Crônica: Baixinho
GREGORIO DUVIVIER
Quando era pequeno, não imaginava que
continuaria pequeno o resto da vida. "Come bastante pra crescer e ficar
bem alto", diziam. Comia com a voracidade de quem quer ter um metro e
noventa. Perguntava: "Já estou crescendo?". Ainda não estava.
Era o mais baixo dos meus amigos, mas
estava comendo tanto que um dia ultrapassaria todos. Minha mãe, talvez
percebendo que a única coisa que esse mito estava gerando era obesidade,
confessou: "Gregório, não importa o que aconteça, você nunca vai passar de
um metro e setenta".
Não importa o que aconteça. Eu estava
amaldiçoado. Carregava nas costas o peso do futuro. Chorei por horas, talvez
dias, embora possam ter sido só alguns minutos. Queria ser goleiro da Holanda
ou detetive da Scotland Yard, profissões de gente alta.
"Talvez eu tenha que me contentar
com a ginástica olímpica." E chorei mais um pouquinho.
Quando via um baixinho, batia uma
tristeza profunda de lembrar do futuro. Era como aquelas propagandas que
diziam: não percam, domingo, no Faustão'... Não! O domingo vai chegar! E o
"Faustão" também! A vida é melhor sem saber disso.
Até que cresci – não muito, mas cresci.
Estacionei no 1,69 m, com sensação térmica de 1,70 m – o cabelo despenteado
ajuda a chegar lá e até hoje checo se a maturidade não me rendeu algum
centímetro a mais.
Os amigos desfavorecidos verticalmente
me ajudam a superar. Antônio Prata tem, na ponta da língua, uma lista de
baixinhos ilustres, que vão de Millôr Fernandes a Bono Vox, passando por Woody
Allen, Al Pacino e, claro, Romário, antena da raça baixinha.
Isso conforta. Os baixinhos engrandecem
a causa. A não ser pelo Bono Vox, que envergonha a classe e usa salto embutido.
Tudo tem limites. Às vezes gosto de alguém sem saber por que, e depois percebo:
é baixinho. Quando vejo um de nós, aceno com a cabeça como quem diz: estamos
juntos.
Odiamos shows em pé. Ainda comemos como
quem um dia quis crescer. Nunca vamos ser goleiros ou detetives da Scotland
Yard. Mas nos resta a simplicidade de quem olha o mundo de baixo pra cima, além
do conforto em cadeiras da classe econômica – e da propensão para a ginástica
olímpica.
GREGÓRIO DUVIVIER.
Baixinho. Folha de São Paulo. 4 ago. 2014. Disponível em: https://m.folha.uol.com.br/colunas/gregorioduvivier/2014/08/1495321-baixinho.shtml.
Acesso em: 28 jul. 2020.
Fonte: Práticas de
Língua Portuguesa – Ensino Médio – Volume Único – Faraco – Moura – Maruxo – 1ª
ed., São Paulo, 2020. Ed. Saraiva. p. 21-2.
Entendendo a crônica:
01 – Na crônica, Gregório
Duvivier apresenta o fato de ser “baixinho” como uma característica mais
positiva ou mais negativa? Explique.
Positiva. Para o
cronista, a altura torna-se um traço que reflete a própria personalidade, e ele
identifica personalidades bem-sucedidas e ilustres caracterizadas pela baixa
estatura. Em todas as personalidades identificadas, percebe-se a assunção da
baixa estatura como algo que não interfere no êxito delas – o contraexemplo, do
cantor Bono Vox, dá destaque para essa disponibilidade em aceitar-se como se é.
02 – No texto, Gregório
Duvivier menciona que, quando criança, acreditava que a estatura baixa o
impediria de realizar o desejo de se tornar goleiro da Holanda ou detetive da
Scotland Yard. Pode-se afirmar que a menção a esses desejos da infância tem
efeito humorístico. Por quê?
Por meio da
leitura do texto, se pode inferir o fato de Gregório Duvivier, na fase adulta,
ser capaz de reconhecer que não foi a baixa estatura que o impediu de se tornar
goleiro da Holanda ou detetive da Scotland Yard: é possível que ele não tenha
escolhido seguir nenhuma dessas duas profissões porque eram sonhos apenas da
época da infância.
03 – No trecho “Quando vejo
um de nós, aceno com a cabeça como quem diz: estamos juntos”, a quem o
pronome nós se refere? Como você chegou a essa conclusão?
O pronome se
refere aos baixinhos, como o próprio cronista. O emprego de nós, por oposição à
expressão “os outros”, cria uma identidade de grupo, uma cumplicidade.
04 – O texto se encerra de
forma irônica. Localize esse trecho e explique por que ele contribui para que a
visão sobre a baixa estatura do escritor seja entendida de maneira positiva.
A ironia está no
período final do texto: “Nunca vamos ser goleiro ou detetives da Scotland Yard.
Mas nos resta a simplicidade de quem olha o mundo de baixo pra cima, além do
conforto em cadeiras da classe econômica – e da propensão para a ginástica
olímpica”.
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