eu estava perdido. Eu nunca mais sairia dele.”

a)   A história se passa em que época da vida do narrador?

Na adolescência.

b)   O narrador conta a história no momento em que ela acontece ou em momento posterior aos acontecimentos?

Em momento bastante posterior aos acontecimentos, provavelmente na fase adulta.

 14. Ainda sobre o último parágrafo, responda as questões.

a) A quem o narrador se refere ao usar a expressão a gente?

    Refere-se ao narrador e aos leitores.

b)Explique, com suas palavras, a menção ao labirinto feita pelo narrador.

    Resposta pessoal.

    Sugestão: O labirinto deve ser entendido como as diferentes possibilidades de caminho que a vida adulta traz.

 

 

 

sábado, 8 de maio de 2021

CRÔNICA: A MULHER SEM MEDO - MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

 TEXTO I

Cientistas americanos estudam o caso de uma mulher portadora de

uma rara condição, em resultado da qual ela não tem medo de nada.

(Folha de S. Paulo, 17/12/2010. Cotidiano.)

TEXTO II

CRÔNICA: A MULHER SEM MEDO

                   Moacyr Scliar

Ele não sabia o que o esperava quando, levado mais pela curiosidade do que pela paixão, começou a namorar a mulher sem medo. Na verdade havia aí também um elemento interesseiro; tinha um projeto secreto, que era o de escrever um livro chamado “A Vida com a Mulher sem Medo”, uma obra que, imaginava, poderia fazer enorme sucesso, trazendo-lhe fama e fortuna. Mas ele não tinha a menor ideia do que viria a acontecer.

Dominador, o homem queria ser o rei da casa. Suas ordens deveriam ser rigorosamente obedecidas pela mulher. Mas como impor sua vontade? Como muitos ele recorria a ameaças: quero o café servido às nove horas da manhã, senão… E aí vinham as advertências: senão eu grito com você, senão eu bato em você, senão eu deixo você sem comida.

Acontece que a mulher simplesmente não tomava conhecimento disso; ao contrário, ria às gargalhadas. Não temia gritos, não temia tapas, não temia qualquer tipo de castigo. E até dizia, gentil: “Bem que eu queria ficar assustada com suas ameaças, como prova de consideração e de afeto, mas você vê, não consigo”.

Aquilo, além de humilhá-lo profundamente, deixava-o completamente perturbado. Meter medo na mulher transformou-se para ele em questão de honra.

Tinha de vê-la pálida, trêmula, gritando por socorro.

Como fazê-lo? Pensou muito a respeito e chegou a uma conclusão: para amedrontá-la só barata ou rato. Resolveu optar pela barata, por uma questão de facilidade: perto de onde moravam havia um velho depósito abandonado, cheio de baratas. Foi até lá e conseguiu quatro exemplares, que guardou num vidro de boca larga.

Voltou para casa e ficou esperando que a mulher chegasse, quando então soltaria as baratas.

Já antegozava a cena: ela sem dúvida subiria numa cadeira, gritando histericamente. E ele enfim se sentiria o vencedor.

Foi neste momento que o rato apareceu. Coisa surpreendente, porque ali não havia ratos, sobretudo um roedor como aquele, enorme, ameaçador, o Rei dos Ratos. Quando a mulher finalmente retornou encontrou-o de pé sobre uma cadeira, agarrado ao vidro com as baratas, gritando histericamente.

Fazendo jus à fama ela não demonstrou o menor temor; ao contrário, ria às gargalhadas. Foi buscar uma vassoura, caçou o rato pela sala, conseguiu encurralá-lo e liquidou-o sem maiores problemas. Feito que ajudou o homem, ainda trêmulo, a descer da cadeira.

E aí viu que ele segurava o vidro com as quatro baratas. O que deixou-a assombrada: o que pretendia ele fazer com os pobres insetos? Ou aquilo era um novo tipo de perversão?

Àquela altura ele já nem sabia o que dizer. Confessar que se tratava do derradeiro truque para assustá-la seria um vexame, mesmo porque, como ele agora o constatava, ela não tinha medo de baratas, assim como não tivera medo do rato. O jeito era aceitar a situação.

E admitir que viver com uma mulher sem medo era uma coisa no mínimo amedrontadora.

(Moacyr Scliar. Folha de S. Paulo, 17/1/2011.)

Fonte: Livro- Português: Linguagem, 1/ William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães, 11.ed – São Paulo: Saraiva, 2016, p.13-15.

Entendendo o texto

1. O texto I é parte de uma notícia internacional.

a) Por que esse fato mereceu destaque no noticiário?

    Por ainda não se conhecer alguém que não tivesse algum tipo de medo.

 b) A que campo do conhecimento humano esse fato causa interesse?      Ao campo científico.

2. O texto II foi criado pelo escritor Moacyr Scliar a partir da notícia reproduzida no texto I.

a) Qual dos dois textos trata de um fato concreto da realidade?

     O texto I.

b) Qual deles cria uma história ficcional a partir de dados da realidade?

     O texto II.

3. O texto II, por ser uma crônica, apresenta vários componentes comuns a outros gêneros narrativos, como fatos, personagens, tempo, espaço e narrador. Além disso, apresenta também preocupação quanto ao modo como os fatos são narrados.

a) O que a narrativa revela quanto a características psicológicas do marido ao longo da história?

    Revela que ele era um homem curioso, dominador, competitivo.

b) Que dados da história comprovam sua resposta?

     O fato de ele se casar com a mulher por curiosidade, e não por amor; pelas tentativas constantes de dominá-la; pela relação competitiva que estabeleceu com a mulher.

    4. Observe estes fragmentos do texto:

• “Aquilo, além de humilhá-lo profundamente, deixava-o completamente perturbado.”

• “E ele enfim se sentiria o vencedor.”

Com base nesses fragmentos, conclua: Como o homem encarava a característica da mulher de não sentir medo?

Encarava como um desafio pessoal, como uma limitação dele, e não como uma característica dela.

5. Em sua última tentativa de amedrontar a mulher, o homem pensa em baratas e ratos.

a) Por que ele imaginou que esses seres poderiam amedrontá-la? Porque boa parte das pessoas, principalmente mulheres, tem medo de baratas e ratos.

b) O que o resultado dessa experiência mostrou quanto a quem tinha medo desses seres?

Mostrou que ele é quem tinha medo de ratos e baratas, e não ela.

6. Você observou que os dois textos abordam o mesmo tema. Apesar disso, eles são bastante diferentes. Essas diferenças se devem à finalidade e ao gênero de cada um dos textos, bem como ao público a que cada um deles se destina.

a) Qual é a finalidade principal do texto I, considerando-se que se trata de uma reportagem jornalística?

 Informar o leitor sobre um acontecimento raro.

b) Qual é a finalidade principal do texto II, considerando-se que se trata de uma crônica literária?

Entreter o leitor, diverti-lo, além de provocar algumas reflexões sobre a natureza humana.

7. A fim de sintetizar as diferenças entre os dois textos, compare-os e responda:

a) Qual deles apresenta uma linguagem objetiva, utilitária, voltada para explicar um problema da realidade?

O texto I.

b) Em qual deles a linguagem é propositalmente organizada com o fim de criar expectativa ou envolvimento do leitor?

O texto II.

c) Qual deles tem a finalidade de informar o leitor sobre a realidade?

O texto I.

d) Qual deles tem a finalidade de entreter, divertir ou provocar reflexões no leitor a partir de um tema da realidade?

O texto II.

e) Considerando as reflexões que você fez sobre a linguagem dos textos em estudo, responda:

Qual deles é um texto literário? Por quê?

O texto II, por ser um texto que recria ficcionalmente a realidade; por ter uma linguagem propositalmente organizada com o fim de criar mais de um sentido; e por entreter e divertir o leitor, além de provocar reflexões sobre a vida e o mundo.

sábado, 14 de novembro de 2020

CONTO: BRUXAS NÃO EXISTEM - MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

 CONTO: BRUXAS NÃO EXISTEM


Quando eu era garoto, acreditava em bruxas, mulheres malvadas que passavam o tempo todo maquinando coisas perversas. Os meus amigos também acreditavam nisso. A prova para nós era uma mulher muito velha, uma solteirona que morava numa casinha caindo aos pedaços no fim de nossa rua. Seu nome era Ana Custódio, mas nós só a chamávamos de "bruxa".

Era muito feia, ela; gorda, enorme, os cabelos pareciam palha, o nariz era comprido, ela tinha uma enorme verruga no queixo. E estava sempre falando sozinha. Nunca tínhamos entrado na casa, mas tínhamos a certeza de que, se fizéssemos isso, nós a encontraríamos preparando venenos num grande caldeirão.

Nossa diversão predileta era incomodá-la. Volta e meia invadíamos o pequeno pátio para dali roubar frutas e quando, por acaso, a velha saía à rua para fazer compras no pequeno armazém ali perto, corríamos atrás dela gritando "bruxa, bruxa!".

Um dia encontramos, no meio da rua, um bode morto. A quem pertencera esse animal nós não sabíamos, mas logo descobrimos o que fazer com ele: jogá-lo na casa da bruxa. O que seria fácil. Ao contrário do que sempre acontecia, naquela manhã, e talvez por esquecimento, ela deixara aberta a janela da frente. Sob comando do João Pedro, que era o nosso líder, levantamos o bicho, que era grande e pesava bastante, e com muito esforço nós o levamos até a janela. Tentamos empurrá-lo para dentro, mas aí os chifres ficaram presos na cortina.

– Vamos logo – gritava o João Pedro –, antes que a bruxa apareça. E ela apareceu. No momento exato em que, finalmente, conseguíamos introduzir o bode pela janela, a porta se abriu e ali estava ela, a bruxa, empunhando um cabo de vassoura. Rindo, saímos correndo. Eu, gordinho, era o último.

E então aconteceu. De repente, enfiei o pé num buraco e caí. De imediato senti uma dor terrível na perna e não tive dúvida: estava quebrada. Gemendo, tentei me levantar, mas não consegui. E a bruxa, caminhando com dificuldade, mas com o cabo de vassoura na mão, aproximava-se. Àquela altura a turma estava longe, ninguém poderia me ajudar. E a mulher sem dúvida descarregaria em mim sua fúria.

Em um momento, ela estava junto a mim, transtornada de raiva. Mas aí viu a minha perna, e instantaneamente mudou. Agachou-se junto a mim e começou a examiná-la com uma habilidade surpreendente.

– Está quebrada – disse por fim. – Mas podemos dar um jeito. Não se preocupe, sei fazer isso. Fui enfermeira muitos anos, trabalhei em hospital. Confie em mim.

Dividiu o cabo de vassoura em três pedaços e com eles, e com seu cinto de pano, improvisou uma tala, imobilizando-me a perna. A dor diminuiu muito e, amparado nela, fui até minha casa. "Chame uma ambulância", disse a mulher à minha mãe. Sorriu.

Tudo ficou bem. Levaram-me para o hospital, o médico engessou minha perna e em poucas semanas eu estava recuperado. Desde então, deixei de acreditar em bruxas. E tornei-me grande amigo de uma senhora que morava em minha rua, uma senhora muito boa que se chamava Ana Custódio.

(SCLIAR, Moacyr. Revista Nova Escola – especial Era uma vez... contos. Disponível em: http://revistaescola.abril.com.br/fundamental-1/bruxas-nao-existem-689866.shtml. Acesso em: 31/08/2013.)


Após ler o conto com atenção, responda às questões a seguir:

1) O narrador conta que, quando era garoto, acreditava em bruxas. Para ele, o que era uma bruxa?

     Para o narrador, bruxas eram “mulheres malvadas que passavam o tempo todo maquinando coisas perversas”.

2) Qual era a prova concreta, para o narrador e seus amigos, de que as bruxas existiam?

     A prova para eles era uma mulher muito velha, uma solteirona que morava numa casinha caindo aos pedaços no fim da rua.

3) Como ele descreve sua vizinha, Ana Custódio?

     Segundo ele, ela era muito feia, gorda, enorme, os cabelos pareciam palha, o nariz era comprido, tinha uma enorme verruga no queixo e estava sempre falando sozinha.

 4) Qual era a diversão predileta dos meninos?

    ( X ) Incomodar a senhora, fazendo travessuras.

    (     ) Ajudar a velha a fazer compras no pequeno armazém.

   (      ) Entrar na casa da “bruxa” e vê-la preparando venenos no caldeirão.

  5) Um dia, ao tentar jogar um bode morto na casa da senhora pela janela da frente, a velha apareceu empunhando um cabo de vassoura. Os meninos saíram correndo, e o narrador enfiou o pé num buraco, caiu e quebrou a perna. O que aconteceu após isso?

    (   ) Os colegas voltaram para ajudá-lo.

   (    ) A mulher o alcançou e descarregou nele sua raiva.

   ( X ) A mulher, que já foi enfermeira, ajudou-o, cuidando de sua perna.

  6)  Por que o título do conto é “Bruxas não existem”? Relacione o título ao final da história.

      Porque o narrador deixou de acreditar em bruxas desde que a senhora o ajudou quando ele quebrou a perna; a partir dessa ocasião, ele tornou-se grande amigo dela.

 Observe as palavras empregadas no conto e marque a opção correta.

  7) Releia o trecho:

Era muito feia, ela; gorda, enorme, os cabelos pareciam palha, o nariz era comprido, ela tinha uma enorme verruga no queixo.

As palavras em destaque apresentam características, modificando outras palavras. Tais palavras ajudam a criar cenários, paisagens e são muito importantes nos textos descritivos. Por isso, com relação à classe gramatical, podemos dizer que são exemplos de:

( X ) adjetivos.

( ) advérbios.

( ) pronomes.

( ) substantivos.

  8) No mesmo fragmento, encontramos a palavra “ela”, utilizada para se referir à mulher: “Era muito feia, ela; [...] ela tinha uma enorme verruga no queixo”. Essa palavra pode ser classificada como um:

     (   ) adjetivo.

     (   ) advérbio.

    ( X ) pronome.

    (   ) substantivo.

9)  No trecho:

De repente, enfiei o pé num buraco e caí. De imediato senti uma dor terrível na perna e não tive dúvida: estava quebrada. Gemendo, tentei me levantar, mas não consegui.

Essas palavras indicam os acontecimentos, as sequências de ações, a passagem de tempo e dão movimento ao texto. Não há como contar uma história ou narrar um fato sem elas. Essas palavras são:

       ( X ) verbos.

       (   ) artigos.

       (   ) adjetivos.

      (    ) pronomes.

10) Observe os substantivos destacados e numere a 2ª coluna de acordo com a 1ª:

     ( 1 ) “Quando eu era garoto, acreditava em bruxas”.

     ( 2 ) “Fui enfermeira muitos anos, trabalhei em hospital”.

     ( 3 ) “Sob comando do João Pedro, que era o nosso líder, levantamos o bicho”.

     ( 4 ) “De imediato senti uma dor terrível na perna e não tive dúvida: estava quebrada”.

        ( 4 ) Substantivos abstratos.

        ( 3 ) Substantivo próprio e substantivo comum.

        ( 2 ) Substantivo derivado e substantivo primitivo.

       ( 1 ) Substantivos concretos (ser real / ser imaginário).

11)  Releia e observe as palavras destacadas:

A prova para nós era uma mulher muito velha, uma solteirona que morava numa casinha caindo aos pedaços no fim de nossa rua.

Nesse trecho, o narrador apresenta a mulher, que ele achava que era uma bruxa, ao leitor. Os termos destacados são:

     ( ) pronomes demonstrativos, pois indicam a posição de um ser ou objeto.

     ( ) artigos definidos, pois designam um ser já conhecido do leitor ou ouvinte.

    ( X ) artigos indefinidos, pois designam um ser ao qual não se fez menção anterior.

 12) Analise o fragmento:

[...] a velha saía à rua para fazer compras no pequeno armazém ali perto.

Os termos em destaque designam uma circunstância de lugar; fazem referência a onde era o armazém. Por isso, esses termos podem ser considerados:

      (   ) verbos.

     (    ) artigos.

    ( X ) advérbios.

    (    ) substantivos.

    13)  As palavras que acompanham o substantivo normalmente concordam com ele em gênero (masculino/ feminino) e número (singular/plural). Veja:

A prova para nós era uma mulher muito velha, uma solteirona que morava numa casinha caindo aos pedaços no fim de nossa rua.

Reescreva o trecho acima, trocando a palavra mulher pela palavra homem e fazendo as alterações necessárias.

A prova para nós era um homem muito velho, um solteirão que morava numa casinha caindo aos pedaços no fim de nossa rua.

sábado, 22 de agosto de 2020

CRÔNICA: A MENSAGEM NA GARRAFA - MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

 Crônica: A MENSAGEM NA GARRAFA

                  Moacyr Scliar.

    Como outros escritores veteranos recebo muitas obras de estreantes. Livros de contos, de poesia, crônicas, um ou outro romance; edições modestas, precárias até, várias delas obviamente pagas pelos próprios autores ─ é difícil arranjar editora quando se está começando. Sempre que posso mando algumas linhas para o remetente, ao menos para dizer que o livro chegou e que, se possível, vou lê-lo. Faço isso porque lembro o jovem escritor que fui, a ansiedade com que procurava fazer chegar meus textos às mãos de pessoas que conhecia e admirava. Esses dias recebi de um contista do Nordeste uma carta em que ele me agradece o fato de lhe ter respondido. E diz: “O difícil não é a gente escrever; difícil, mesmo, é encontrar alguém que leia o que a gente escreve. Pior do que não ter a quem contar o que a gente sente é contar o que a gente sente a quem não sente o que a gente conta.” ***

        Nestas frases está todo o drama da incomunicabilidade humana. Todos nós temos os nossos sofrimentos, as nossas angústias; todos nós queremos expressar essas coisas sob a forma de palavras, faladas ou, como acontece em alguns casos, escritas. Se há talento nisso, se o desabafo se transforma em literatura, é outra questão. O ponto crucial é que temos mensagens a transmitir, precisamos transmiti-las e não sabemos se alguém vai recebê-las. Aí se aplica a clássica metáfora do náufrago na ilha deserta que escreve um bilhete, e coloca-o numa garrafa e joga-a ao mar. Essa garrafa chegará a alguém? E esse alguém fará alguma coisa pelo náufrago? Ou estará o potencial salvador tão envolvido com seus próprios problemas que jogará fora garrafa e bilhete?

        Nós temos, sim, a capacidade de entender o outro, de corresponder a seu anseio. Chama-se empatia isso. Mas a capacidade de ser empático varia de pessoa a pessoa, e numa mesma pessoa varia com sua disposição momentânea. Há momentos em que estamos dispostos a recolher a garrafa da areia da praia e ler a mensagem que ali está. E, em outros momentos, passamos pela mesma garrafa e a vemos como prova de que as pessoas jogam lixo em qualquer lugar. ***

        Os escritores não estão imunes a essas dúvidas e ansiedades. Ninguém escreve para a gaveta; todo mundo escreve para ser lido. Não necessariamente por multidões; cem leitores já me bastariam, dizia o grande Flaubert, que hoje é lido por milhões. Franz Kafka, um dos escritores mais revolucionários do século XX, tinha um público muito reduzido; conta-se que, quando foi publicada uma de suas obras, ele perguntou numa livraria próxima à sua casa quantos exemplares haviam sido vendidos. Onze, foi a resposta do livreiro. “Dez fui eu que comprei”, replicou Kafka, acrescentando: “Eu só queria saber quem foi o décimo primeiro.” Ao morrer (ainda jovem, de tuberculose), Kafka pediu ao amigo Max Brod que destruísse os originais ainda inéditos: era coisa que não valia a pena. Brod não atendeu a esse pedido e a humanidade lhe agradece: graças a ele, temos acesso a uma obra extraordinária.

        [...] Só vivemos realmente se contraímos laços com outras pessoas, e para estabelecer esses laços usamos a palavra falada ou escrita. É a nossa mensagem na garrafa. Só resta esperar que as mensagens cheguem a seu destino.

SCLIAR, Moacyr. Contos e crônicas para ler na escola. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

Entendendo a crônica:

01 – Transcreva do primeiro parágrafo uma frase em que há:

a)   Uma comparação.

“Como outros escritores veteranos recebo muitas obras de estreantes”.

b)   Uma opinião.

“— É difícil arranjar editora quando se está começando.”

c)   Uma condição.

“Sempre que posso mando algumas linhas para o remetente...”.

02 – Segundo o cronista, o que todos nós desejamos? (Segundo parágrafo)

      Todos nós queremos expressar essas coisas sob a forma de palavras, faladas ou, como acontece em alguns casos, escritas.

03 – Qual a definição de empatia presente no texto?

      É a capacidade de entender o outro, de corresponder a seus anseio.

04 – A que se refere o termo destacado em “E, em outros momentos, passamos pela mesma garrafa e a vemos como prova de que as pessoas jogam lixo em qualquer lugar”?

      Refere-se a garrafa, que a vemos como uma garrafa qualquer, não damos importância. Que isto depende de nosso estado de espírito.

05 – No trecho que se segue, marque a causa: “Kafka pediu ao amigo Max Brod que destruísse os originais ainda inéditos: era coisa que não valia a pena”.

      A causa foi ter ido numa livraria próxima à sua casa e perguntado quantos exemplares de seu livro havia sido vendido; o livreiro disse onze, sendo que dez foi o próprio Kafka que comprou.

06 – Retire do texto um trecho que explicita o diálogo com o leitor.

      “Só vivemos realmente se contraímos laços com outras pessoas, e para estabelecer esses laços usamos a palavra falada ou escrita.”

quarta-feira, 24 de junho de 2020

CRÔNICA: VOU-ME EMBORA DESTA CASA! MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

Crônica: Vou-me embora desta casa!

              Moacyr Scliar

        Existe alguma coisa pior do que ter quatro anos e brigar com o pai?

        (Existe: é ser pai e brigar com o filho de quatro anos. Mas isto a criança só descobre depois de muitos anos.

        Para um garoto de quatro anos, brigar com o pai, ou com a mãe, significa romper com o mundo. Uma ruptura aliás frequente, porque há poucas coisas que um guri goste mais de fazer do que brigar. Ele briga porque quer comer e porque não quer comer; porque quer se vestir ou porque não quer se vestir; e porque não quer tomar banho, não quer dormir, não quer juntar as coisas que deixou espalhadas pelo chão. E porque quer uma lancha com pilhas, e uma bicicleta, e uma nave espacial – de verdade. Todas estas coisas geram bate-boca, ao final do qual o garoto diz, ultrajado:

        -- Ah, é? Pois então...

        Pois então o quê? Um país pode ameaçar outro com mísseis, ou com marines, ou com bloqueio; um adulto diz que vai quebrar a cara do inimigo; mas, um garoto, pode ameaçar com quê? Com o único trunfo que eles têm:

        -- Eu vou-me embora desta casa!

        Ao que, invariavelmente, os pais respondem: vai, vai de uma vez. Ué, mas não seria o caso deles suplicarem, não meu filho, não vai, não abandona teus velhos pais? Meio incrédulo, o guri repete:

        -- Olha que eu vou, hein?

        Vai, é a dura resposta. E aí o menino não tem outro jeito: para salvar sua honra (e como têm honra, os garotos de quatro anos!) ele tem de partir. Começa arrumando a mala: numa sacola de plástico, ele coloca os objetos mais necessários: um revólver de plástico, os homenzinhos do Playmobil (aos quatros anos, o Kit de sobrevivência e notavelmente restrito).

        Enquanto isto, os pais estão jantando, ou vendo TV, aparentemente indiferentes ao grande passo que vai ser dado. O que só reforça a disposição do filho pródigo em potencial: esses aí não me merecem, eu vou-me embora mesmo.

        Mas, para onde? para onde, José? Manuel Bandeira podia ir para Pasárgada, onde era amigo do rei; aos quatro anos, contudo, a relação com a realeza é muito remota. O guri abre a porta da rua (essas coisas são mais dramáticas em casa do que em apartamentos); olha para fora; está escuro, está frio, chove. Ele hesita; está agora em território de ninguém, tão diminuto quanto o é a sua independência. Ir ou não ir? Nem Hamlet viveu dilema tão cruel. Lá de dentro vem um grito:

        -- Fecha essa porta que está frio!

        Esta é a linha dura (pai ou mãe). Mas sempre há um mediador – pai ou mãe – que negocia um recuo honroso:

        -- Está bem, vem para dentro. Vamos esquecer tudo!

        O garoto resiste, com toda a bravura que ainda lhe resta. Por fim, ele volta, mas sob condições: quando o pai for ao Centro, ele trará um trem elétrico, desde que não seja muito caro, naturalmente. A paz enfim alcançada, o garoto volta para dentro. Até a próxima briga. Quando, então:

        -- Eu vou-me embora desta casa!

Moacyr Scliar.

Entendendo a crônica:

01 – “Existe alguma coisa pior do que ter quatro anos e brigar com o pai?...”. Neste trecho, encontramos o adjetivo grifado flexionado no grau:

a)   Comparativo de superioridade.

b)   Comparativo de inferioridade.

c)   Comparativo de igualdade.

d)   Superlativo relativo de superioridade.

e)   Superlativo relativo de inferioridade.

02 – Identifique a única causa NÃO enumerada, no terceira parágrafo, que leva um garoto de quatro anos a brigar com o pai ou a mãe:

a)   Não querer juntar as coisas que deixou espalhadas pelo chão.

b)   Não querer dormir.

c)   Querer tomar banho toda hora.

d)   Querer comer.

e)   Querer uma nave espacial de verdade.

03 – Identifique a fala que não representa uma ameaça, mas sim uma ordem:

a)   “— Ah é? Pois então...”

b)   “— Eu vou-me embora desta casa!”

c)   “— Olha que eu vou, hein?”

d)   “— Já estou quase indo!”

e)   “— Fecha essa porta que está frio!”

04 – Que tema é abordado na crônica?

      Os conflitos existentes dentro do âmbito familiar, mas especificamente na relação entre pais e filho, quando este ainda é criança.

05 – Numere os fatos na ordem dos acontecimentos, em seguida, marque a sequência correta.

(5) Um dos pais interrompe a partida, sugerindo a reconciliação entre o filho e eles.

(2) Os pais demonstram-se insensíveis à ameaça feita pelo filho, inclusive “apoiando-o” em sua decisão de partir.

(1) O garoto de quatro anos briga com os pais e ofendido ameaça ir embora de casa.

(3) Ferido em seus brios, o menino arruma sua restrita mala para, finalmente, concretizar sua ameaça.

(4) No momento de sair de casa, o filho pródigo sente-se indeciso se enfrenta ou não as dificuldades da rua.

a)   4 – 1 – 2 – 3 – 5.

b)   5 – 2 – 1 – 3 – 4.

c)   3 – 1 – 5 – 2 – 4.

d)   2 – 1 – 5 – 3 – 4.

e)   1 – 3 – 4 – 2 – 5.

 


quarta-feira, 17 de junho de 2020

CONTO: O CAVALO IMAGINÁRIO - MOACYR SCLIAR - COM GABARITO

Conto: O CAVALO IMAGINÁRIO

              Moacyr Scliar

        Nós todos frequentávamos o mesmo colégio, naquela pequena cidade do interior. Um colégio privado, e muito caro, o que, para nossos pais, não chegava a ser problema: éramos, meus amigos e eu, filhos de fazendeiros. Nossos pais tinham grandes propriedades. E tinham muito dinheiro. Nada nos faltava. Andávamos sempre muito bem-vestidos, comprávamos o que fosse necessário para o colégio e gastávamos bastante no bar da escola.

        Aos domingos nos reuníamos para andar a cavalo. Cavalos não faltavam nas fazendas de nossos pais, animais de puro-sangue e bela estampa. Cada um de nós tinha a sua própria montaria, e não estou falando de pôneis, aqueles cavalinhos mansos; não, estou falando de cavalos de verdade, cavalos que corriam muito e saltavam obstáculos. Estou falando de equitação, aquele nobre esporte. Nossos pais faziam questão de que fôssemos excelentes ginetes. Tínhamos até um professor, que nos treinava na arte de cavalgar.

        Eu disse que cada um de nós tinha um cavalo, mas isso não é verdade. Havia um que não tinha cavalo. O Francisco.

        O Francisco não era filho de fazendeiro. O pai dele tinha uma profissão humilde, era sapateiro. Na verdade, o Francisco só estava em nossa escola porque havia recebido uma bolsa de estudos – era um garoto muito inteligente e muito dedicado. Mas o que fazia em nosso grupo?

        Boa pergunta. Acho que nenhum de nós saberia como responder. Diferente dos outros garotos da escola – a maioria dos quais nos detestava –, ele tinha por nós uma admiração que beirava a reverência. Sempre que podia estava por perto. Mais do que isso, oferecia-se para prestar pequenos serviços. Se um de nós queria um refrigerante, o Francisco ia buscar. Se um de nós deixava de apresentar o trabalho solicitado pelo professor, Francisco se encarregava de fazê-lo. Por isso, e só por isso, nós o tolerávamos. Por isso, e só por isso, permitíamos que andasse conosco. Durante a semana, bem entendido; porque no domingo as coisas mudavam. No domingo ele voltava para o seu lugar. Domingo era o dia de cavalgar, e, do alto de nossas selas, nós contemplávamos, altaneiros, o mundo a nosso redor. Como eu disse, Francisco não tinha cavalo. Isso não impedia que cedo já estivesse no clube hípico, esperando por nós. Ficava a olhar-nos, enquanto galopávamos de um lado para o outro. E nós gostávamos de tê-lo como plateia, porque nos aplaudia entusiasticamente. Mais do que isso, procurava imitar-nos: galopava de um lado para o outro, como se estivesse montando um cavalo imaginário. Nós na pista, cavalgando – ele, ao lado da pista, trotando de um lado para outro e gritando como nós gritávamos, aqueles brados que os cavaleiros soltam quando se entregam ao esporte das rédeas.

        De um modo geral, achávamos engraçado aquilo. Não Rodrigo.

        Era um cara desagradável, aquele Rodrigo. Mesmo nós, que éramos amigos dele, tínhamos de reconhecer: um garoto intratável, agressivo com os colegas e até com os professores. A má fama que o nosso grupo tinha devia-se sobretudo a ele. Mas a verdade é que tínhamos de aceitá-lo: seu pai não apenas era o maior fazendeiro da região, como também ocupava o cargo de prefeito da cidade. Rodrigo era seu filho caçula – e o mais mimado. Um garoto estragado, como dizia meu pai.

        Rodrigo não gostou nada daquela história. E nos disse:

        – Não quero mais saber desse tal de Francisco nos imitando.

        Procuramos convencê-lo de que se tratava apenas de uma brincadeira. Inútil: Rodrigo estava furioso mesmo.

        – Vou resolver essa coisa à minha maneira – garantiu.

        Foi o que fez. Num domingo, enquanto Francisco cavalgava seu cavalo imaginário, Rodrigo se aproximou dele. Apeou e comandou:

        – Desça de seu cavalo.

        Francisco obedeceu: desceu do fictício cavalo.

        – Nós vamos fazer uma aposta – disse Rodrigo. – Se eu perder, entrego-lhe o meu cavalo. Se você perder, entrega-me o seu.

        – Que aposta é? – indagou Francisco, numa voz trêmula.

        – Uma corrida – disse Rodrigo. Apontou umas árvores, a uns duzentos metros de distância: – Até ali, e voltamos. Quem chegar aqui primeiro, ganha.

        Lembro-me de que o sangue me subiu à cabeça.

        – Olhe aqui, Rodrigo – comecei a dizer –, você não pode –

        Francisco me interrompeu:

        – Eu aceito a aposta – disse, com voz firme, ainda que meio embargada. – Quero correr.

        Foi uma coisa patética de se ver. Os dois se colocaram lado a lado e, a um sinal, começou aquela coisa maluca. Rodrigo simplesmente trotava em seu magnífico cavalo, Francisco corria atrás – sem conseguir alcançá-lo. Rodrigo foi até as árvores, voltou. Minutos depois chegou Francisco, ofegante. Rodrigo mirou-o com arrogância:

        – Parece que eu ganhei, não é mesmo?

        Francisco, ainda ofegante, permanecia calado.

        – Seu cavalo agora é meu – continuou Rodrigo. – E sabe o que vou fazer com ele? Vou soltá-lo no campo. Ele agora está livre, você não pode mais montar, entendeu?

        Francisco, quieto. Rodrigo apanhou as rédeas imaginárias e foi até o portão do clube. Ali, espantou o suposto cavalo aos gritos. Feito isso, montou em seu próprio cavalo e foi embora.

        Francisco nunca mais foi ao clube. Aliás, ele nem ficou na cidade. Segundo o pai, tinha ido morar com os avós num lugar bem distante.

        Nunca mais o vi. Não sei o que foi feito dele. Dizem que vende automóveis, não sei. Mas tenho certeza de que sei com o que sonha: com um belo cavalo, no qual, montado, galopa à vontade por um imenso campo que não tem limites.

                              Boa Companhia – Contos – p.15-18.

Entendendo o conto:

01 – Em relação à estrutura narrativa do conto, qual:

a)   O tempo?

É cronológico, pois é possível determinar quando acontece (infância do narrador). Narrado no passado.

b)   O enredo?

A história se passa em uma cidade do interior, onde um menino humilde e inteligente sonhava em ter um cavalo. Ele também desejava ter amigos e ser aceito por eles, mas o que mais queria era ter seu próprio cavalo. Já que não tinha capacidade financeira para ter um, usava sua criatividade e imaginação para fazer seu próprio cavalo. Andava em seu cavalo imaginário perto de seus “amigos”, como se ele fosse de verdade.

02 – Qual é a tipologia predominante no conto?

a)   Narrativa.

b)   Argumentativa.

c)   Descritiva.

03 – Quais os personagens que fazem parte dessa narrativa?

      Francisco, o grupo de amigos e Rodrigo.

04 – Em que espaços se desenrola a história?

      Os espaços são determinados, mas não são caracterizados muito detalhadamente. São: escola, clube hípico, fazenda, bar da escola e cidadezinha do interior.

05 – Que temas são abordados no conto?

      Os temas são: o preconceito e a discriminação social.